sábado, 13 de junho de 2020

Crítica | Destacamento Blood

Lágrimas de Sangue

Poucos realizadores têm tanta propriedade para falar sobre o racismo enraizado nos EUA quanto Spike Lee. Suas obras escancaram a verdade nua e crua. Ele se acostumou a dar voz ao que sempre foram silenciados. A expor a realidade das ruas. As feridas de um ambiente desigual. A guerra urbana do nosso dia a dia que segue ceifando vidas negras. Em Destacamento Blood, Spike Lee discute a formação da identidade do afro-americano nos EUA num microcosmo complexo e raivoso. Ao contrário do empoderador Infiltrado na Klan (2018), o cultuado cineasta “corta na própria carne” ao traduzir o efeito insano da natureza bélica neste dilacerante processo. Os pecados de “guerra”, aqui, são chagas humanas que podem até manchar as virtudes dos seus personagens, mas nunca as apagam. Os pecados são parte de um círculo vicioso que Lee ataca com inigualável veemência numa obra talvez menos sofisticada que o seu último grande projeto, mas não menos contundente. 


Destacamento Blood usa a Guerra do Vietnã apenas como o ponto de partida. Spike Lee está menos interessado na insanidade do conflito em si e mais no que ele representou. Num momento em que o passado se faz tão presente, o cineasta é cuidadoso ao enxergar além do racismo estrutural que levou uma geração de jovens afro-americanos para uma batalha que nunca foi sua. Com uma visão própria sobre o tema, Lee é categórico ao redimensionar as memórias de guerra dos seus expressivos personagens. Se em Infiltrado na Klan o elemento documental surgiu para criar o choque, aqui a realidade embasa o estudo pensado pelo diretor. Aos olhos dele, a formação da identidade afro-americana está diretamente ligada ao sacrifício e por consequência ao conflito bélico. Lee, em insights ferozes e sempre contextualizados, se desloca pela história dos EUA traçando paralelos, notando similaridades, expondo um ‘modus operandi’ cruel e perverso. Da escravidão a Martin Luther King. Da Guerra Civil ao Black Lives Matter. A partir de uma figura emblemática, o jovem capitão interpretado com ímpeto por Chadwick Boseman, o realizador não só politiza a trama, como escancara o rastro de sangue negro deixado neste processo. Norman surge como o símbolo do que o governo norte-americano tentou aniquilar na Guerra do Vietnã. O ideal que nunca se concretizou. A voz silenciada.


Para Spike Lee, no entanto, nada disso foi em vão. As ideias de Norman permaneceram. Perderam alcance, mas sobreviveram. E são elas que catalisam o drama proposto. São elas a alternativa ao círculo vicioso da violência. Tudo se torna mais complexo em Destacamento Blood quando o cineasta decide analisar o efeito deste dilacerante processo de “formação” naqueles ocuparam a linha de frente. Nos soldados que tiveram a oportunidade de viver as ideias de Norman, voltar para casa e perceber que pouca coisa mudou. A realidade está impressa na identidade de Ottis (Clarke Peters), Paul (Delrou Lindo), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock Jr.), na relação entre eles e principalmente na reação deles nesta volta ao passado. O que eles construíram lá no Vietnã foi único. O que eles viveram lá imensurável. É no presente, porém, que está o foco de Lee. Por mais que os didáticos flashbacks por si só contextualizem, o viés crítico da obra assume a sua face mais contundente quando vemos o produto final de uma implacável rotina. O que começa como um reencontro amistoso ganha desdobramentos imprevisíveis à medida que o diretor mergulha na natureza dos seus personagens. No auge da sua maturidade, Lee renega por completo o unidimensional. Estamos diante de homens moldados em maior ou menor escala pelo meio em que viveram. As ideias de Norman são colocadas em cheque quando o eu entra em rota de colisão contra o nós. Quando o choque de filosofias se concretiza. Quando o idealismo se vê preso em um corpo jovem e morto. Ao desvirtuar os seus protagonistas, Lee não os enfraquece, mas os solidifica. Os humaniza. Esse é o fruto de uma formação desigual, racista e repressiva. Naquele microcosmo tão peculiar, o realizador compensa os excessos dramáticos ao propor um comentário bem mais amplo e profundo sobre a identidade do afro-americano. Sobre as alternativas encontradas por muitos para sobreviver à guerra do dia a dia.

