terça-feira, 6 de julho de 2021

Crítica | Shiva Baby

Segredos que aprisionam


Danielle (Rachell Sennott) tinha um segredo. Danielle parecia lidar bem com ele. Danielle não sabia que um simples evento familiar estava prestes a se tornar o seu pior pesadelo. Shiva Baby é uma experiência angustiante. Na sua estreia em longa-metragem, a promissora diretora Emma Selligan invade um ambiente familiar disposta a extrair sensações dele. A cineasta enxerga a tensão no drama de uma jovem asfixiada por medos, imposições e tabus tão reconhecíveis. A pressão é latente. A “fuga” perigosa. Ser jovem num ambiente controlador é difícil. Danielle só queria "sobreviver" a este dia. Só queria sustentar a imagem de boa filha. Só queria passar despercebida. 

Shiva Baby não precisa apelar para o maniqueísmo para capturar o desespero de Danielle neste contexto. O “mal”, aqui, é estrutural. Emma Selligan é madura ao, a partir de um microcosmo familiar, reconhecer a hostilidade no mundo em que a protagonista vive. A preocupação de tios, primos e vizinhos ganha contornos agressivos. É difícil precisar se os invasivos convidados temiam ela, por ela ou se só queriam fazer parte da “encenação” social que toma conta deste tipo de “evento”. A possível revelação de um segredo íntimo é apenas a porta de entrada para um estudo profundo sobre as escolhas de uma mulher num contexto limitante. O humor nasce da tensão. Da coincidência que acua. Da caricatural fachada que criamos para nós mesmos. Todos naquele cenário tinham a sua. Uns queriam parecer mais ricos do que eram. Outros mais novos. Alguns mais interessantes. A maioria mais simpático. Danielle tinha a sua. Ela só queria convencer a todos que o seu futuro estava planejado. 

A diretora, contudo, não titubeia em demolir este arquétipo funcional. Shiva Baby cresce quando mergulha na intimidade da protagonista. Quando se comove pela imaturidade inconsequente dela. Quando se revolta com a opressão familiar em torno dela. Quando se enternece com a crise de autoestima dela. Quanto mais Danielle se vê exposta, mais a câmera de Selligan invade o seu espaço. A cineasta assume a posição dos convidados ao usar os planos fechados, o desfoque e os movimentos bruscos de câmera para escancarar o desespero da jovem. Um 'mise en scene' que sufoca. Nós sentimos a textura da úmida na fotografia em tons diurnos de Maria Rusche. A expressiva Rachel Sennott sua em cena. A abordagem sem filtros do longa encontra no senso de franqueza da atriz o casamento perfeito. A jovem reage ao impositivo meio seguindo o sufocante ritmo da montagem. Ela assume a imperfeição da sua personagem com um misto de convicção, ironia e culpa facilmente identificável. Um passo em falso e Danielle poderia magoar aqueles que importavam. Essa é a realidade de muitas mulheres que só querem exercer a sua liberdade. 

O feminino, nas figuras da centrada “ex-amiga” Maya (Molly Gordon, radiante) e da empoderada jovem matriarca Kim (Dianna Agron, introspectiva), tem muito a acrescentar ao arco da protagonista. Emma Selligan enxerga além do que elas representavam naquele cenário. A cineasta é cuidadosa ao usar a desordem gerada por Danielle para aproximar tipos aparentemente distintos, mas igualmente angustiados. O perigo da descoberta iminente leva ao julgamento, mas também a compreensão. Shiva Baby se recusa a reduzir tudo a rivalidade feminina. O conflito silencioso entre as três nasce menos dos atos e mais das omissões. Elas se reconhecem nas imperfeições. Elas eram vítimas de um mesmo status quo. Pouco importa, no fim, se Danielle conseguiu proteger o segredo. O foco de Selligan está na reação coletiva àquilo que já era notório. No desconforto gerado pela falta de rumo de uma jovem. Nas fachadas sustentadas por conveniências. Na união que floresce de um simples gesto de sororidade e reconexão. Danielle tinha um segredo...

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