sexta-feira, 19 de junho de 2020

Lista | Vinte Filmes Indispensáveis para Conhecer o Cinema Nacional


Nunca foi tão importante escrever sobre o cinema brasileiro. Desde os anos 1990, com o fatídico fim da Embrafilme, o cenário não se revelava tão sombrio para as produções nacionais. Hoje temos no poder alguém que enxerga a classe artística como um inimigo. O Ministério da Cultura foi literalmente rebaixado. Os representantes do governo parecem mais interessados em destruir do que em produzir. O coronavírus paralisou produções, fechou exibidores e limitou investimentos do setor privado. Está cada vez mais claro que o cinema precisará enfrentar um novo processo de reconstrução no Brasil. E o público (como de costume) será peça chave neste período. Exaltado por poucos, estigmatizado por muitos, o cinema brasileiro é (gostem ou não) uma potência mundial. Mesmo com inúmeros períodos de desaceleração no investimento, as produções nacionais sobreviveram na base da resistência. Muitas foram aclamadas ao redor do mundo. Nós, me incluo nesta, precisamos conhecer o real cinema nacional. Notar a pluralidade, a veia crítica, a riquíssima história. Neste Dia do Cinema Brasileiro, portanto, preparei uma lista com vinte filmes indispensáveis para conhecermos um pouco da grandeza das nossas produções. Muitos destes disponíveis em ótima qualidade em players como o Canal Brasil, o Telecine e no próprio Youtube.


- O Ébrio (1946)

E nada melhor do que abrir esta lista com um filme menos conhecido. O Ébrio (1946) é o Nasce Uma Estrela brasileiro. Estrelado pelo então astro da música Vicente Celestino e dirigido pela pioneira Gilda de Abreu, o longa funde com autenticidade o humor das chanchadas com o drama do neorrealismo. Um retrato da sua época moralista que, embora com uma abordagem obviamente datada, é humano e virtuoso, principalmente quando resolve estudar o efeito da ganância e da perversidade na identidade de um indivíduo. Nem mesmo a problemática representação racial fruto do seu tempo é capaz de ofuscar o charme desta esquecida produção do cinema nacional.

- Rio, Quarenta Graus (1955)

O que escrever do filme que ajudou a moldar o Cinema Novo. Na década de 1950, Nelson Pereira dos Santos propôs a mais fidedigna crônica sobre a realidade do RJ. No morro e no asfalto. Na comunidade e na política. Com uma montagem inacreditável, o cineasta passeia pela então capital da república com um olhar atento para as idiossincrasias desta metrópole. O foco está nos contrastes. Na naturalização dos problemas. Fazendo um brilhante uso dos não atores, dos Santos renega qualquer tipo de maniqueísmo. A realidade é exposta como ela é. O realizador exalta a resiliência, a falta de perspectivas, o conservadorismo, a insensibilidade, a violência, a corrupção, o senso de comunidade, a tristeza, a alegria. Com uma forte pegada neorrealista, Rio, Quarenta Graus funciona também como um precioso retrato de um RJ cinquentista. Nelson Pereira dos Santos escancara as muitas faces da então Cidade Maravilhosa. O morro, aqui, é tão cenário quando a Praia de Copacabana, o Pão de Açúcar, o Maracanã. As diferenças de classe são expostas a partir da perspectiva de um grupo de crianças vendedores de amendoim. No fim, a visão do RJ urbano pensado por Nelson Pereira dos Santos segue assustadoramente atual. A genial sequência final impacto por se revelar tão desconfortavelmente reconhecível.

- Rio, Zona Norte (1957)