Qual diretor no momento em que vivemos teria a coragem para criar um tipo como o complexo Paul? Um homem negro apoiador de Donald Trump. Cansado de apanhar, cansado de viver de migalhas, cansado de lutar para ter o mínimo. Ele é a alma de Destacamento Blood. É a partir dele que Spike Lee assume a sua face mais crítica. Paul reflete a raiva, os traumas, as feridas impostas por anos de açoitamento social. A ideia de não rejuvenescer o elenco nos flashbacks reforça a sensação de que nada mudou. Através dele, Lee coloca o dedo em chagas enraizadas. Como se o sobrevivente carregasse na sua pele a dor dos seus antepassados. Aos olhos do cineasta, Paul surge como o fantasma da desilusão. Paul é a perspectiva de futuro tomada pelo racismo. Paul é uma voz rancorosa de um passado que não pode mais se repetir. O raivoso discurso combativo dele não representa a visão de mundo de Lee, mas dialoga com a decepção de muitos. Consciente disso, o realizador ousa ao explorar o contraditório em prol da sua provocante análise.


O infame boné vermelho com a inscrição Make America Great Again surge como o símbolo de um homem corrompido física e mentalmente. Um símbolo de insanidade, de ganância, de opressão, de ignorância. O atormentado Paul é o produto final do racismo. Nada mais justo que usá-lo como o grande objeto de estudo da obra. Além de expor o drama daqueles que cederam ao caminho da violência como a fuga de uma realidade imutável, Spike Lee renega o lugar comum ao usar um homem negro para divagar sobre um EUA paranoico, esquizofrênico e sem rumo. Um predicado potencializado pela maiúscula performance de Delroy Lindo. O que ele faz aqui é algo ímpar. Ele explode em cena como uma mina terrestre enterrada há décadas. É possível notar a amargura, o sofrimento, a tristeza, o desespero. Lindo expressa sentimento, expressa intensidade. Nem o fato do roteiro flertar com a condescendência no último ato diminui a potência desta performance. Quando Delroy Lindo olha na direção do público, numa propositalmente errática quebra de quarta parede, seu olhar penetra, incomoda, acua. A verdade é desconcertante. Destacamento Blood se alimenta disso para impactar.

Se falta algo ao longa, na verdade, é um verniz narrativo. Implacável enquanto crítica, o argumento assinado por Spike Lee, Kevin Willmont, Paul de Meo e Danny Wilson escorrega no terreno da conveniência ao tentar tornar a experiência fílmica mais palatável para o público. Embora catalisem a trama, elementos como o dúbio negociador vivido por Jean Reno e o grupo de desarmadores de minas capitaneado por Melánie Thierry soam como peças um tanto inverossímeis dentro do tabuleiro realista proposto. Uma espécie de facilitação que de certa forma diminui o peso do conflito entre os veteranos de guerra. Somado a isso, apesar das (envolventes) 2 h e 30 min de duração, o roteiro se afoba em algumas passagens, quebra alguns conflitos abruptamente, ou então os abandona repentinamente. O que enfraquece a construção da jornada dos subaproveitados demais personagens. Um pacote de deslizes, é fato, contornado pela enérgica direção de Lee. O ‘mise en scene’ é ágil. O viés documental se funde ao ficcional com ímpeto. A ritmada montagem valoriza o crescente clima de tensão. Numa das suas obras mais expansivas em anos, o realizador se apropria da palheta tropical com extremo vigor e estilo. Mais do que extrair a beleza do cenário, o cineasta é sagaz ao construir o contraste a partir do elemento paradisíaco. Por que alguém levou a guerra para aquele paraíso? Este sentimento de despropósito, combinado com o contundente uso de imagens factuais e a violência realista das angustiantes sequências de ação, escancara o tamanho da derrota dos EUA naquele período. 


Um revés moral que dialoga diretamente com a crítica racial proposta por Destacamento Blood. No fim, independentemente do tamanho da vitória ou da derrota, são homens e mulheres negros que em sua maioria seguem chorando lágrimas de sangue. Seguem sendo moldados pela guerra (em suas mais diversas formas) num círculo vicioso que precisa ser combatido. Spike Lee, através do poder da ideia, sugere um caminho diferente. Sugere o combate ideológico como a mais poderosa arma na luta por justiça social. Uma mensagem que, no auge de movimentos como o Vida Negras Importam, nunca soou tão urgente e importante. 

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