sexta-feira, 9 de julho de 2021

Crítica | O Rebanho

Dor e estilização


Vivemos em meio a “falsos profetas”. Eles estão em todos os setores da nossa sociedade. Na religião, na política, na mídia... Alguns estão no poder. Outros querem estar lá. É assustador notar que, num período de tamanho negacionismo coletivo, muitos preferem acreditar na ilusão. Em promessas vazias. Os “falsos profetas” dependem da ignorância. Da alienação popular. Da exaltação de velhas retóricas. Embora dentro de um contexto extremo, O Rebanho impacta enquanto um estudo do ‘modus operandi’ destes homens. O foco, aqui, está na religião. Na distorção que aprisiona. Na fé corrompida pelo oportunismo. O imersivo drama dirigido por Malgorzata Szumowska é cuidadoso ao mergulhar num perverso processo de persuasão. O cenário, infelizmente, não é tão distante da nossa realidade assim.

Isoladas numa região dos EUA, um grupo de jovens mulheres vive seguindo as leis de um pastor (Michiel Huisman, serenamente odioso). Os abusos são inerentes ao meio. A cineasta polonesa não precisa explicitar para estabelecer a rotina das personagens. As respostas estão em todo lugar. Na dinâmica dentro deste culto. No temor que se confunde com admiração. Na pureza que se confunde com alienação. O longa provoca ao se apropriar de signos religiosos para atacar a lógica patriarcal. Szumowska filma o líder do culto como uma figura messiânica. Seus enquadramentos o “consagram”. A intenção é notar a submissão das suas “esposas” e “filhas” neste contexto. A realizadora usa a inquietude de uma adolescente prestes a se tornar mulher, a relutante Selah (Raffey Cassidy), para propor um anacrônico estudo sobre a crise de autoestima feminina enquanto ponte para a ação dos predadores sexuais. Os dilemas das jovens vítimas, embora implícitos, são reconhecíveis. Eles refletem as sequelas de uma estrutura machista. A religião fica em segundo plano.

Em O Rebanho, a aceitação masculina é o milagre. Elas não têm medo do inferno, elas temem a solidão. O fanatismo é movido pelo afeto. Todas sacrificam a dignidade em prol do privilégio da atenção. Uma construção provocante que, infelizmente, esbarra na incapacidade da diretora em estudar o efeito deste meio repressor na identidade das personagens. Malgorzata Szumowska frustra ao nunca dar voz para as alienadas vítimas. As intenções narrativas do longa são confusas. Ela se contenta em diagnosticar o problema. O flerte com o surrealismo rende imagens fortes, mas enfraquece o silencioso estudo de personagem. O longa invade a psique de Selah a partir de lacônicas metáforas visuais. A sugestão enfraquece o texto de Catherine Smyth-McMullen. Entre o contextualizador primeiro ato e o emblemático clímax existe um vazio que descredita a dor (e por tabela a metamorfose) destas mulheres.

O roteiro troca a compreensão pela dispersão. Sacrifica o peso da trama em prol da estilização gratuita. O elo entre público e personagens nasce da empatia e só. Apesar do olhar penetrante de Raffey Cassidy dizer muito, a cineasta prefere a dispersão e o impacto gerado por imagens redundantes. A memorável sequência final merecia um filme desenvolvesse minimamente a jornada de emancipação feminina. O Rebanho faz força para se adequar à lógica do cinema de horror moderno. Uma opção que sacrifica o desconfortável drama sobre o poder dos “falsos profetas” num meio tão fragilizado.


Texto originalmente postado no meu Instagram. Me siga por lá @blog_cinemaniac.

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