terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Crítica | Verão de 84

O ponto final na nostalgia

Um dos pontos altos da década de 2010 no cinema foi a volta do popular subgênero crianças contra o mundo. Influenciado por hits do quilate de E.T (1981), Os Goonies (1985), Deu a Louca Nos Monstros (1987) e Os Garotos Perdidos (1987), títulos como Super 8 (2011), Como Sobreviver a um Ataque Zumbi (2015), Stranger Things (2016) e It: A Coisa (2017) resgataram o frescor oitentista em filmes\seriados irônicos, como uma descolada aura ‘cool’ e um revigorante DNA sinistro\aventuresco. Embora algumas destas produções tenham até se arriscado em tocar em questões mais realistas, o escapismo seguiu ditando as regras do jogo, seguiu nos fazendo crer que um grupo de adolescentes era capaz de parar alienígenas, mortos-vivos, criaturas de outra dimensão e perversas entidades. No papel, Verão de 84 parecia ser mais um simples integrante desta lista. O que, diga-se de passagem, não seria problema algum. As aparências, no entanto, em muitos casos enganam. 

Da mente dos criadores do surpreendente Turbo Kid (2015), o trio canadense François Simard, Anouk Whissell e Yoann-Karl Whissell, o longa testa as expectativas do público ao nos colocar em constante dúvida sobre o teor do que estamos assistindo. Numa proposta que pouco a pouco se revela mais imprevisível do que esperávamos, os realizadores se apropriam das convenções do segmento com autenticidade, esbanjando astúcia ao flertar com outros gêneros numa clara tentativa de aproximar a trama da realidade. A partir de uma premissa tradicional, um grupo de quatro amigos se vê em apuros quando passa a desconfiar da existência de um ‘serial-killer’ na vizinhança, o trio, que assina os seus filmes com o acrônimo RKSS, é astuto ao subverter o escapismo que costuma ditar as regras do formato. Por mais que, a rigor, o argumento peque pela superficialidade ao desenvolver os evidentes conflitos familiares dos seus personagens, Verão de 84 compensa ao inseri-los num cenário verdadeiramente disfuncional. Um ambiente em que o divórcio traz consequências, em que a depressão é um mal reconhecível, em que assassinos surgem como uma ameaça próxima. Mesmo sem se aprofundar no ‘background’ dos protagonistas, o que chega a ser frustrante em alguns momentos, François, Anouk e Yoann conseguem na base da insinuação mostrar que as evidências em torno desta possível ameaça estavam longe de ser os únicos problemas deles.


É aqui, na verdade, que Verão de 84 começa a se sobressair na turma. Por mais que a cômica dinâmica entre os personagens funcione a contento, que o carismático elenco mostre um entrosamento natural e que o clima de tensão em torno das descobertas do grupo seja convincente, o longa ganha um novo sentido à medida que começa a tratar a investigação dos adolescentes como um possível escape. O roteiro assinado por Matt Leslie e Stephen J. Smith é sagaz ao alimentar certas dúvidas na cabeça do espectador. Será que a pseudo ameaça não é fruto de uma mente criativa? Será que a busca dos garotos não era apenas uma forma de fuga de uma realidade mais complexa? Ou será que o perigo pode mesmo morar ao lado? Ao mesmo tempo em que constrói o elo entre os protagonistas, uma relação movida pelo companheirismo, pelas provocações imaturas e (claro!) pelas garotas, o trio de cineastas se aproxima dos ‘coming of age movies’ ao tratar esta caça ao assassino como uma possível última aventura antes da iminente chegada da vida adulta. O que eles tinham ali estava próximo de acabar. A casa da árvore, símbolo máximo do subgênero, estava próxima de ser demolida. Escondido na comédia e na tensão existe um inesperado quê melancólico. O que fica evidente não só na cumplicidade entre os amigos, mas também na repentina relação entre Davey (Graham Verchere) e a sua bela ex-babá Nikki (Tiera Skovbye). Tratada inicialmente como o objeto de desejo dos garotos, é legal ver como o roteiro desconstrói a personagem, a trata como uma figura tridimensional, renega os velhos clichês em torno do arquétipo. Ela tem voz, tem problemas reconhecíveis e (assim como eles) tem medo do que estar por vir.


Esteticamente, aliás, Verão de 84 renega também o vigor visual dos anos 1980. Embora ambientado na década, o longa nos leva para um subúrbio acinzentado. A palheta de cores é mais fria e lavada. A fotografia de Jean-Philippe Bernier adiciona uma aura nebulosa ao filme. Existe uma sensação de desbotamento que casa brilhantemente com o teor da trama. O que fica bem claro no momento em que longa revela as suas reais intenções. No embalo dos riffs sintetizados da enervante trilha sonora de Le Matos, numa clara (e premonitória) reverência aos clássicos do mestre dos ‘slasher movies’ John Carpenter, a trinca RKSS se aproxima do horror com inesperada naturalidade numa mudança de curso impactante e à sua maneira factível. Sem querer revelar muito, o longa é enfático ao colocar um ponto final no sentimento de nostalgia em torno do subgênero e puxa o tapete do público ao mostrar a realidade como ela é. Sem facilitações narrativas, sem rompantes de condescendência, sem reviravoltas mirabolantes. O peso das consequências, me arrisco a dizer, nunca foi tão doloroso dentro do segmento quanto aqui. Uma certeza, por sinal, potencializada pela afiada condução dos diretores, perspicazes ao proteger a real face da sua produção sem nunca deixar de oferecer aquilo que os fãs do subgênero gostariam de revelar. A sinistra sequência dentro da casa no clímax, por exemplo, é arrepiante por natureza.


Criativo ao aplicar as convenções do terror juvenil dentro de um contexto genuinamente realista, Verão de 84 é perspicaz ao usar o esgotamento do subgênero a seu favor. Quando tudo parecia apontar para o lugar comum do segmento, o longa se insurge contra o escapismo oitentista (e se abastece disso) ao defender que não existe um cenário mais ameaçador do que o mundo real. No fim, embora o divisivo desfecho possa soar indigesto para muitos, o trio de diretores compensa ao revelar sob uma óptica particularmente agressiva o quão difícil pode ser a transição da adolescência para a vida adulta. O que fica bem claro, em especial, quando nos deparamos com a desconcertante frase final de um determinado (e querido) personagem.

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