Por que Coringa é um filme tão
comentado? O legal de escrever sobre uma obra meses depois do seu lançamento é que
temos a chance de analisá-la sob uma perspectiva mais completa. O que, no caso
de um filme como Joker (no original), é primordial. Estamos diante de uma
produção que transcendeu a barreira do cinema. Muito mais do que um filme de
origem de um popular vilão dos quadrinhos, o enérgico longa dirigido por Todd
Phillips encontra na figura deste complexo antagonista a oportunidade de tocar
em chagas sociais reais. Coringa é um estudo impressionante sobre o meio em que
vivemos. E por isso é tão comentado. A partir da óptica de um homem quebrado,
afundado nos seus problemas, na insensibilidade e na sua instabilidade, o
realizador é enfático ao transformar a nossa sociedade no grande vilão da história.
Poderia ser o Rio de Janeiro, Paris, Nova Iorque, mas é Gotham. De ficção,
porém, Joker tem bem pouco. De quadrinhos muito menos. Por mais que beba na
fonte da nona arte com perspicácia, Phillips vai além ao renegar qualquer
resquício de maniqueísmo. Tudo que vemos aqui, a solidão, o desequilíbrio emocional,
a violência, a brutalidade, a desigualdade, a anarquia e o sentimento de revolta
é produto da sociedade doente em que habitamos. Tal qual Arhtur Fleck (Joaquin
Phoenix) somos vítimas e vilões. Somos a consequência e também a causa. Um
círculo vicioso conduzido com maestria numa distorcida história de reafirmação
e empoderamento.
Por que Coringa é um filme
perigoso? Bastou ver a reação popular ao personagem para percebermos que estamos
diante de uma produção de natureza arriscada. Ao contrário dos quadrinhos, onde
a sordidez do antagonista já foi investigada com a devida profundidade, nos cinemas o “palhaço do crime” sempre ganhou uma aura jocosa. Embora o Joker de
Jack Nicholson trouxesse consigo um traço de masculinidade tóxica reconhecível, o clássico inimigo do Batman costumeiramente se revelou um tanto quanto descolado da realidade na
tela grande. No momento em que esvaziou o passado do seu Joker, por exemplo,
Christopher Nolan optou por fazer da sua inesquecível versão do vilão (Heath Ledger) “apenas”
uma resposta proporcional a figura do Homem-Morcego. Um esteve muito sempre ligado ao
outro. Ambos são produtos de um mesmo meio. Em Coringa,
porém, Todd Phillips optou por renegar essa dicotomia. Aos seus olhos, Arthur
Fleck é um homem com camadas tão profundas que chega a chocar. É um tipo de
figura que poderia facilmente viver ao nosso redor. Ele é tímido, ingênuo,
frágil, solitário, triste, problemático, bem-intencionado, mas também perigoso.
A sua mãe era o pilar que o sustentava. A comédia era o vislumbre de esperança num
mundo de sombras. Num estudo de personagem primoroso, o argumento assinado pelo
próprio diretor, ao lado de Scott Silver, é sutil ao investigar a
desconstrução\reconstrução de um indivíduo tão divisivo. Phillips, ao mesmo tempo em que se
encanta pelo zelo dele para com a figura materna, ou se comove com a sua
angustiante disfunção emocional, não foge da raia ao enxergar também
o pior do personagem. A incapacidade dele reagir ao ambiente em que habita. O seu
temperamento instável\abusivo. A sua distorcida visão de mundo. Um indivíduo genuinamente ambíguo. Estamos diante de um homem doente ou de uma
vítima da sociedade? Estamos diante de um violento sociopata ou de um
anarquista solitário?
O verdadeiro perigo de O Coringa
nasce não da sua subjetividade, mas da subjetividade do público. Sem nunca
glamourizar a figura do vilão em sua face mais íntima, Todd Phillips joga
limpo com o espectador ao pintar o retrato mais tridimensional possível de
Arthur Fleck. Os seus atos falam por si só. Como todo produto do meio, ele
reage muito mais do que age. As suas desproporcionais respostas são sempre
tratadas de forma gráfica. A espiral de loucura culmina em atos extremos. Como se Phillips não quisesse deixar brechas para
interpretações dúbias quanto ao reflexo do estrago físico\emocional na
identidade do seu antagonista. O problema é que vivemos em tempos distorcidos.
