O cinema, enquanto veículo de massa, é de longe uma das manifestações artísticas mais representativas. Se reconhecer em tela é importante. Ao contrário do que muitos pensam, o universo LGBTQ+ sempre se fez presente na Sétima Arte. Mesmo que de forma velada, simbólica ou debochada, alguns diretores tiveram a coragem de tocar em temas hoje recorrentes num contexto ainda mais preconceituoso e conservador do que o atual. Na véspera do Dia do Orgulho LGBT, mergulhei numa pesquisa para tentar reunir alguns dos primeiros filmes que deram voz a personagens e\ou temas referentes ao universo queer.
Tudo começou com uma pioneira. Em Algie: The Milner, a cineasta Alice Guy-Blaché invadiu o velho oeste para ridicularizar a masculinidade frágil e sugerir a repressão sexual de um indivíduo disposto a se adaptar para pertencer. Na obra de 1912, o afetuoso Algie é obrigado a se submeter a um processo de embrutecimento no melhor estilo “cura gay” para se casar. O ambíguo desfecho, contudo, sugere que os sentimentos são imutáveis. Um anos depois, em 1913, A Florida Enchantment usou o humor para naturalizar o relacionamento entre duas mulheres. O diretor Sidney Drew escondeu num rocambolesco plot envolvendo a troca de gênero um corajoso comentário sobre opressão feminina e a emancipação conquistada com a libertação sexual. Nem o moralista desfecho enfraquece esta sátira sobre as sequelas geradas pelo aprisionamento num cenário que era preciso assumir outro gênero para ser livre.
Numa pegada cartunesca, Chaplin entra na lista ao brincar com a troca de gêneros em A Woman. Além de aparecer sem bigode e vestido de mulher, Carlitos abraça a feminilidade para debochar do homem dominante cego pelo seu próprio apetite sexual. Uma representação descuidada comum na época. Já o afiado I Don’t Want To Be a Man (foto acima) explora a troca de identidade para falar sobre libertação. O popular diretor Ernest Lubitsch foi muito além da piada ao usar angústia feminina para abordar a questão da bissexualidade. Vestida de homem, a indômita protagonista conquista a atenção de outro homem. O mesmo que nunca havia valorizado a sua “versão feminina”. O relacionamento homoafetivo é pela primeira vez escancarado na ficção.
Uma abordagem provocativa que não chega perto da contundência de Different From The Others (foto acima). Considerado por muitos o primeiro filme LGBTQ+ da história, o longa de Richard Oswald enxerga o drama gerado pela repressão sexual num filme denúncia impactante. O gigante Conrad Veidt dá vida a um recatado homem gay obrigado se expor após ser vítima de um chantagista. Com base no texto do sexólogo Magnus Hirschfeld (um médico visionário que sempre tratou a homossexualidade e a bissexualidade como algo tão natural quanto a heterossexualidade), Oswald usa o drama individual para repercutir a legitimação do preconceito no Estado alemão. O filme tenta, a partir da ciência, atacar o infame Parágrafo 175 (que criminalizava os gays). Sempre que preciso, o diretor, através da figura de Hirschfeld, adota a linguagem documental para expor mais detalhes deste estudo. Um filme trágico que sobreviveu a censura, a destruição e ao nazismo para defender a naturalização (e não só a legalização) do relacionamento gay. Isso em 1919...
Com uma abordagem bem mais insinuativa, Michael (1924) repercute a solidão gerada pela repressão num filme sobre homens obrigados a “maquiarem” sentimentos para manter o mínimo de afeto. O cineasta Carl Theodor Dryer enxerga a clausura de um artista consumido pela liberdade tomada. É interessante ver como, a partir de uma construção narrativa ambígua, o realizador aborda o subtexto LGBTQ com um senso de realismo impressionante. A construção sugestiva dá ao cineasta a possibilidade de propor um elegante estudo psicológico. Com os seus visionários close ups, Dryer busca no olhar a verdade escondida na aparência. A relação entre um pintor e o seu muso\pupilo\amor fica impressa na tela. Tudo que Dryer não pôde falar através das imagens (o filme foi depreciado na época do lançamento por focar num relacionamento homoafetivo), ele permite que o seu protagonista manifeste através da arte. O resultado é um drama tocante, simbólico e indiscutivelmente trágico.
