quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Crítica | Ad Astra

Separados por uma galáxia

Poucos títulos recentes teceram comentários tão profundos sobre a paternidade quanto o enervante Sci-Fi Ad Astra. Por trás de uma expressiva jornada rumo ao desconhecido existe um drama existencial sobre o impacto da ausência, o peso da solidão e as sequelas da obsessão na vida de dois homens ligados pelo elo consanguíneo. Sob a intensa e virtuosa batuta de James Gray (Era Uma Vez em Nova Iorque, Z: A Cidade Perdida), o longa estrelado por um soberbo Brad Pitt camufla no viés científico\futurista uma trama genuinamente familiar sobre laços repentinamente rompidos e o vácuo causado na rotina daqueles que são deixados para trás. 

Num estudo de personagem primoroso, James Gray, também responsável pelo roteiro ao lado de Ethan Gross, invade a intimidade de um astronauta, o respeitado e pragmático Roy (Brad Pitt), após ele descobrir que o seu estimado pai (Tommy Lee Jones) poderia estar vivo num planeta remoto. Inteligente ao alimentar o mistério em torno desta complexa figura paterna, o realizador é igualmente cuidadoso ao gradativamente entender os motivos do seu protagonista. Estamos diante de um homem que se acostumou a largar tudo em prol da sua profissão, que evitou criar raízes profundas. Fazendo um pontual uso do recurso da narração e dos flashbacks, o passado, aqui, é tão nebuloso quanto o futuro, Gray esbanja astúcia ao desconstruí-lo perante o público. À medida que ele se aproxima das respostas, a sua impavidez é colocada em cheque. Escondida na carapuça inabalável de Roy existia dor, fragilidade, solidão, tristeza e esperança. Um processo de “humanização” conduzido com absoluto comedimento por Pitt. Sem querer revelar muito, a sequência em que ele finalmente se abre na busca por diálogo é de partir o coração. Uma das performances mais desafiadoras e bem-sucedidas da carreira do talentoso ator.


Um predicado, verdade seja dita, potencializado pela sagacidade de James Gray ao utilizar as convenções do gênero em prol da construção deste arco intimista. Mesmo com os dois pés na ficção científica, as sequências em órbita, por sinal, são sufocantes e impactantes, o cineasta vai além do balé espacial ao encontrar nas respectivas missões de pai e filho as principais respostas. Embora separados por trinta anos, os dois seguiram tendo muito em comum. A ausência moldou o protagonista. A solidão “aniquilou” o seu pai. Ambos queriam tanto algo que esqueceram de enxergar o óbvio. À medida em que o choque entre as expectativas e as frustrações acontecem, Gray é enfático ao traduzir a força do elo paternal, o estrago causado pelo vazio, as sequelas alimentadas pelos traumas, a influência das respostas nunca obtidas, a crença em uma saída. Nem todas as feridas, porém, o tempo é capaz de curar. Consciente disso, o realizador causa uma comoção natural ao capturar o turbilhão de emoções em torno deste tardio processo de reconexão\revelação, contornando o esquematismo do roteiro (Roy é um para raio de problemas) com diálogos pesados, indagações profundas e um precioso uso dos símbolos. Neste aspecto, inclusive, o longa remete a um outro grande ‘hit’ espacial da década, o potente Gravidade (2013), principalmente pela capacidade do diretor em extrair um novo significado de situações pertencentes ao universo dos personagens.


Indo além da sua sólida carga dramática, Ad Astra é também um espetáculo visual de primeira mão. Com uma perspectiva de futuro factível, os astronautas são os novos colonizadores\expedicionários da vez, Gray capricha na construção desta visão de mundo expansiva, minimalista e ‘hi-tech’. O CGI é de primeira e funciona bem tanto nas passagens mais enervantes, quanto na composição dos detalhes cênicos. O sofisticado desgin de produção confere um senso de autenticidade às naves e colônias. A vistosa fotografia saturada em tons primários de Hoyte Van Hoytema só torna tudo mais estiloso. A refinada iluminação das cenas valoriza a expressividade dos atores. Somado a isso, Gray surpreende ao explorar com maestria elementos como a força gravitacional e a relação dos personagens com o ambiente espacial, nos presenteando, por exemplo, com a espetacular sequência de perseguição em solo lunar. Um dos muitos pontos altos da produção. No fim, embora escorregue no terreno da condescendência nos seus minutos finais, Ad Astra é uma das grandes surpresas cinematográficas de 2019. James Gray consegue saciar o apetite dos fãs de um Sci-Fi provocante numa obra espetacular quando pode e dramática quando precisa.

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