Faltou Zazz!
O roteiro assinado por Bob Martin e Chad Beguelin se perde entre o frouxo viés satírico e o relapso viés social. Falta, por exemplo, a energia incorreta da primeira temporada de Glee. Ou, numa comparação ainda mais pertinente, a verve questionadora da versão cinematográfica de Hairspray. Murphy decepciona ao tratar as sequelas causadas pela homofobia com absoluta indolência. Falta coragem para, ao menos por alguns instantes, o cineasta romper com o filtro ‘feel good’ musical. Ao dedicar tempo demais às estrelas (mais à frente falo sobre elas), o realizador limita o arco da sua Emma (Jo Ellen Pellman, prejudicada pela abordagem do diretor). Uma personagem que muitas vezes soa como uma boba alegre sem voz diante do escarcéu criado em torno da sua orientação sexual. Por mais que o plot em si já soe bem datado, o tema, dentro de um contexto ‘kitsch’ proposto pela trama, poderia render uma discussão social mordaz. Existem elementos sólidos dentro do texto. O irônico número no shopping sobre religião e os pecados “aceitáveis”, por exemplo, revela o potencial subaproveitado por Murphy. Nele o realizador consegue ao menos arranhar a casca. Olhar para uma sociedade retrógrada e debochar das suas erráticas convicções.
Esse, porém, é um dos poucos momentos em que A Festa de Formatura realmente combate a mentalidade intolerante. Isso porque, ao invés de focar na desordem íntima de Emma, ou na reação dela à sua repressiva comunidade, Ryan Murphy prefere acreditar que a afirmação\inclusão vem num passe de mágica. A beleza na sequência em que a protagonista finalmente canta a sua verdade não é capaz de atenuar o vazio que a cercava até então. O romance lésbico é trabalhado com uma falta de paixão incômoda. O elo entre Emma e os seus amigos decadentes é desenvolvido com absoluto descuido. Falta harmonia ao texto. Falta também prioridade. Na dúvida, o cineasta prefere ostentar as suas estrelas. O que revela a veia narcisista da obra. Estamos diante de uma espécie de releitura LGBT do conto da Cinderela em que o argumento prefere focar nas fadas madrinhas. Só isso explica o demasiado tempo de tela e os rasos subplots dos personagens de Dee Dee Allen (Meryl Streep), Barry Glickman (James Corden) e Angie Dickinson (Nicole Kidman). O fato deles representarem meros arquétipos da indústria do showbiz é o menor dos problemas. O que incomoda é a incapacidade de Murphy em ao menos tecer algum comentário minimamente original sobre a realidade do trio.
Não existe espaço para troca de experiências aqui. Ao longo do segundo ato, em especial, o roteiro assume uma estrutura quase episódica. Tudo para encaixar números musicais divertidos que validem a relação entre os artistas e a jovem protagonista. A cena em que Angie e Emma se debulham em lágrimas entre confissões é tão aleatória que eu me peguei em dúvida se tinha perdido algo até ali. Nada justifica este grau de intimidade. Chega a ser desconfortável, na verdade, ver um talento do nível de Nicole Kidman ser tratado como uma mera coadjuvante de luxo dentro da história. Tanto ela, quanto Meryl Streep, ao menos, entendem o espírito da coisa. Elas compensam a falta de substância narrativa com despretensão e magnetismo. O mesmo, porém, não podemos dizer da afetada presença de James Corden. O personagem que Ryan Murphy parece levar mais a sério é justamente o mais genérico da trama. O ator\apresentador até tenta preencher o subplot com alguma emoção, mas esbarra na superficialidade com que o cineasta decide tratar uma dor tão reconhecível para muitos. O realizador sacrifica a realidade em prol da sonoridade, das cores e do brilho. Como se quisesse se afirmar na base da aparência.
Uma abordagem estritamente imagética que de maneira alguma compensa os problemas narrativos. Ainda que a neonizada fotografia do talentoso Matthew Libatique (Cisne Negro, Nasce Uma Estrela) energize as apresentações, a falta de ideias no que diz respeito as coreografias e as composições é evidente. Elas servem apenas ao raso propósito do longa. O primeiro número realmente marcante da produção original Netflix, para ser bem sincero, acontece lá pela a metade da história e é protagonizado pelas coadjuvantes Sofia Deler e Logan Riley. Nos planos mais abertos, por sinal, a impressão que fica é que o ‘mise en scene’ pensado por Murphy confunde liberdade com falta de atitude. Uma abordagem muito limpa para um filme com uma aura tão histriônica. Ofuscado pela presença estrelar de nomes como Meryl Streep e Nicole Kidman, A Festa de Formatura derrapa na sua falta de convicção. Embora, no fim, a bem-intencionada mensagem possa até soar comovente para muitos, Ryan Murphy frustra ao entregar a produção quadrada e sem identidade. Uma obra que busca a sua afirmação no caminho mais fácil. Sobra purpurina, falta zazz.
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