sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Crítica | Fita de Cinema Seguinte de Borat

A câmera escondida perdeu utilidade

Desconhecido do grande público, Sacha Baron Cohen devassou um lado racista, misógino e violento da América com o mordaz Borat (2006). Travestido de repórter do “glorioso” Cazaquistão, o comediante colocou o dedo em enraizadas feridas ao testar os limites do gênero documental. Com uma câmera na mão, muito improviso e um senso de humor inclemente, Cohen escancarou o absurdo do nosso dia a dia. Usou a comédia para enxergar a raiz de um discurso distorcido que, alguns anos depois, chegou ao topo do poder nos EUA. O polêmico filme, um sucesso estrondoso, transformou a carreira deste ousado ator. Uma possível continuação parecia então algo inimaginável. O mundo, porém, nunca precisou tanto deste anárquico repórter. Nem todo herói usa capa. As vezes ele só precisa de um terninho batido, um bigode safado e um “tantinho” de coragem. Num momento de ebulição social e política nos EUA, Fita de Cinema Seguinte de Borat chega para demolir convicções (felizmente) cada vez mais frágeis. 

Ainda mais ousado e destemido que o original, o longa dirigido por Jason Woliner é inclemente ao revelar o estado das coisas de um país que, agora, não precisa mais de câmeras escondidas (ou falsos repórteres) para revelar a sua face mais odiosa. Sem o fator surpresa, Sacha Baron Cohen teve que criar. Teve que enxergar além do humor de situação e do deboche. O resultado é uma comédia impagável do começo ao fim. Recebido com desonra após a realidade do primeiro doc, Borat ganha uma segunda chance quando é recrutado pelo líder do Cazaquistão para entregar um macaco celebridade para o vice-presidente Mike Pence. Tudo muda, no entanto, quando a sua depreciada filha Tutar resolve assumir o lugar do primata para repetir os passos da “princesa” Melania Trump. Com base nesta fantástica premissa, o cineasta é sagaz ao documentar a realidade a partir da ficção.

Se no primeiro filme o humor ácido nascia muitas vezes da reação do cidadão comum à presença deste peculiar estrangeiro, na continuação o desafio foi mais complexo. O texto de Sacha Baron Cohen (ao lado de sete outros roteiristas) precisou se sobressair. Borat 2 não conseguiria depender tanto da espontaneidade. Um obstáculo superado com uma naturalidade espantosa. Combativo como de costume, o comediante não perde a oportunidade de atacar aqueles que se julgam superiores. Aqueles que ameaçam, segregam e reprimem. O alvo máximo, claro, é o governo (Mc)Donald Trump. Em sua face mais política, a sequência é feroz ao realçar o grotesco, ao notar a hipocrisia no discurso do atual presidente, a sua mentalidade machista, os seus laços escusos, a aproximação com a extrema-direita mundial, o seu desvirtuado ‘modus operandi’ e o negacionismo. A piada com o livro que conta todas as verdades, o Facebook, e o Holocausto é irresistível.

Diante da institucionalização das fakes news, vide algumas das declarações oficiais dadas durante o próprio longa, enganar ficou mais difícil. É preciso ter talento (ou poder) para se destacar. Uma abordagem milimétricamente calculada que culmina numa sucessão de fatos inacreditáveis e realmente chocantes envolvendo um dos braços direitos do líder Republicano. Borat 2, involuntariamente ou não, se revela um filme denúncia dos grandes. A essa altura, porém, atacar Trump e os seus aliados poderia soar redundante. Consciente disso, Sacha Baron Cohen mais uma vez se volta também para a sociedade americana. E, pasmem, apesar do estrondoso sucesso do antecessor, a banalização do discurso de ódio logo é capturada pelas lentes de Jason Woliner. Toda a sequência no comício anti-isolamento social (sim, em meio a tudo isso aconteceu a pandemia do COVID-19) é ao mesmo tempo hilária e assustadora. As barbaridades ditas por Borat são recebidas com risos, celebração e entusiasmo. O que, volto a frisar, revela a nova ordem das coisas. A câmera escondida perdeu a sua utilidade. As redes sociais exibem diariamente tudo aquilo que Cohen suou para revelar no original. Implacável enquanto documento desta realidade, Borat: Subssequent Moviefilm surpreende ao funcionar também como peça de ficção. O fio condutor da trama, a disfuncional relação entre pai e filha, leva o longa para um outro lugar. Mais afetuoso, mais íntimo e tão provocador quanto o antecessor. Disposto a viver o seu sonho de princesa, o que, sob o ponto de vista dela, era ser dada a um homem rico e poderoso, Tutar traz o feminismo para o centro da equação.

A fantástica Maria Bakalova rouba o show ao criar uma personagem ingênua, extravagante e curiosa. Submissa ao masculino, ela se vê obrigada a mudar para agradar seu pai e o seu país. Um processo de transformação física que logo vira uma revigorante jornada de (auto) descobertas. É a partir dela que o roteiro se insurge contra a desigualdade de gênero, os padrões impostos e a misoginia. Mesmo diante de temas delicados como esse, o roteiro, sempre que preciso, é cuidadoso ao estabelecer a troca de experiências entre Borat e Tutar. O empoderamento dela dialoga com a mudança de mentalidade dele. Todo mundo pode mudar... O par perfeito para Sacha Baron Cohen (mais uma vez com um assustador timing cômico), Bakalova impressiona com o seu hilariante humor físico. É interessante notar que, mesmo em ambientes “reais” preparados para a presença dos dois atores, a dupla é capaz de causar desconforto e vergonha alheia. O que falar, por exemplo, da cena de dança no baile de debutantes, ou de todas as passagens na loja de fax transformada numa espécie analógica de whatsapp. É preciso ser muito mal-humorado para não chorar de rir com estes momentos.

Como se não bastasse todos os predicados citados acima, Borat 2 se sustenta também num texto cômico brilhantemente escrito e coreografado. Ninguém hoje poderia entregar uma sequência tão inteligente como a do bebê e a da clínica antiaborto. A simplicidade visual, combinada com a dinâmica montagem, só ajuda a potencializar estas gags. Vou além. Nenhum filme em 2020 vai nos presentear com um ‘plot twist’ tão magistralmente construído quanto o que vemos aqui. Disposto a mudar a ordem das coisas e a imagem dos atual EUA aos olhos do mundo, Fita de Cinema Seguinte de Borat reage a opressão com uma metralhadora giratória de piadas reveladoras capaz de expor a face mais suja da política\sociedade americana. Uma comédia engraçadíssima, absurda e anárquica que, apesar de todas estas características, tem bem pouco de sátira.

 

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