segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Crítica | Brinquedo Assassino (2019)

Brincadeira atualizada

O que une os personagens Freddy Krueger, Jason e Michael Myers? Além de serem ícones do cinema de horror moderno, o trio sofreu com desastrosas refilmagens. Daquelas que subestimam a inteligência do público. Que, ao invés de tentarem trazer algo minimamente novo, só querem capitalizar com “marcas” populares. Não podemos, porém, vilanizar o conceito de remake. Ora e vez somos surpreendidos com obras corajosas o bastante para pensar fora da caixinha. Sem medo de soar exagerado, Brinquedo Assassino sobra na turma dos reboots dos ‘slashers movies’ oitentistas ao levar o conceito de atualização a sério. Numa sacada de mestre, todo o background paranormal envolvendo um espírito maligno encarnado num brinquedo é substituído por uma crítica premissa tecnológica. O que o diretor Lars Klevberg não é tão simples assim. Ele consegue criar sem descaracterizar a essência do original. 

No papel, a nova versão de Brinquedo Assassino segue as diretrizes do material fonte. Temos um vilão extremamente carismático, uma irônica aura trash, um sinistro flerte com o lúdico. O cineasta, porém, não se contenta em apenas repetir o que já foi feito previamente com efeitos visuais mais caprichados. Com base no esperto argumento assinado por Tyler Burton Smith, o realizador é sagaz ao aproximar o filme das novas gerações. A criança inocente dos anos 1980 ficou para trás. Por mais que a referência ao clássico ET seja evidente (tem muito de Spielberg na construção estética do longa), Andy (Gabriel Bateman, excelente) não é mais a vítima indefesa de outrora. Um simples boneco com uma faca na mão não seria páreo para a nova garotada. Consciente disso, Lars Klevberg, numa sacada inteligente, se apropria de elementos do cinema Sci-Fi para empoderar o seu antagonista. Buddi, ou melhor, Chucky, agora é um brinquedo faz tudo conectado ao Wi-Fi disposto a aprender com o seu “melhor amigo”. 

A origem do vilão não poderia ser mais criativa. O desenvolvimento dele também. Impulsionado pelo expressivo trabalho da equipe de efeitos digitais, Lars Klevberg não se rende facilmente ao horror. O realizador é cuidadoso ao construir a relação entre o solitário protagonista e o reprogramado boneco. O primeiro, em especial, é um primor. Existe sentimento. Existe cumplicidade. Existe esmero ao traduzir a realidade daquele menino às avessas com a sua atarefada mãe solteira (Aubrey Plaza, como sempre radiante) e o seu insensível possível padrasto. O roteiro se sustenta em elementos reconhecíveis para estreitar o elo entre Andy e Chucky. Uma construção sólida o bastante para permitir que o longa enxergue além do terror. O novo Brinquedo Assassino instiga ao usar o viés moralista dos ‘slasher movies’ para construir um pseudo estudo sobre as sequelas da disfuncionalidade familiar. Embora use e abuse do maniqueísmo (o que aqui faz todo o sentido), Klevberg, nas entrelinhas, é criativo ao notar a solidão, a falta de diálogo, a exposição a cultura da violência e a perda da infância. 

É a partir destes conflitos que o argumento molda o comportamento de Chucky. O vilão, de certa forma, reflete a angústia do seu amigo. Tudo, claro, sob uma lógica distorcida. É ela, na verdade, que turbina a explosão de trasheira que repentinamente toma conta da tela. O que começa de forma inofensiva cresce à medida que a bizarra criatura experimenta a dor de Andy. Influenciado por títulos como It: A Coisa e Stranger Things, Klevberg consegue abraçar o horror estilizado sem sacrificar a vibe aventuresca. O que é um acerto retumbante. O novo Brinquedo Assassino, tal qual o original, se leva bem pouco a sério. Embora, é fato, o roteiro deixe escapar oportunidade de se aprofundar mais na desordem do emocional\afetiva do personagem, o diretor compensa ao criar uma atmosfera de tensão revigorante. O fantástico trabalho de voz de Mark Hamill está longe de ser a principal virtude do longa. Klevberg capricha no visual do remake. Constrói composições cênicas genuínas e impactantes. 

A luminosa fotografia em tons primários de Brendan Uegma torna tudo inesperadamente imagético. Chucky cresce enquanto antagonista graças ao virtuosismo estético da película. Sua presença ameaçadora é construída a partir do olhar avermelhado, da maneira com que o diretor explora a sua silhueta e do singular trabalho da equipe de animadores. A limitação tecnológica do boneco, aqui, é parte da atmosfera de estranhamento. Mesmo sem entregar tudo o que prometia no clímax, Brinquedo Assassino entra para uma seleta lista de remakes exemplares. É divertido, contextualizado, bem executado e, tal qual o próprio antagonista, remodelado para atender os seus novos amiguinhos.

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