Dor e estilização
Vivemos em meio a “falsos profetas”. Eles estão em todos os setores da nossa sociedade. Na religião, na política, na mídia... Alguns estão no poder. Outros querem estar lá. É assustador notar que, num período de tamanho negacionismo coletivo, muitos preferem acreditar na ilusão. Em promessas vazias. Os “falsos profetas” dependem da ignorância. Da alienação popular. Da exaltação de velhas retóricas. Embora dentro de um contexto extremo, O Rebanho impacta enquanto um estudo do ‘modus operandi’ destes homens. O foco, aqui, está na religião. Na distorção que aprisiona. Na fé corrompida pelo oportunismo. O imersivo drama dirigido por Malgorzata Szumowska é cuidadoso ao mergulhar num perverso processo de persuasão. O cenário, infelizmente, não é tão distante da nossa realidade assim.
Isoladas numa região dos EUA, um grupo de jovens mulheres
vive seguindo as leis de um pastor (Michiel Huisman, serenamente odioso). Os
abusos são inerentes ao meio. A cineasta polonesa não precisa explicitar para
estabelecer a rotina das personagens. As respostas estão em todo lugar. Na
dinâmica dentro deste culto. No temor que se confunde com admiração. Na pureza
que se confunde com alienação. O longa provoca ao se apropriar de signos
religiosos para atacar a lógica patriarcal. Szumowska filma o líder do culto
como uma figura messiânica. Seus enquadramentos o “consagram”. A intenção é
notar a submissão das suas “esposas” e “filhas” neste contexto. A realizadora
usa a inquietude de uma adolescente prestes a se tornar mulher, a relutante
Selah (Raffey Cassidy), para propor um anacrônico estudo sobre a crise de
autoestima feminina enquanto ponte para a ação dos predadores sexuais. Os
dilemas das jovens vítimas, embora implícitos, são reconhecíveis. Eles refletem
as sequelas de uma estrutura machista. A religião fica em segundo plano.
Em O Rebanho, a aceitação masculina é o milagre. Elas não têm
medo do inferno, elas temem a solidão. O fanatismo é movido pelo afeto. Todas
sacrificam a dignidade em prol do privilégio da atenção. Uma construção
provocante que, infelizmente, esbarra na incapacidade da diretora em estudar o
efeito deste meio repressor na identidade das personagens. Malgorzata Szumowska
frustra ao nunca dar voz para as alienadas vítimas. As intenções narrativas do
longa são confusas. Ela se contenta em diagnosticar o problema. O flerte com o
surrealismo rende imagens fortes, mas enfraquece o silencioso estudo de personagem.
O longa invade a psique de Selah a partir de lacônicas metáforas visuais. A sugestão
enfraquece o texto de Catherine Smyth-McMullen. Entre o contextualizador
primeiro ato e o emblemático clímax existe um vazio que descredita a dor (e por
tabela a metamorfose) destas mulheres.
O roteiro troca a compreensão pela dispersão. Sacrifica o
peso da trama em prol da estilização gratuita. O elo entre público e
personagens nasce da empatia e só. Apesar do olhar penetrante de Raffey Cassidy
dizer muito, a cineasta prefere a dispersão e o impacto
gerado por imagens redundantes. A memorável sequência final merecia um filme
desenvolvesse minimamente a jornada de emancipação feminina. O Rebanho faz
força para se adequar à lógica do cinema de horror moderno. Uma opção que
sacrifica o desconfortável drama sobre o poder dos “falsos profetas” num meio
tão fragilizado.
Texto originalmente postado no meu Instagram. Me siga por lá @blog_cinemaniac.
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