segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Crítica | Um filme de horror diet, "A Lenda de Candyman" se omite enquanto cinema de gênero para construir uma crítica social 'gostável'



Um filme de horror pode ser pensado para ser "gostável''? Eis uma pergunta difícil de ser respondida. À rigor, o gênero nasceu da provocação. Do choque criado a partir da "profanação" de signos estimados. O terror, como nenhum outro gênero, tem o poder de desafiar o público a partir de reações instintivas. O medo enquanto instrumento de reflexão. "O Mistério de Candyman", o original de 1993, entendeu isso como poucos. O fantástico hit noventista dirigido por Bernard Rose ressignificou a banalização da violência dos 'slashers movies' na tentativa de expor as sequelas do racismo na rotina do afro-americano.

O mal, aqui, ganhou um uma conotação reativa. Candyman era o ódio em estado puro. Candyman era o espírito de uma comunidade devastada pelo vício, pela exploração e pela violência. O vilão era um sintoma. Uma lenda criada para afugentar. Uma defesa do inconsciente. Um conceito brilhante aplicado num thriller de horror forte, pesado e provocante. O tipo de ousadia que falta a sua continuação/remake, o confuso "A Lenda de Candyman''. Existe uma série de ótimas ideias no bagunçado longa da diretora Nia da Costa. A maioria delas, contudo, se perde numa obra determinada a reescrever o passado, mas incapaz de se emancipar dele.

O problema, na verdade, não está na maneira (criativa, por sinal) com que o roteiro assinado pela própria diretora, ao lado de Jordan Peele e Win Rosenfeld, se apropria da mitologia original determinado a enxergar os fatos sob uma nova perspectiva. O protagonismo branco ficou no passado. O choque não está associado à miséria exposta a partir do olhar do 'white savior' (um conceito brilhantemente subvertido no original).

Em "A Lenda de Candyman'', a cineasta desafia a estética gótica "suja" do original ao defender o empoderamento através da imagem. Esqueça a marginalização da dor do afro-americano. Nia da Costa enxerga as conquistas da comunidade a partir dos seus protagonistas, o artista plástico Anthony (Yahya Abdul-Mateen II) e a curadora de arte Brianna (Teyonah Parris). Eles são o rosto de uma América progressista. Eles são o presente.

Uma realidade que o longa se orgulha em expor. A expressiva direção de arte assume a linguagem modernista estabelecida pelo plot ao imprimir o sucesso do casal em tela. A realizadora usa a arte para questionar aqueles que visavam lucrar com o sofrimento negro. Uma lógica que, durante muito tempo, vigorou em Hollywood. O que ajufa a explicar as escolhas do longa. "A Lenda de Candyman" quer defender o novo. "A Lenda de Candyman" exalta o empoderamento num meio ainda racista. "A Lenda de Candyman" se esforça para dialogar com uma agenda racial importante. Uma abordagem representativa "gostável" que poderia ter sido o diferencial da obra.

Para justificar essa visão de continuação, no entanto, Nia da Costa sacrifica o único elemento do longa original que não poderia ser descaracterizado: a realidade. Na ânsia de expandir a mitologia em torno da lenda (reescrita em transições lúdicas), a realizadora perde o foco numa tentativa superficial de retratar um século de violência contra os afro-americanos. Os condomínios habitacionais de outrora viraram prédios modernos num bairro gentrificado. Do alto destes condomínios de luxo, contudo, "A Lenda de Candyman" não consegue ouvir o grito de revolta de muitos.

O que começa de maneira interessante, com um estudo sobre a obsessão de um artista sem raízes disposto a tudo para emplacar um sucesso, logo descamba para uma série de soluções rocambolescas envolvendo versões alternativas de Candyman e uma visão literal sobre os obstáculos impostos por um meio racista. Um abordagem que não difere em nada da proposta pelo original.

Anthony, ao contrário da pesquisadora Helen (Virgínia Madsen), é um personagem oco. O roteiro, para proteger o irrelevante plot twist, impede que conheçamos o passado do protagonista. A obsessão dele pela figura de Candyman diz mais sobre a inconsequência do artista vaidoso, do que sobre o tormento de uma comunidade. Uma escolha conveniente. Sempre que se vê obrigada a romper com a estética 'clean' proposta, Nia da Costa apela para flashbacks expositivos que entram em contradição com o tom empoderador defendido. A dor da comunidade é explorada apenas como um alicerce narrativo. 

O que ecoa, até mesmo, no impactante clímax, um desfecho provocador que se revela vazio devido a opção do longa em não trazer a investigação policial envolvendo uma série de misteriosos assassinatos para o centro da equação. "A Lenda de Candyman" é, em suma, uma crônica social falha. O pior, no entanto, está na maneira relapsa com que a diretora explora o cinema de gênero. O horror surge quase sempre em segundo plano. Como se Nia da Costa, de alguma forma, tentasse proteger a figura de Candyman.

A sequência do ataque no banheiro de uma escola, em especial, é de uma omissão que constrange. Esqueça a tensão do original. Esqueça (ou não?) o Candyman imponente e agressivo de Tony Todd. O que vemos aqui é um vilão diet que não gera medo, nem repulsa, nem ameaça. Apenas pena. Um sentimento que seria válido se o roteiro mergulhasse, de fato, na angústia de uma comunidade através dele. O que nós assistimos, porém, é uma construção narrativa focada na deterioração de um artista negro consumido por uma realidade que o texto reluta em abordar.

É através da imagem, mais uma vez, que Nia da Costa melhor captura a corrosão do protagonista num contexto racista. A cineasta faz um brilhante uso do 'body horror' para traduzir a degradação de Anthony na busca por respostas que o conduzam ao seu passado. Impulsionado pelo fantástico trabalho da equipe de maquiagem (a decrepitude estabelecida pelo longa causa um efeito genuinamente asqueroso), Yahya Abdul-Mateen II se esforça para imprimir em tela o peso que falta ao roteiro, mas não consegue se sobressair diante de uma obra com pretensões tão erráticas.

Com um senso de terror implícito e uma estrutura narrativa presa ao longa original, "A Lenda de Candyman" caminha em círculos com ambições modernizantes para, só no fim, entender que a dor causadora do horror estava ligada ao passado. Não a obsessão de um artista desconectado da realidade, tampouco a uma (frustrante) mitologia fantasiosa, mas ao ódio puro personificado na vítima da brutalidade gerada pela injustiça racial.

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