Sob a realista batuta de Nelson Pereira dos Santos, Rio, Zona Norte (1957) escancara como pouca coisa mudou desde então na rotina de uma comunidade do Rio de Janeiro. Subvertendo elementos das populares chanchadas, o engajado realizador renega o tradicional otimismo do subgênero ao narrar a jornada de um compositor de sambas em busca do seu lugar ao sol. No embalo da estupenda performance de Grande Otelo, que, num dos trabalhos mais densos da sua carreira, reforça a desconcertante carga dramática desta crônica social, Nelson Pereira dos Santos invade uma realidade ainda hoje reconhecível numa trama crítica, narrativamente envolvente, com personagens tridimensionais e uma visão de mundo muito própria. Espírito, o protagonista, simboliza o homem negro que acredita, que corre atrás do seu, que luta por dignidade, que briga constantemente contra um sistema seletivo, injusto e preconceituoso. Ao longo desta árdua batalha, porém, a triste realidade anda de braços dados com as suas belas canções. O que vemos são obstáculos reconhecíveis. Espírito é enganado, é agredido, é vítima de um círculo vicioso que mata, furta e condena muitos à sua própria sorte. Um homem cansado de esperar o amanhã, mas disposto a encarar a sua realidade da forma mais poética possível. Um retrato social incômodo e necessário, Rio, Zona Norte se revela uma obra sobre sonhos roubados, sobre o estrago causado pela desigualdade e a triste rotina daqueles que vivem à margem da oportunidade.

- Os Cafajestes (1962)

Com uma natureza transgressora, Os Cafajestes (1962) usa o feminino para discutir, dentre outras coisas, a masculinidade frágil. Mais do que causar repulsa ao expor a vulnerabilidade das mulheres num ambiente machista, o diretor Ruy Guerra é contundente ao mirar na imoralidade masculina. Impressiona como a anárquica produção nacional renega convenções tradicionais. O que começa com uma comédia com ar de crônica urbana ganha um vanguardista contorno dramático à medida que os protagonistas veem a sua visão de mundo confrontada pelas suas vítimas. Os cafajestes vividos por Jece Valadão e Daniel Filho são abusivos por natureza. A icônica sequência da nudez de Norma Bengell, por exemplo, é nauseante. A câmera giratória de Guerra desconforta através do nu. Ele provoca o público com a sensualidade. Ele atribuiu um novo sentido a “exposição” feminina. Embora se perca nas suas dispersões\pretensões narrativas, Os Cafajestes cresce quando investiga os sentimentos destes homens. Aos olhos do cineasta, assim como a veia abusiva, a ambição, a tristeza, o vazio, a impotência e a ignorância nascem da masculinidade frágil. Eles sacrificam o sentimento em prol da chantagem. Eles sacrificam tudo pelo material. Os Cafajestes, no fim, são criaturas digna de pena que nunca vão conseguir o que querem. Eles nem sabem o que querem.

- Assalto ao Trem Pagador (1962)

Numa época em que os movimentos do Cinema Novo e do Cinema Marginal surgiam como um contraponto as desgastadas chanchadas, o diretor Roberto Farias se posicionou entre os grandes sem escolher lados, transitando das obras mais questionadoras aos títulos mais populares numa carreira recheada de títulos de sucessos. O que fica bem claro no seu primeiro grande trabalho, o poderoso O Assalto ao Trem Pagador (1962). Lançado num momento de reafirmação do cinema nacional, o longa conquistou o público e a crítica graças a sagacidade de Farias em entregar uma obra universal que não parecia interessada em pertencer a uma única corrente cinematográfica. Aliando o vanguardismo estético do Cinema Novo ao forte (e franco) viés social do Cinema Marginal, o realizador “esmurra” o estômago do espectador ao mostrar, a partir de uma história real, o impacto da desigualdade social sob um prisma íntimo e assustadoramente atual. Falando a “língua” do povo, Farias nos brinda com uma crônica sobre a vida dos marginalizados na década de 1960, refletindo sobre questões raciais e políticas num thriller de assalto que – infelizmente – insiste em não envelhecer. 

- O Pagador de Promessas (1962)

Um dos mais impressionantes retratos sociais cinematográficos do Brasil, O Pagador de Promessas é uma daquelas obras inestimáveis. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o longa dirigido por Anselmo Duarte captura de forma única a essência da sociedade brasileira. Com uma linguagem altamente crítica e um poderoso time de atores, capitaneado por um expressivo Leonardo Villar, o fascinante drama é uma prova viva que a nossa sociedade pouco mudou desde então. A partir de uma premissa genuinamente tupiniquim, o cineasta usa um singelo gesto de fé como o agente catalisador para a construção de um plot marcado pelo cinismo, pelo sensacionalismo e pela intolerância religiosa. Mais de cinco décadas depois, Zé do Burro segue representando a verdade do brasileiro marginalizado.