Um período que, tal qual no longa, um ato de violência pode ser facilmente ressignificado.
Em que o ódio, a revolta social e a indignação coletiva “fabrica” mitos tão ocasionais quanto Arthur Fleck. Nem tão recentemente assim, por
exemplo, vimos um personagem agressivo como o Capitão
Nascimento de Tropa de Elite ser alçado a posição de herói popular. O policial
que torturava e atirava sem direito a defesa virou um modelo para muitos. No mundo de Fleck, por sua vez, não
existe espaço para heróis ou anti-heróis. Nem o próprio se enxerga assim. Por
tocar em gatilhos tão reconhecíveis, Coringa permite que o público
crie uma empatia natural com o vilão, sinta a sua dor, compartilhe da sua
humilhação e experimente a sua raiva. Uma subversão da jornada do herói que
funciona magistralmente, principalmente pela clareza com que o
diretor liberta pouco a pouco a natureza hostil (e desconcertante) do personagem. Isso, porém, se o longa for observado como um estudo social e não somente como um filme de origem de um popular vilão. O Joker de Joaquin Phoenix não é um anti-heroi. Ele é uma vítima. Ele é um monstro. Ele é uma consequência.E na vida real, tal qual no universo de Coringa, não existe nenhum vigilante noturno para nos proteger.
Por que Coringa é também um filme
falho? Narrativamente, o problema do longa não reside no seu senso de
ambiguidade. A maneira com que Todd Phillips se apropria das convenções do
gênero na construção de um drama real e reflexivo é simplesmente genial. Para
isso, no entanto, Joker escorrega em algumas cascas de banana. Talvez por falta
de confiança em renegar por completo a mitologia do vilão, o realizador se vê
obrigado a explorar símbolos dentro do universo do Homem-Morcego. Embora
trabalhe o clima de ebulição social e o duelo de classes com brilhantismo, o cineasta derrapa em
algumas das suas pretensões ao sustentar o ‘subplot’ Wayne em soluções no
mínimo questionáveis. Ainda que a relação entre os dois núcleos ajude a
catalisar o arco do antagonista, Phillips frustra ao não mergulhar nas memórias
afetivas de Arthur e ao não dar qualquer justificativa sobre o porquê. Sem
querer revelar muito, existe uma lacuna temporal não preenchida que surge como
uma bela facilitação narrativa. Não tem bloqueio emocional que explique um ‘blackout’
tão grande. Na ânsia de estabelecer um instigante mistério envolvendo a origem
de Arthur, na verdade, o longa sacrifica demais o passado do personagem.
Ok, Todd Phillips merece todos os
créditos ao entregar aquilo que espectador esperava ver, mas não dá forma como
que pretensamente queríamos ver. Fiel à identidade do seu acuado e
desequilibrado personagem, o diretor é astuto ao tratá-lo com um ícone
improvável. Um produto do perverso ambiente em que vive. À medida que a trama avança, porém,
ele se prende demais a isso ao desenvolver as agruras do antagonista. Existe mais do que espancamentos, revelações bombásticas e solidão no arco de Arthur. Se por um lado o argumento é assertivo ao traduzir
a crescente desestabilização dele, com direito a uma inteligente crítica
envolvendo o desdém estatal para com a saúde mental, por outro os seus traumas do passado não ganham a mesma atenção. A sombria psique do personagem, repare no tormento impresso no seu caderno de piadas, merecia ser trabalhada com mais profundidade. Neste ponto, e só neste ponto, o roteiro peca pela falta de maturidade. O que, embora não afete de maneira alguma o arco central, reduz o impacto de alguns dos atos do vilão.
