terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Crítica | A Voz Suprema do Blues

Mais Blues impossível!

Tão corajoso e destemido quanto a sua protagonista, a influente cantora Ma Rainey, A Voz Suprema do Blues é o tipo de obra que testa as expectativas do público. Nunca se rende aquilo que esperávamos ver de um drama musical. Com base no texto do dramaturgo August Wilson, o elétrico longa dirigido por George C. Wolfe usa a música como o combustível para um estudo profundo sobre o racismo enraizado num país regido por leis segregacionistas, a ambição daqueles dispostos a desafiar o sistema e a fragilidade do artista num meio movido pelo lucro. O foco, aqui, não está no talento. Um elemento quase secundário diante da veia realística do longa. O cineasta usa a linguagem teatral para mergulhar na intimidade de um grupo de artistas negros obrigados a entrar em sintonia durante uma caótica sessão de gravação. Não espere, portanto, um drama biográfico de cartilha. Você pode se decepcionar. O frisson nasce menos dos acordes e mais dos conflitos entre os personagens. 

George C. Wolfe é categórico ao romper com os clichês envolvendo a música como um instrumento de igualdade. Os protagonistas são aceitos numa gravadora comandado por homens brancos porque Ma Rainey (Viola Davis) vendia. “Eles não se importam comigo, eles querem a minha voz”, exclama a cantora consciente da sua real posição neste ecossistema. Ela tinha o que eles queriam. Essa era a fonte do seu poder. E ela não parecia disposta a abrir mão dele. Logo na vibrante sequência de abertura, o cineasta estabelece o que era o “furacão” Ma Rainey. Nos palcos uma força da natureza. Fora deles uma leoa incapaz de sucumbir à vontade de terceiros. É por essa faceta que George C. Wolfe se interessa. Os gestos intransigentes dela, aos olhos da lente naturalista do cineasta, ganham um novo sentido. O ego vira instinto de sobrevivência. Mesmo do lado privilegiado da balança, Ma Rainey caminha na defensiva. O que não faltam são pessoas dispostas a derrubá-la. O argumento nota isso a partir, por exemplo, da relação entre ela e a sua bela companheira, a fogosa Dussie (Taylour Paige, puro magnetismo). Existe sentimento entre elas. Existe também comodidade, infidelidade, insegurança... O poder de Ma Rainey era atraente. Este status, porém, não preenchia tudo na vida da sua “protegida”. 

Na dinâmica entre elas percebemos os motivos da cantora agir como age. Seja na camada afetiva, seja na camada profissional, George C. Wolfe é cuidadoso ao notar a vulnerabilidade da “mãe do Blues” enquanto mulher. O racismo institucionalizado era um problema. A falta de energia longe dos palcos era um problema. A desconfiança era um problema. Ela dependia demais do lucro. No contexto racial proposto, a sua imponente voz era um escudo. Durante uma única sessão de gravação o realizador estabelece as ameaças ao seu redor. Um predicado valorizado pela capacidade do texto em expandir a discussão. Ao colocar as apresentações em segundo plano, Wolfe isola os personagens para extrair a verdade deles. O cenário intimista e conflituoso se torna o palco perfeito para um estudo da realidade destes homens e mulheres. Sobre aquilo que os unia e o que os afastava. Mais Blues impossível. O estilo musical que melhor traduziu a dor da comunidade afro-americana, aqui, inflama a discussão entre os personagens. 

