quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Crítica | Peterloo

Uma tragédia que se repete

Desigualdade, crise econômica, má distribuição de renda, centralização do poder, luta por reformas legislativas, repressão policial, violência... Parece que estou descrevendo em tópicos alguns dos temas mais comuns nos noticiários brasileiros (e de outras grandes nações do mundo) ao longo dos últimos anos. Não, não estou. Acontece no Brasil em 2019, aconteceu na Inglaterra em 1819. Consciente de que a história se dá em ciclos, o que só faz mais sentido no momento em que vemos o Reino Unido dividido em função do Brexit, Peterloo coloca o dedo na ferida ao se revelar uma espécie de grito de alerta para aqueles que teimam em esquecer as feridas do passado. Uma das vozes mais autorais do cinema britânico, o experiente diretor Mike Leigh retorna ao século XIX com a intenção de dialogar com o público de hoje, de lembrar daqueles que sacrificaram tanto em busca de (ameaçados) direitos básicos, propondo um revoltante duelo de classe em torno de um dos episódios políticos mais sangrentos da história recente do seu país. 



Embora as duas horas e meia de produção pesem além da conta, muito em função da verborragia desenfreada do texto de Mike Leigh, Peterloo compensa sempre que ouve o clamor dos oprimidos. Com uma visão muito particular sobre os fatos, o realizador transita entre os dois lados deste conflito ideológico\social com desenvoltura, realçando de maneira inteligente os contrastes entre os humildes que só queriam se tratados com dignidade e os nobres que só estavam preocupados em manter o seu poder. Ainda que, claramente, Leigh esteja do lado daqueles que batalham por liberdade e igualdade, o veterano realizador é maduro o bastante ao enxergar o todo sob uma perspectiva mais complexa. Com exceção da grotesca figura do Príncipe Regente (Tim McInnerny), pintando propositalmente como um monarca patético, afetado e vil, o cineasta é astuto ao nunca reduzir tudo ao mero maniqueísmo. Existem falhas e virtudes nos dois lados deste duelo entre a nobreza e o proletariado. Ao mesmo tempo em que traduz com veemência o poder (e as perigosas sequelas dele) na mão de um elitista sistema judiciário\parlamentar, Leigh não titubeia em questionar também as intenções daqueles que pretensamente falavam em nome do povo.


Personagens como o idealista Henry Hunt (Rory Kinnear, excelente como de costume), por exemplo, estão longe de verdadeiramente entender os anseios daqueles que julgava representar. Por trás da manifestação popular severamente reprimida pelas forças da monarquia existia fome de justiça e clamor por reformas, mas também vaidade, ambição, manipulação, interesses escusos e elitismo. Mike Leigh é enfático ao não só exaltar o engajamento popular, mas também ao questionar o vazio dos discursos, a falta de resultados práticos, os perigos em torno da falta de representatividade. Qualquer semelhança, definitivamente, não é mera coincidência. Uma pena que para isso o realizador dedique boa parte do segundo ato a uma série de intermináveis discursos, muitos propositalmente supérfluos, reduzindo o ritmo da trama à medida que prepara o terreno para o indignante clímax. Ao menos o peculiar senso de humor de Leigh combinado o refinamento do seu texto tornam algumas destas passagens mais acessíveis. Com destaque para a acalorada reunião entre as sufragistas e a sequência da taverna em que um dos personagens dá um sentido extremamente atual a uma frase atribuída ao filósofo Platão. Um daqueles momentos em que Leigh parece estar se dirigindo diretamente para o seu público e clamando por uma reação aos problemas sóciopolíticos do nosso dia a dia.


A alma de Peterloo, no entanto, está nas camadas mais baixas deste duelo de classes. Nos trabalhadores. Naqueles que sustentam qualquer nação. Numa sacada inteligente, Mike Leigh enxerga o macro a partir do micro, usando uma pacata família de Manchester como o fio condutor da história. É a partir dos olhos dele que enxergamos o contexto em que a massa está inserida, a realidade dos marginalizados pela coroa, a desigualdade, a falta de direitos básicos, as feridas das guerras napoleônicas, a falta de perspectiva de futuro. Num dos momentos mais emocionantes do longa, a descrente matriarca da família (Maxine Peake) olha para a sua pequena filha no berço e especula com um repentino sopro de esperança sobre o futuro dela, sendo logo em seguida alertada pelo seu resiliente marido (Pierce Quigley) que algumas coisas nunca mudam. De fato, ele tinha razão. Uma cena intimista e ao mesmo tempo crítica conduzida com sutileza por Leigh. É através deles, aliás, que o diretor melhor trabalha também a construção da tensão em torno do fatídico massacre coordenado pelo Estado durante a pacífica manifestação de St. Peter's Field. Indo de encontro ao ritmo arrastado do segundo ato, Leigh reaquece a trama ao reconstruir com riqueza de detalhes os bastidores de uma manhã sangrenta em solo britânico, mostrando a ação popular e a reação desastrada das tropas reais com peso, dinamismo e um senso de grandiosidade impressionante. Peterloo, por sinal, é um filme brilhantemente dirigido. Impulsionado pelo minucioso trabalho de direção de arte, os cenários, as habitações e os figurinos só ajudam a reforçar os contrastes neste choque entre nobres e trabalhadores, Leigh consegue recriar a história com um realismo digno de elogios. Enquanto as sequências mais íntimas são imersivas, brilhantemente iluminadas e elegantes, as cenas mais gráficas são caóticas, dinâmicas e viscerais. A maneira com que ele filma a repressão dos soldados sobre uma massa atordoada é de uma veracidade impressionante, o que só potencializa o sentimento de indignação quanto aos fatos em questão.


E esse talvez seja o maior trunfo de Peterloo. Mais do que simplesmente repercutir o presente a partir dos erros de um passado não muito distante, Mike Leigh entrega uma obra disposta a atingir o espectador desavisado. A usar a injustiça e a violência do Estado como um agente catalisador. No fim, além questionar a falta de representatividade dos trabalhadores em questões sociais tão sensíveis, Leigh exalta a força da união popular e principalmente o desespero dos poderosos diante das manifestações daqueles que realmente podem mudar a ordem das coisas. Mais atual impossível.

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