Os anos 1920 foram de transformação no mundo. O terror da Primeira Guerra ficou para trás. Foi uma década de renovação na arte, na tecnologia, na moda e principalmente no cinema. Um ar modernista que se refletiu na natureza temática de algumas obras. A representação LBGBTQ+ ganhou força. Neste contexto nascia o que para muitos é a primeira personagem assumidamente lésbica do cinema. A Caixa de Pandora (1929), na verdade, é um grande filme sobre o feminino. Sobre a vulnerabilidade da mulher num meio repressor. O diretor Georg Wilhelm Pabst subverteu o perverso conceito por trás do clássico mito grego ao enxergar a verdadeira responsabilidade pelo “mal” na Terra. A Pandora da vez é a bela Lulu (a personagem que imortalizou Louise Brooks), uma mulher livre, sedutora e radiante que não relutava em usar a sua feminilidade para prosperar. Uma postura que, ao longo da trama, gera ciúme, cobiça, ganância, exploração, pena e morte.
Pabst se insurge contra o moralismo machista ao enxergar a culpa no masculino. Todo o mal que cruza o caminho de Lulu é causado por eles. Por sentimentos possessivos. Não à toa, o amor puro e genuíno nasce de uma outra mulher, a apaixonada Condessa Geshwitz (Alice Roberts). Tudo o que diz respeito a essa personagem é representativo. A sua postura íntegra é inspiradora. A sua paixão é comovente. O seu figurino ditou moda ao trazer parte do vestuário masculino para o universo feminino. Uma relação que fica na promessa, como muitas dentro de uma realidade repressora. Uma experiência corajosa, A Caixa de Pandora empodera as mulheres para escancarar a fragilidade inerente a elas num meio desigual.
É interessante ver como, após a 1ª Guerra Mundial, a Alemanha se tornou o berço do cinema LGBTQ+ no mundo. Um dos mais corajosos títulos produzidos por lá foi Girls in Uniform. Um drama comovente sobre uma jovem apaixonada pela sua professora e o impacto deste sentimento num meio repressor. Em 1931, a diretora Leontine Sagan reuniu um elenco 100% feminino para exaltar a sororidade e a união como uma poderosa arma contra o preconceito. É difícil achar um filme que trate com tamanha naturalidade o processo de descoberta sexual de uma jovem lésbica num ambiente livre de tabus. A cineasta renega o maniqueísmo ao, a partir de uma perspectiva inocente, investigar a deformação gerada por uma estrutura conservadora. Naquele internato, as meninas eram “protegidas” do mundo externo. A opressão nasce da figura da diretora. Sagan, contudo, não precisa vilanizar para passar o seu recado. Ela era o produto final de uma estrutura conservadora. É triste notar como o revigorante clímax, aos olhos do mundo tóxico em que vivemos, soa um tanto utópico.
Os filmes com uma mensagem LGBTQ+ pareciam cada vez mais presentes. Em 1930, a estrela bissexual Marlene Dietrich protagonizou um icônico beijo gay no drama Marrocos. Em 1932 e 1933, na Alemanha, foram produzidos os dramas Oito Garotas em Um Barco e Anna and Elizabeth. Em 1934, A Filha do Drácula abusou do simbolismo para capturar a angústia de uma mulher lésbica “amaldiçoada” por seus sentimentos. Um cenário promissor silenciado pelo fascismo e pelo conservadorismo. Na Alemanha, os nazistas trouxeram censura, boicote e destruição. Nos EUA, o infame Código Hays (1934-1968) foi instaurado para “combater” o conteúdo que “ameaçasse” os bons costumes do cidadão americano. A representatividade gay era um dos alvos. Alguns longas até driblaram a censura. Títulos como O Falcão Maltês (1941), Sangue de Pantera (1942) e Festim Diabólico (1948) usaram do duplo sentido para tratar de temas com viés LGBTQ num outro contexto. Este movimento inicial de afirmação, no entanto, foi severamente paralisado até os anos 1960. Uma geração de homens e mulheres cresceram sem se reconhecer no cinema. O que, além de trágico, é triste.
Texto originalmente postado no meu Instagram. Me siga por lá: @blog_cinemaniac.
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