Se Ma Rainey estava do lado forte da balança, Levee estava do lado mais fraco. Se a música é o combustível que catalisa A Voz Suprema do Blues, a relação entre cantora e trompetista é o barril de pólvora que faz a trama explodir. Existe uma barreira invisível separando os dois. Dispersões narrativas à parte (o primeiro ato é irregular), George C. Wolfe instiga quando decide investigar o quão espessa era ela. A geografia do set potencializa a reflexão. A sensação de claustrofobia aquece os conflitos entre os personagens. Se dentro do estúdio existia uma hierarquia, fora dele todos eram iguais. O externo influencia o interno. Uma “peculiaridade” dramática desenvolvida com esmero pelo texto. Embora possa soar frustrante para alguns, a opção de manter os dois personagens afastados em boa parte da trama ilustra a coragem da película. Estamos diante de um filme que reluta em entregar aquilo que queremos ver. Não por vaidade. Ou por pretensão narrativa. Mas por valorizar a realidade dos personagens. É o contexto que os aproxima. Levee era uma das muitas ameaças no caminho de Ma Rainey. Um algoz involuntário. Ele queria ter o que ela tinha. Numa sociedade racista, porém, as oportunidades eram para poucos. Ela sabia disso. Ele ainda tinha muito a aprender. 

Em uma pequena sala de ensaio, George C. Wolfe emociona ao mostrar o quão implacável era essa cadeia alimentar. A ambição de Levee se confunde com ingenuidade, medo, virtuosismo e raiva. A vontade do artista era a vontade do homem. Na busca pela igualdade através do sucesso, o músico é confrontado com a verdade dos seus parceiros de banda. Um crescente choque de ideias capaz de revelar a rotina destes homens e mulheres longe dos holofotes. Uma verdade expurgada em diálogos recheados de raiva. Talvez o maior predicado de A Voz Suprema do Blues está na devoção do realizador ao poder das palavras. A linguagem teatral confere a liberdade que o elenco precisava para impregnar o texto com sentimentos reconhecíveis. Uma mistura de esperança, amargura, alegria, raiva e dor. As discussões refletem o estrago causado pelo racismo no âmago da comunidade negra. As desavenças revelam uma ponta de egoísmo analisado sem qualquer tipo de julgamento pelo roteiro. Eles são as vítimas da situação. As reações deles ilustram o estado de espírito dos açoitados rotineiramente pelo ódio racial. 

Se para Ma Rainey a música era um escudo, para Lavee ela era uma arma em mãos imprecisas. O show realmente acontece quando o realizador mergulha na psique deste jovem trompetista. Enxerga além dos seus gestos autoconfiantes. Escondido na arrogância dele existia gana, esperança e também ingenuidade. Um predicado maximizado pela assombrosa performance de Chadwick Boseman. Me faltam palavras para destrinchar o último trabalho deste saudoso grande ator. A energia impressa por ele fascina. Boseman transita entre a pureza e a ardileza com um poder de persuasão único. O seu Levee é volátil, persuasivo, genioso e genial. É a partir dele que George C. Wolfe eleva a sua crítica contra um sistema corrosivo. A angústia dele é atemporal. Uma atuação tão grandiosa quanto a da sua parceira de set, a ferina Viola Davis. Descaracterizada para assumir as formas de Ma Rainey, ela desaparece dentro da personagem. O cansaço físico capturado na movimentação prejudicada contrasta com a vitalidade com que a cantora desafia o meio em que vive. Davis defende a força da protagonista sem deixar de se seduzir pela face mais vulnerável dela. 

Por trás da presença empoderada de Ma Rainey existem dúvidas, frustrações e temores. Elementos sublinhados com refinamento por uma atriz no controle da situação. Uma experiência imersiva potencializada pela fotografia quente de Tobias A. Schliessler. O clima de tensão gradativamente desenhado por Wolfe está impresso na pele dos atores. Você sente o suor, a umidade no ar, a pressão em torno da gravação. Uma obra com textura. Quando a montagem decide interferir na dinâmica teatral, aliás, ela o faz com a intenção de potencializar o sentimento de angústia. Vida a enervante sequência de gravação. Em A Voz Suprema do Blues, porém, a realidade é por si só aflitiva. Ao renegar as convenções dos dramas biográficos, George C. Wolfe rompe, tal qual os seus personagens, com uma estrutura limitante. Ficção, fatos e arte se confundem num estudo sobre o racismo que ofusca, que separa e que mata.

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