quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Crítica | Rebecca: A Mulher Inesquecível

Fiquem com o clássico!

O que Ben-Hur (1959), Scarface (1983) e Os Infiltrados (2009) têm em comum? Ambos são remakes. Ambos também são obras excepcionais. Assim como essa trinca existe uma vasta gama de refilmagens tão (ou até mais) impactantes que os originais. Portanto não sou do time que costuma defenestrar o segmento. Cabe ao público filtrar o joio do trigo. Quer saber como enxergar a linha invisível que separam os remakes que possuem um motivo para existir (como recente O Homem Invisível) dos que não possuem (como o pífio Os Órfãos)? Basta assistir a nova versão de Rebecca: A Mulher Inesquecível. Ao contrário do inesgotável clássico homônimo dirigido por Alfred Hitchcock, a produção original Netflix estrelada pela carismática Lily James se revela o tipo de obra que nasceu datada. 

É impossível explicar o que o diretor Ben Wheatley tentou fazer aqui. Reconhecido por títulos provocantes como o errático No Topo do Poder, o cineasta frustra ao tratar o texto da escritora Daphne Du Maurier de forma quadrada e desconectada da realidade. Assombrada pelo fantasma da Hitchcock, a sua versão se perde entre o clássico e o moderno. O problema não está somente na falta de pulso narrativo. O realizador não consegue em momento algum definir o tom da obra. Nem tão pouco entregar algo novo. Wheatley se vê refém do material fonte. Rebecca fracassa em tudo o que tenta. O romance entre a dama de companhia vivida por Lily James e o cobiçado viúvo interpretado por Armie Hammer é pura água com açúcar. O potencial duelo de classes é esquecido. O mistério envolvendo os “fantasmas” escondidos na mansão nunca é tratado como prioridade. O suspense psicológico é de uma superficialidade imperdoável. Rebecca, a saudosa esposa, é uma personagem ausente que permanece ausente. 

Isso porque o roteiro, talvez na ânsia de proteger o seu plot twist, nunca se aprofunda nos segredos dela. Rebecca não intriga, não ameaça, nem tão pouco causa algum tipo de comoção. Ao contrário do que indica o subtítulo, ela é esquecida em boa parte da trama. Tudo o que diz respeito a ex-esposa surge de forma conveniente. A falta de ideias de Wheatley (e do argumento por consequência) é constrangedora. Ele simplesmente não consegue explorar o sombrio e requintado cenário. Nem desenvolver a deterioração emocional da nova Srª De Winter. O classicismo visual em nada acrescenta à narrativa. Pelo contrário, mais confunde de que elucida. Enquanto a fotografia em tons dourados sugerem o sonho da princesa, os fatos denotam repressão e pesadelo. Um contraste que, à medida que a trama avança, descobrimos ser totalmente involuntário. Se existe alguma tensão na película, ela nasce da angústia impressa em tela pelo talentoso elenco e da presença nebulosa da instigante governanta vivida pela fantástica Kristin Scott Thomas. E só disso. 

As escolhas do roteiro são indefensáveis. O que fica evidente quando Rebecca: A Mulher Inesquecível tenta (tardiamente) se desprender do texto original. É inacreditável que, em 2020, as roteiristas Jane Goldman e Anna Watherhouse assinem um script com uma personagem feminina tão tola e contraditória. Me arrisco a dizer, inclusive, que Alfred Hitchcock, em 1940, consegue sublinhar melhor os vícios de uma sociedade patriarcal do que o remake de 2020. É inexplicável a permissividade para com os desdobramentos do plot. O espanto causado pelo último ato não nasce devido a uma surpresa, ou ao choque visual, mas da pobre construção dramática\narrativa. O tipo de desleixo que nos impede de entender até mesmo as motivações da protagonista. A frase final, por exemplo, não faz sentido. Pelo menos eu não vi ninguém enfrentando qualquer incêndio na trama... 

Condescendente com o masculino, Rebecca não tem um décimo da tensão da versão de Hitchcock. Não tem também a vitalidade, a energia inquietante e nem tão pouco a capacidade para extrair algo novo (as possibilidades eram tantas...) do plot. Um filme que nasceu velho. Na dúvida, fique com o clássico. Essa é a outra lição que eu tenho a ensinar sobre remakes.

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