- Vidas Secas (1963)

Impressionante como Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos segue atual. Óbvio que o texto de Graciliano Ramos ajuda, mas, cinco décadas depois, o que vemos é um cenário muito reconhecível. A "seca" segue matando inocentes, roubando a dignidade, oprimindo. É fácil traçar um paralelo entre o Brasil dos anos 40 pintado através da palheta realista de Nelson e o atual. A "seca", agora, assume a face da corrupção, dos desmandos estatais. O mesmo governo que deu dignidade ao trabalhador, não foi competente o bastante para mantê-la. A esperança se esvai abruptamente. Sem reconhecer direitos. Sem respeitar a dignidade. O diálogo final de Vidas Secas é sintomático. O contexto pode até ter mudado, mas, no fim, vemos um pai e mãe divagando sobre o futuro. Ele defende a ignorância, a manutenção dos erros, ela mira a educação, a cultura. Ela tinha a razão, ele a noção da realidade que os cercava.

- Os Fuzis (1964)

Alguns filmes falam por si só. Os Fuzis é, em sua essência mais pura, o mais perto que a ficção pode se aproximar da realidade. Ruy Guerra mergulha na rotina de um destacamento militar no sertão do Brasil para escancarar as sequelas mais implacáveis da miséria. Não existe um segundo nesta obra que seja “ameno”. As chagas da desigualdade são expostas à sangue-frio. Como se, através deste trágico retrato, o cineasta quisesse causar algum tipo de reação. O choque pelo choque não tem vez aqui. O sentimento de revolta poucas vezes foi tratado de forma tão factível dentro do cinema nacional. Em suma, um documento da nossa história pesado, dramático e dilacerante.

- A Meia Noite Levarei sua Alma (1964)

Antes de outros expoentes do cinema de horror mundial, entre eles George Romero, Dario Argento e John Carpenter, José Mojica Marins conseguiu se aproximar de uma linguagem trash\marginal sem renegar o clássico. O personagem do Zé do Caixão tinha muito de Drácula\Nosferatu e ao mesmo tempo nada. As referências eram claras. O visual soturno. Os gestos arcados. A aparência pálida. O “apetite” por jovens mulheres. Em sua essência, porém, Coffin Joe (como ficou conhecido nos EUA) era um personagem mundano. Suas intenções eram realisticamente perversas. A sua maldade não vinha da mitologia, ou de uma maldição. O que fica bem claro logo no primeiro grande filme de José Mojica Marins, o magnífico À Meia Noite Levarei sua Alma (1964). Lançado alguns meses depois do Golpe Militar, o clássico do cinema de horror brasileiro nos apresentou a um personagem detestável por natureza. Zé do Caixão era um coveiro niilista, machista e misógino que acreditava na vida mais do que tudo. O seu “poder” nascia da opressão sobre os mais fracos. O que, numa análise óbvia, viria a dialogar diretamente com o contexto na época do lançamento do filme. Um Brasil prestes a mergulhar num período de trevas, morte, impunidade e inconsequência humana. Diante de tudo isso, À Meia Noite Levarei a sua Alma se tornou um ‘hit’ cult que resistiu ao tempo. Um filme com um charme original e um inteligente ar subversivo que ainda hoje é uma das principais referências do cinema de horror brasileiro.

- Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, o diretor Glauber Rocha explora símbolos tradicionais num relato visceral sobre os efeitos da miséria. O naturalismo fantástico catalisa o drama do sertanejo obrigado a se rastejar para fugir. A fé cega, a violência cega, a fome cega, os poderosos matam. A fuga, no fim, é um devaneio. Aos olhos do aclamado cineasta, se o sertão virasse mar, ele seria vermelho cor de sangue.

- Terra em Transe (1967)

Talvez o filme mais influente da nossa história, Terra em Transe é a crônica perfeita de um Brasil que insiste em não mudar. O que Glauber Rocha faz aqui é algo impossível de se traduzir em palavras. É estilo aliado ao conteúdo. É estética aliada ao questionamento. O detestável jogo político brasileiro é escancarado numa obra assustadoramente reconhecível. Os arquétipos explorados, o discurso, a mentalidade, os problemas sociais, tudo remete ao Brasil das últimas duas décadas. Lá em 1967, Glauber Rocha já mostrava os perigos da popularização. E a figura do conservador interpretado com maestria por Paulo Autran nunca foi tão atual. Uma obra que, embora não seja das mais “acessíveis” para o grande público, é indispensável pela sua abordagem temática, pelo seu vanguardismo estético e principalmente pela sua atemporalidade histórica.

