quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Crítica | O Escândalo

Basta de abusos!

Gostem ou não, filmes como O Escândalo merecem o nosso respeito. Estamos diante de uma obra que não parece interessada em fazer “amigos”. E é fácil entender a natureza divisiva do mais novo trabalho de Jay Roach. Com base nas abomináveis denúncias de assédio sexual que derrubaram a mente por trás da Fox News, o então influente executivo Roger Ailes, o caminho mais óbvio (ou talvez conveniente) seria tirar do papel um drama sobre empoderamento feminino, sobre a reação de um obstinado grupo de mulheres cansadas de sofrer com os múltiplos casos de abuso. Roach, no entanto, vai por outro caminho. Ao invés de simplesmente se sensibilizar pela dor das vítimas, o diretor opta pela inconveniência ao pintar um retrato realista sobre o todo. Uma visão implacável sobre o mundo corporativo que não se preocupa em agradar. Todos aqui estão sob análise. Culpados e vítimas. Os que se calam e os que se pronunciam. Os que agem e os que reagem. Os que combatem e os que temem. O resultado é uma película que, embora se embaralhe com as suas próprias pretensões, é astuta ao, a partir da perspectiva de um heterogêneo grupo de mulheres, tratar o assédio como parte de um problema muito maior. Um monstro de mentalidade conservadora que, involuntariamente ou não, elas mesmas estavam alimentando ao endossarem uma perigosa linha editorial.



Reconhecido pelas suas obras de cunho político, entre elas a sátira Os Candidatos (2012), o elogiado Virada no Jogo (2012) e o competente Trumbo (2015), Jay Roach não foge da raia ao encontrar em O Escândalo a oportunidade perfeita para refletir sobre os Estados Unidos de Donald Trump. No epicentro de um dos braços mais fortes da campanha do atual presidente do país, a Fox News, o realizador é inteligente ao discutir a natureza conservadora das peças deste desigual tabuleiro, incluindo das próprias vítimas. Em tempos de tamanha polarização, o realizador já mereceria o crédito por mexer num vespeiro tão agressivo com tamanho ímpeto. Ao longo do imersivo primeiro ato, em especial, Roach esbanja pulso narrativo ao estabelecer a “linha editorial” machista\misógina da emissora e (direta\indiretamente) daquele que ela tanto propagou. A sua abordagem dos fatos, no entanto, se revela ainda mais audaciosa no momento em que ele resolve entender o papel das mulheres dentro deste predatório ecossistema e o porquê de elas trabalharem justamente para esta companhia. Sem prejulgamentos e condescendência, o argumento assinado por Charles Randolph não só mergulha na rotina destas funcionárias obrigadas a conviver com a sexualização e os abusos, como também as questiona. Com dinamismo (a quebra da quarta parede surge inicialmente como um recurso perspicaz) e um olhar atento aos pormenores, o realizador se preocupa inicialmente em situar a realidade delas, em expor as suas reações ao meio em que trabalhavam. Existe conivência, ambição, anuência, desconforto, ignorância, impotência. O problema era claro. Mas poucos estavam dispostos(a) a desafiar um monstro tão ameaçador.