Estamos diante de um Coringa menos anárquico e mais caótico. Além disso, numa
tola tentativa de simplificar algo que parecia tão claro, Phillips se vê
obrigado a questionar a (obviamente pouco confiável) perspectiva de Arthur, a
expor literalmente a realidade dos fatos, revisitando algumas curtas passagens
de forma dispensável. Algo que, felizmente, não se repete na provocante cena
final. Nada mais peculiar que um filme sobre um comediante fracassado terminasse
com uma alta dose de ironia. Num todo, aliás, o realizador capricha ao explorar o elemento psicológico, ao traduzir a desordem de Arthur a partir da sua subjetividade, o que só alimenta as nossas dúvidas quanto a realidade do personagem.
E por que Coringa é um filme
brilhante? Não adianta. Por mais evidentes que sejam esses pequenos deslizes, o longa é um triunfo do cinema moderno. E os motivos são tantos. Como se não
bastasse a crítica social ferina e visceral, que, mesmo sob a óptica distorcida
do vilão, faz todo o sentido, Joker funciona magnificamente como um filme de
origem. Fazendo jus ao passado do personagem, o drama aqui anda de mãos dadas
do começo ao fim com a insanidade e a sociopatia. O que falar, por exemplo, da
sacada do roteiro em dar para Arthur Fleck um distúrbio do riso. Uma desordem
emocional que realmente existe e que, nas mãos de Todd Phillips, só ajuda a
escancarar a face mais atormentada do antagonista. Ou então dos
inúmeros predicados visuais da produção. A preciosa direção de arte nos leva
para uma Gotham urbana, caótica, suja e impiedosa. A expressiva fotografia de Lawrence
Sher se apropria da palheta de cores clássica do Coringa (o roxo, o verde e
o vermelho) num trabalho que se revigora à medida que Arthur se “descobre”. A
enervante trilha sonora de Hildur
Guðnadóttir flerta com o épico sugerindo sempre o vislumbre do que estar por
vir.
Uma combinação de predicados que só ajuda a ampliar a mitologia em torno da figura do Coringa. Nos
momentos em que o “palhaço crime” assume as rédeas, Phillips esbanja
virtuosismo ao traduzir o misto de perversidade e euforia do vilão com uma
beleza improvável. O balé no banheiro público e a comentada dança na escadaria,
em especial, são daquelas sequências imagéticas que instantaneamente transcendem
a barreira do cinema. Nada disso, no entanto, seria possível se um nome como
Joaquin Phoenix não topasse entrar no projeto. O tipo de ator preparado para
qualquer desafio, ele transita por tantas emoções com maestria. Do
primeiro ao último minuto Phoenix interioriza os sentimentos que regem o
personagem. Arthur Fleck vive dentro do Coringa. E vice-versa. O homem
frágil, resiliente e amoroso dos primeiros minutos de projeção logo é invadido
pela tristeza, pela amargura, pela raiva, pela esperança, pela indignação, pela
surpresa, pelo desespero, pela ingenuidade, pela confiança. Numa metamorfose
muito mais emocional do que física, Phoenix se transforma aos olhos do público sem
nunca simplificar as coisas. É possível enxergar a doçura de Arthur logo após
um inclemente rompante de brutalidade. Tudo o que diz respeito ao vilão é
trabalhado com singularidade. Os seus gestos são plásticos. Os seus movimentos
cartunescos. As suas feições são reveladoras. A sua voz sintetiza o seu estado
de espírito. Uma performance única que atinge o seu ápice na antológica cena da
entrevista. Poucas vezes vi um ator com tanto domínio
sobre as emoções do seu personagem quanto Joaquin Phoenix em Coringa. Um
trabalho muito mais complexo do que o roteiro parecia exigir.
Imprevisível e inquietante, Coringa, tal qual o icônico vilão, é um filme sem amarras. Uma experiência cinematográfica ímpar com muito a dizer sobre o mundo em que vivemos e os perigosos filhos da desigualdade. Uma obra para ser vista, sentida e principalmente interpretada. Algo totalmente sem precedentes dentro do universo dos filmes de super-herói.
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