- O Bandido da Luz Vermelha (1968)

"Um país sem miséria é um país sem folclore". Cinema marginal na veia, O Bandido da Luz Vermelha é cínico ao refletir a sujeira de um Brasil ditatorial. Anárquico, Rogério Sganzerla extrapola os fatos ao usar o imoral personagem do nosso cotidiano como o espelho de uma sociedade injusta e violenta. Com uma linguagem própria, o jovem diretor de 22 anos se apropria do sensacionalismo midiático ao pincelar uma visionária crônica de um Brasil imutável. O 3º mundo não explodiu, mas o crime organizado segue próximo ao poder, a desigualdade segue matando e a opressão ameaçando. O Bandido da Luz Vermelha é enfático ao questionar o regime militar a partir da figura do fora da lei. A caçada dele escancara a ineficiência, a brutalidade e a corrupção moral do país. As referências ao nazismo estão longe de serem aleatórias. O choque, no fim, é literal. O deboche é inevitável. O Laranja Mecânica tupiniquim, O Bandido da Luz Vermelha é uma experiência cinematográfica implacável. Um filme atemporal, anárquico e irônico como muito a dizer sobre a ordem das coisas no nosso país.

- Eles Não Usam Black-Tie (1981)

Um país sem memória está fadado a repetir os erros do passado. Um fato que fica bem claro quando nos deparamos com a pérola do cinema nacional chamada Eles Não Usam Black-Tie. Num momento em que indivíduos vão às ruas para defender o autoritarismo, evocar um dos períodos mais sombrios da nossa história recente, o longa dirigido por Leon Hiszrman escancara a realidade enfrentada por muitos ao invadir a intimidade de uma família da classe operária. Um panorama ainda hoje extremamente reconhecível. A violência, o preconceito e a desigualdade surgem como o agente catalisador de uma obra inflamada por natureza, um relato realístico sobre os homens e mulheres trabalhadores que ajudariam a mudar o rumo do país nos anos seguintes. Uma pena que o idealismo de figuras como Otávio tenha se perdido em meio a corrupção e a ilusão de um país mais justo e igual.

- Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981)

Uma daquelas pancadas cinematográfica, Pixote desnuda a infância das inúmeras vítimas da desigualdade num drama intenso, sujo e humano. Um retrato trágico de um Brasil que massacra o futuro. Hector Babenco trata a inocência do protagonista como um poderoso instrumento de choque. Não existe espaço para o maniqueísmo no mundo de Pixote. Babenco coloca o dedo na ferida ao expor a realidade que abusa, que corrompe, que mata. Ele transforma a índole do jovem marginalizado em instinto de sobrevivência. Uma crônica infelizmente ainda hoje atual e revoltante.

- Central do Brasil (1998)

Central do Brasil é cinema brasileiro em sua mais pura essência. O filme que mostrou para uma geração o DNA esquecido do nosso cinema. Uma obra humana, realista, por vezes doce, por vezes inclemente, sobre um Brasil que até então praticamente não tinha voz. Um filme não só indispensável, mas necessário, principalmente por sua inspiradora mensagem de esperança em tempo difíceis. Tudo conduzido com maestria por Walter Salles e Fernanda Montenegro.

- Cidade de Deus (2002)

Sinceramente, Cidade de Deus está nesta lista por protocolo. Se você gosta de cinema e não assistiu a esta catarse em formato fílmico pilotada por Fernando Meirelles. É o Brasil urbano em estado puro. O filme de máfia tupiniquim. Um projeto audacioso marcado pelo realismo, pela ironia, pela natureza crítica da obra. A violência surge como instrumento de sobrevivência. Com um elenco majoritariamente formado por jovens, Meirelles invade a vida na comunidade com um olhar atento para os obstáculos causados pela desigualdade. Uns vivem, outros sobrevivem. Uns protegem, outros matam. Com uma série de sequências pesadíssimas, Cidade de Deus é um retrato sem filtros de um lado do RJ impiedoso, visceral e ferozmente urbano.

