segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Crítica | Os 7 de Chicago

O mundo segue olhando!

É tentador se empolgar com filmes como Os 7 de Chicago. O tipo de obra com um ‘timing’ perfeito. Um drama de tribunal sobre a violência policial no fatídico ano de 1968 lançada justamente num momento em que a história se repete nos EUA. Com o seu dinamismo usual, o diretor e roteirista Aaron Sorkin (A Rede Social) bate nas pessoas e nas instituições certas. É implacável ao notar a repetição de velhos “hábitos” do governo americano. O preconceito enraizado no Estado. A seletividade judicial. A mentalidade repressora de um sistema com tendências antidemocráticas. Um título progressista por natureza. O que está em análise aqui, porém, não é a mensagem. 

Enquanto cinema, Os 7 de Chicago perde oportunidades ao seguir uma cartilha biográfica limitante e convencional. O cenário em questão não poderia ser mais rico e efervescente. Temos a guerra do Vietnã, o movimento hippie, a contracultura, a luta pelos direitos civis. Nos cinco primeiros minutos, Aaron Sorkin, com uma montagem afiadíssima, introduz todos estes elementos com um misto de humor, peso e originalidade. O começo não poderia ser melhor. O realizador, entretanto, não consegue administrar todos estes temas com a mesma propriedade. Acostumado a retratar o eu, o cineasta de A Rede Social (sobre o criador do Facebook Mark Zuckerberg), A Grande Jogada (sobre a organizadora de jogos de pôquer Molly Bloom) e O Homem que Mudou o Jogo (sobre o gestor esportivo Billy Beane) tropeça ao focar no nós. O problema está menos no desenvolvimento dos protagonistas e mais no contexto em que eles estão inseridos.

Os 7 de Chicago é eficaz ao estudar a mentalidade dos líderes dos grupos anti-Guerra do Vietnã e estabelecer a conflitante dinâmica entre eles. Embora do mesmo lado da equação, eles pensavam diferente. Reagiam a repressão com “armas” distintas. Na ânsia de se assumir como um filme de tribunal, no entanto, Sorkin abstrai o drama externo. Não se aprofunda nos detalhes sócio-políticos que catalisaram os protestos, nem tão pouco na veia repressora de um estado brutalizado. Mostra ainda um frouxo senso de prioridade ao dar voz aos ativistas. O longa se encanta mais, por exemplo, pela ironia hippie de Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) do que pela amargura silenciada do Pantera Negra Bobby Sealle (Yahya Abdul-Mateen II). Talvez inebriado pela chance de escancarar a parcialidade daquele tribunal, o cineasta se afasta do elemento humano. O clamor popular fica sempre em segundo plano.

O que se reflete também nas escolhas narrativas do realizador. Sempre que precisa contextualizar um fato, Aaron Sorkin troca o peso do diálogo por flashbacks expositivos. Por mais impactantes que eles sejam, os planos abertos que antecedem o caos, em especial, são dignos de nota, o cineasta enfraquece a obra ao telegrafar os seus movimentos. Ao expor sem provocar. Ao nunca tirar o público da zona de conforto. Ao nunca cobrar uma reação popular. A violência, quando escancarada, segue uma cartilha convencional e por vezes maniqueísta. Sempre que quer extrair alguma emoção do espectador, Sorkin aposta em soluções quadradas. A solene trilha sonora, por sinal, é daquelas que não perde uma oportunidade de exaltar a figura dos julgados com acordes engrandecedores.

Nos momentos em que não tenta tornar tudo o mais palatável possível para o público, por outro lado, Os 7 de Chicago cresce. Consciente da impossibilidade de transitar por todos os problemas enfrentados pelos EUA no final da década de 1960, o diretor é habilidoso ao, dentro do microcosmo proposto, o tribunal, notar as chagas na sociedade americana da época. A verdade surge no desconforto. O isolamento proposital de Bobby Sealle na corte expõe o racismo do governo americano. A postura errática do seletivo juiz Julius Hoffman sugere a debilidade do seletivo sistema judicial. A introspecção do comedido ativista Tom Hayden insinua a parcela de culpa dos progressistas mais moderados. O incômodo do promotor Richard Schultz evidencia a quebra de limites. O misto de impotência, raiva e frustração experimentado por parte da sociedade americana da época é expurgado à medida que o julgamento avança. Sorkin consegue, nas entrelinhas, encostar nas verdadeiras feridas. Enxergar além da recriação encenada. A tensão é latente. As palavras cortantes.

E como se não bastasse o pulso narrativo de Aaron Sorkin na construção das sequências de tribunal, o elenco reage aos fatos com energia e intensidade. Enquanto Sacha Baron Coen rouba a cena ao capturar o deboche de alguém acostumado a ridicularizar o sistema, Yahya Abdul-Mateen II esbanja intensidade ao dar voz a vítima modelo de um estado segregador. Enquanto Frank Langella assume a fragilidade conservadora do seu personagem com maestria, Mark Rylance responde a seletividade com uma indolência cativante. Todos estão realmente muito bem. Todos conseguem alcançar as notas dramáticas exigidas pelo roteiro. O que, de certa forma, eleva o patamar de um script por vezes protocolar. Ora dispersivo, ora contundente, Os 7 de Chicago fecha numa curva ascendente ao traçar um paralelo entre o passado e o presente para investigar o racismo estrutural (e explícito) em diversos setores do governo americano. O mundo continua vendo...

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