sexta-feira, 30 de julho de 2021

Crítica | Em um Bairro de Nova York

Quem canta os males espanta?


Um dos motivos do gênero musical ser tão divisivo aos olhos do grande público se deve a sua particular linguagem. O ato de “substituir” a fala pelo canto\dança costuma gerar um estranhamento para muitos. O que é explicável. Tudo passa por uma questão de reconhecimento. No mundo “real” ninguém canta os seus problemas. Ninguém conversa bailando. Isso pode soar ridículo quando nos prendemos a literalidade do que estamos assistindo. Eis o x da questão. No gênero musical, o canto e a dança são simbólicos. É a arte usada para estilizar a realidade. É revigorante ver como Em Um Bairro de Nova York tira proveito da linguagem alto astral do gênero para desafiar a ilusão do sonho americano. Numa análise literal, o ensolarado longa dirigido por Jon M. Chu pode ser considerado pueril ou desconectado da dura realidade do imigrante. Uma obra colorida sobre o drama de muitos. 

É um erro, contudo, se apegar somente ao viés estético. A dança, aqui, significa trabalho. Os personagens cantam as suas frustrações. O constante movimento representa a impossibilidade de parar. O cenário principal é a loja do protagonista, o dominicano Usnavy (Anthony Ramos, puro carisma). Cansado de trabalhar para sobreviver, ele resolve largar tudo e voltar para a casa para viver o seu pequeno sonho. Em In The Heights (no original), os personagens sofrem os efeitos da desigualdade social, racial e de gênero. Benny (Corey Hawkins, um ladrão de cenas) quer ascender, mas não tem oportunidades. Nina (Leslie Grace, subaproveitada) conseguiu chegar a Universidade de Stanford, mas sucumbe ao preconceito. Vanessa (Melissa Barreira, apática) sonha em se tornar uma estilista, mas não tem a mínima ideia de como conseguir isso. 

A partir da perspectiva destes jovens, Jon M. Chu mergulha na rotina de uma comunidade que tenta resistir. Faz todo o sentido que, neste contexto, os experientes sejam os mais preparados para suportar as imposições. O mundo mudou. O viés colorido endossa isso. Os imigrantes do passado se tornaram patrões e\ou tutores. As músicas sugerem o orgulho do que foi construído. A afirmação daqueles que vieram de longe e prosperaram. A nova geração, porém, quer mais. Enquanto foca nos dilemas de uma comunidade às avessas com a gentrificação, Em Um Bairro em Nova York emociona ao usar os impressionantes números musicais para notar a (des)ilusão escondida no sonho americano. As potentes canções de Lin-Manuel Miranda capturam a angústia escondida no discurso afirmativo. Quando os personagens são obrigados a parar, a melancolia toma conta. A desassistência fica evidente. A incerteza gera desconforto. As raízes são corrompidas por imposições capitalistas. A especulação imobiliária afeta os mais experientes. A falta de perspectivas de futuro preocupa os mais jovens. Quem canta os males espanta? Não!

As vozes, no entanto, reforçam a resiliência. O emocionante número musical da matriarca vivida por Olga Merediz é sintomático. Ela carrega consigo o cansaço de uma vida à serviço de um “sonho”. Estariam aqueles jovens presos no mesmo círculo vicioso? Limitados ao status conquistado na comunidade? Uma pergunta inquietante que Em Um Bairro de Nova York não parece interessado em responder. Jon M. Chu flerta com a contradição ao, na transição para o terço final, se prender demais a estética ‘feel good’ dos musicais. O roteiro perde oportunidades ao não ousar na adaptação. Existe uma clara crise de prioridade aqui. A complexa relação entre Benny e Nina é mais apaixonante do que a pueril história de amor materialista entre Usnavy e Vanessa. O artificial clima de romance criado enfraquece o viés social da obra. 

Um desvio, é fato, atenuado pelo fascinante senso de plasticidade da obra. Chu filma os expressivos números musicais com uma câmera que parece querer dançar junto. Enquanto os planos fechados capturam a engenhosidade das coreografias, os planos médios\abertos extraem o máximo do tempero latino em cenas que capturam a efervescência do cenário. O vertiginoso balé na sacada do prédio é daquelas cenas que desafiam a nossa compreensão de cinema. Tem CGI, tem mudança no eixo da câmera, tem efeitos práticos. O tipo de ousadia que falta ao terço final de Em um Bairro de Nova York.  Um filme que, embora reconheça os obstáculos no percurso, termina seduzido pelo sonho americano. Uma obra saborosa de se ver, empolgante de se ouvir, mas tão iludida quanto alguns dos seus personagens.

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