É aqui, na verdade, que O Escândalo assume a sua face mais complexa e impactante. Ao renegar o maniqueísmo barato, predadores sexuais podem ser carismáticos, protetores e ter fervorosos defensores, Jay Roach se arrisca ao não enxergar todas as vítimas como necessariamente vítimas. A partir da perspectiva do trio de protagonistas, a ferina âncora Gretchen Carlson (Nicole Kidman), a firme comentarista política Megyn Kelly e a ambiciosa produtora Kayla Pospisil (Margot Robbie), o realizador é enfático ao tratar o abuso\assédio sexual como parte de um ‘modus operandi’ natural e conhecido. Todos, ou quase todos, sabiam do que acontecia. A genial sequência do elevador, por exemplo, é emblemática. Ali, o passado, o presente e o futuro se unem. E o silêncio na troca de olhares diz tudo. Roach não é louco de culpá-las pelo assédio em si. Isso seria abominável. Por mais coniventes que elas fossem\tenham sido com a perigosa linha editorial da Fox News, nada justifica tamanha atrocidade. O debate em torno da inércia feminina dentro deste contexto, porém, é pertinente. Ao mesmo tempo em que esbanja cuidado ao expor a posição de vulnerabilidade de uma jovem funcionária diante das investidas de Roger (John Lightow, brilhante), a sequência mais gráfica de assédio, por sinal, é revoltante e repugnante, o cineasta é maduro ao questionar os motivos daquelas que optaram pelo silêncio. E isso sem (quase) nunca julgar as suas personagens, ou diminuir a sua dor. O ímpeto ambicioso de Kayla, por exemplo, esconde a ingenuidade de uma jovem conservadora que cresceu seguindo os padrões estabelecidos pela Fox News. A relutância incomodada de Megyn, por outro lado, esconde a dor de uma mulher cansada de ser objetificada pelos seus superiores. Já a raiva vingativa de Gretchen, por sua vez, esconde a frustração de uma mãe que (talvez tarde demais) acordou para a realidade que ajudou a criar. Ao buscar entender as motivações das suas personagens, como a lésbica sem voz vivia por Kate McKinnon, Roach verdadeiramente escancara a realidade feminina por trás dos abusos. Todas ali tinham muito a perder. O emprego, a estabilidade, a independência, a reputação. O NÃO trazia sempre sérias consequências. E o diretor consegue traduzir com verossimilhança o porquê. O monstro, aos olhos de Roach, é cruel, perverso, sedento e vingativo. E ai daquelas que fossem “notadas” por ele.


No momento em que deveria se distanciar do ambiente corporativo, entretanto, O Escândalo peca pela superficialidade. Jay Roach vacila ao não investigar a intimidade destas mulheres, o efeito do assédio (ou talvez da conivência) nas suas identidades, nas suas rotinas enquanto mãe, esposa, filha. O realizador se prende demais aos fatos. Insinua mais do que expõe. Se por um lado o longa acerta ao dar voz as funcionárias, com direito a um desconcertante ‘voiceover’ com depoimentos de vítimas reais, por outro frustra ao não se aprofundar nas emoções das protagonistas. Mesmo após anos, revisitar um episódio tão traumático tende a ser doloroso. Ou indignante. Algo que, por sinal, fica bem claro em vários momentos do filme. Roach, no entanto, não consegue ir além disso. O que desencadeia uma série de outros problemas. O recurso da narração, por exemplo, pouco a pouco se torna redundante. O demasiado foco na figura de Roger (e na relação dele com os seus fiéis “apoiadores”) reduz o tempo de tela daquelas que deveriam estar em voga. Esse, sem dúvida, o grande problema da produção. Além disso, Roach não consegue replicar o espirituoso clima do primeiro ato nos dois terços finais. Um grave problema de tom atenuado pelas poderosas performances. Irreconhecível em cena, Charlize Theron causa um frisson natural ao viver uma mulher dividida. Uma figura que criou uma casca para “sobreviver” no seu ambiente de trabalho. Já Nicole Kidman domina a sua personagem com plenitude ao absorver as falhas dela com naturalidade. Quem mais uma vez rouba a cena, no entanto, é Margot Robbie. É a partir do ponto de vista de Keyla (a única personagem ficcional da trama) que Roach melhor consegue expor a dor das vítimas de abusos. Entregando mais do que o texto parecia exigir, Robbie contorna a literalidade do roteiro ao absorver o efeito degradador do assédio com peso e inocência. A sequência em que ela, assim como muitas outras mulheres, se culpa ao telefone é de partir o coração e só comprova o potencial subaproveitado do longa. São passagens como essa que fazem falta. 


Corajoso ao enxergar o corporativismo como uma peça chave na engrenagem que mascara a rotina de abusos sexuais no ambiente de trabalho, O Escândalo tende a dividir o público ao tratar aqueles que se silenciam como parte do problema. Homens e também mulheres. Ao fugir do lugar comum dos filmes denúncias, Jay Roach é habilidoso ao, a partir da perspectiva das vítimas, refletir sobre o machismo e a desigualdade na América de Trump. Uma face da sociedade respaldada por emissoras como a Fox News e por tudo o que ela representa na atualidade. No fim, fica a certeza que vivemos (em especial as mulheres) num mundo corporativo ainda hoje predatório, um ambiente em que as vítimas (pasmem) têm sempre mais a perder do que os seus superiores.



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