- Tropa de Elite (2007)

A essa altura não é novidade para ninguém a capacidade do cinema brasileiro em expor a realidade. Um traço de identidade que foi se renovando com o passar dos anos. Filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite, no entanto, têm como mérito o fato de ter cruzado a barreira do cinema independente. Assim como já havia acontecido com o longa dirigido por Fernando Meirelles, o longa dirigido por José Padilha ganhou um status pop instantâneo. O filme, vazado antes de lançado, se tornou um fenômeno. As cópias se espalharam pelo RJ graças à pirataria. A metalinguagem ganhou um novo sentido. O filme foi vítima do crime organizado, mas ao mesmo tempo cresceu através dele. O retorno, financeiro, foi prejudicado. Óbvio. Mas o status criado em torno do projeto o transformou num das obras nacionais mais populares do século XXI. Os motivos, na verdade, são claros. José Padilha expõe a corrupção no seio da instituição que deveria servir e proteger. Com personagens fantásticos, conflitos dramáticos, um clima de tensão impressionante, sequências de ação impactantes e um senso de humor mordaz, Tropa de Elite é um triunfo do cinema nacional.

- Que Horas Ela Volta (2014)

Quantas mulheres sacrificaram tanto em prol das crianças de terceiros? Engraçado, crítico e extremamente universal, Quer Horas ela Volta cativa ao promover de maneira natural um poderoso relato sobre a atual estrutura social brasileira. Utilizando como pano de fundo a típica relação entre patrão e empregado, o afiado longa dirigida por Anna Muylaert (Durval Discos) é brilhante ao mostrar o impacto da desigualdade socioeconômica na rotina de duas mulheres ligadas pelo sangue, mas separadas pelas diferentes formas com que encaravam os seus papeis dentro da sociedade. Revelando os contrastes e a hipocrisia por trás da estrutura de classes do nosso país, Muyalert encontra nas vibrantes atuações de Regina Casé e Camila Márdila a força necessária para pintar, através da agitada relação entre uma resignada mãe e a sua independente filha, um moderno e espirituoso retrato social.

- Bingo: O Rei das Manhãs (2017)

Indo de encontro ao tom protocolar que tomou conta das cinebiografias nacionais, vide os recentes Elis e João, O Maestro, Bingo: O Rei das Manhãs eleva o nível da brincadeira ao não se contentar em desvendar somente a trajetória do homem por trás de um fenômeno. Sob a estilosa batuta de Daniel Rezende, que estreia na direção de longas metragens após anos trabalhando na montagem\edição de títulos do porte de Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007) e A Árvore da Vida (2011), o filme equilibra ficção e realidade com extrema desenvoltura, absorvendo a aura politicamente incorreta dos anos 80 numa obra densa e irreverente. Embora inspirado na vida de Arlindo Barreto, o responsável por encarnar a versão mais popular do icônico palhaço Bozo, o realizador brilha ao encontrar as brechas necessárias para ampliar o escopo da trama, se aprofundando em temas bem mais complexos ao traduzir o impacto da fama na rotina de um ator movido pela luz dos holofotes. Impulsionado pela catártica performance de Vladmir Brichta, num trabalho capaz de redefinir uma carreira, Bingo se revela então uma película sobre os extremos da carreira artística, um relato íntimo, hilário e tecnicamente primoroso sobre um homem em busca de reconhecimento precisando conviver com as consequências da sua própria ambição.

- Bacurau (2019)

E nada mais justo do que fechar esta lista com o último fenômeno cultural do cinema nacional. Alguns filmes estão interessados em propor um diálogo. Outros em passar a sua mensagem. Custe o que custar. Bacurau é o mais novo representante desta lista. Sem um pingo de condescendência, o longa dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles busca em símbolos tipicamente brasileiros a força motriz para tirar do papel um sonoro e agressivo grito de resistência em prol dos esquecidos. Com um pé no Western e outro no Horror Social, o filme usa a violência como um inclemente instrumento de reflexão, indo além do choque pelo choque ao tratar o banho de sangue como uma resposta à altura dos oprimidos. Daqueles que, após anos lutando por dignidade e igualdade, resolvem se insurgir contra alguns velhos e reconhecíveis fantasmas. A morte, aqui, sugere defesa, mas também revolta, raiva, dor... Bacurau, concorde ou não com a sua mensagem final, responde na mesma moeda a fim de reequilibrar uma ingrata balança desnivelada pela ausência do estado, pela desigualdade, pela falta de oportunidades e pela repressão.

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