Mais do que um grande diretor,
Quentin Tarantino é um verdadeiro cinéfilo. Isso não é novidade para ninguém.
Seus filmes refletem a sua paixão pela arte. O tipo (raro) de cineasta que não
se incomoda em reverenciar aqueles que o moldaram. Tarantino é, acima de tudo,
um iconólatra. Um realizador que fez do seu vasto repertório de referências a
sua principal assinatura. Os símbolos (cinematográficos ou não) sempre tiveram
muito valor para ele. Um sentimento que fica evidente quando nos deparamos com
esta pérola chamada Era uma Vez em... Hollywood. Após décadas homenageando
aqueles que os inspiraram em seus projetos, ele resolveu ir além. Desta vez
Tarantino não quis somente reescrever a história, mas situar a sua nova obra no
cenário que influenciou a maior parte dos seus trabalhos. Uma Hollywood mais
ingênua. A Hollywood dos Westerns decadentes, do Kung-Fu, da libertação sexual,
das transformações socioculturais, das jovens estrelas. Um verdadeiro parque de
diversões nas mãos de um profundo conhecedor deste período. De longe o filme
mais audacioso da sua carreira, o irreverente drama “semi-biográfico” mostra
então um Quentin Tarantino mais contemplativo. A trama é tratada como uma mera
desculpa para ele mergulhar de corpo e alma numa época singular do cinema
norte-americano. As referências\reverências, aqui, não são só parte do todo. Mais
do que se apropriar dos fatos, Tarantino busca sentir\viver aquele momento,
busca passear por um período de efervescência, busca compartilhar sensações com
o seu público. Uma experiência imersiva e entusiasmada de um realizador
consciente das particularidades que cercaram aquele raro momento.
No fim da década de 1960
Hollywood passava por uma grande transformação. O modelo dos grandes estúdios
já não era mais tão rentável. A televisão surgia como um mercado atrativo para
estrelas decadentes. Novos rostos “revigoravam” a indústria com menos vaidade e
mais atitude. Nascia então a Nova Hollywood. Os movimentos de contracultura.
Uma sensação de liberdade que Quentin Tarantino faz questão de exaltar em Era
uma Vez... Hollywood. O tipo de obra que tem duas horas e quarenta, mas poderia
ter facilmente três horas, três horas e meia. Sem amarras, o realizador
norte-americano não titubeia em vagar por uma ensolarada Los Angeles muitas
vezes sem rumo. Um Tarantino menos verborrágico e mais curioso. Disposto a
capturar a atmosfera da época se apropriar dos fatos com autenticidade. Sob a
perspectiva da errática estrela de faroestes Rick Dalton (Leonardo Di Caprio) e
do seu fiel dublê Cliff Both (Brad Pitt), ele traduz com encantamento as
peculiaridades daquele período. Cada um dos seus virtuosos planos é carregado de
informações\referências. Tarantino não se deixa limitar pela estrutura de atos,
por ‘plots’ e\ou construção de arcos. A trama nasce com espontaneidade e
desenvolvida de forma intuitiva. A partir do olhar dos excêntricos
protagonistas somos levados a uma Hollywood quente, sedutora, alegre. Um espaço
em que estrelas de cinema conviviam quase que diretamente com hippies. Um
ambiente em que velhos tabus eram quebrados. Uma realidade iluminada por
figuras como Sharon Tate. Sem medo de errar a centelha que Quentin Tarantino
precisava para tirar um projeto desses do papel.
Como disse acima, o arco central,
a desventurada jornada de dois homens obrigados a se reinventar nesta
remodelada Hollywood, é apenas uma mera desculpa para aquilo que realmente
importa. Mais uma vez, Quentin Tarantino encontra a oportunidade perfeita para
reescrever a história. E, desta vez, sem deixar se levar tanto pelo sentimento
de vingança. Indo de encontro ao fantástico Bastardos Inglórios (2009), em Era
uma Vez em... Hollywood a violência não é a única resposta. Aos olhos do
diretor, Sharon Tate se torna o símbolo desta época quase renascentista. Uma
das maiores promessas da época, a radiante atriz tinha tudo que precisava para
triunfar. Seu talento era inquestionável. Sua beleza descomunal. Seu carisma natural.
Sua presença magnética era capaz de seduzir qualquer câmera. Sua independência já
era conhecida. Tate surgia como postulante a se tornar uma voz de uma geração
de mulheres. Isso até a sua trágica morte, assassinada aos 26 anos, por membros
da seita liderada por Charles Manson. Uma estrela que não teve tempo de brilhar
o bastante. Com afeto e muita delicadeza, Tarantino decide então usar a sua
arte como instrumento de justiça. No embalo da reluzente performance de Margot
Robbie, o realizador não se interessa tanto pela mulher Sharon Tate, nem tão
pouco pela estrela Sharon Tate, mas pelo símbolo Sharon Tate. Sob a perspectiva
dele ela é tratada como uma figura quase angelical. Pura, doce, moleca, livre. Muito
mais do que um fetiche na minha visão, a maneira com que Tarantino filma os pés
das suas personagens (inclusive da própria Tate) diz muito sobre a natureza
libertária delas. A mesma atriz que anda com pés sujos no seu dia a dia é capaz
de iluminar o ambiente assim que pisa nele. O expressivo plano sequência da
festa que o diga. O tipo de figura capaz de arrancar sorrisos a cada segundo
que está em tela. O que para muitos foi um problema, para mim foi uma sacada de
gênio. Consciente do impacto cultural causado pela sua morte, Tarantino evita
banalizar a figura de Tate. Ele parece protegê-la. Entrega somente o suficiente
para que possamos enxergar o que ela foi e o que poderia ter representado. É
impossível dissociar a imagem dela da tragédia. Por trás do alto astral, até
por isso, existe um forte senso de melancolia. O que só torna os diminutos
momentos em que ela está em cena mais prazerosos. Ou profundos.
O tipo de protagonista ausente
que, de forma inteligente, embala por consequência o arco de Rick e Cliff. A
simples figura de Sharon Tate, aos olhos deles, é tratada como um símbolo de
esperança. A lembrança de que o “sonho americano” vivia na vizinhança. Mesmo
quando as suas respectivas carreiras diziam o contrário. Guiado por esta
constante presença, Quentin Tarantino é perspicaz ao analisar este período de
transformações dentro da indústria a partir da perspectiva deles. Com os dois
pés na realidade, o realizador invade este singular período do cinema
norte-americano disposto a investigar a reação de uma estrela diante da iminência
da decadência. Enquanto, no aspecto macro da coisa, Tarantino traduz a
eletricidade de Los Angeles em planos ágeis, expansivos e repletos de movimento, no aspecto
micro, o cineasta desfila o seu afiado senso de humor ao invadir a rotina de um
ator engolido pelo tempo. Mesmo nos momentos em que se comove pela situação do
seu personagem, um drama reconhecível dentro de uma indústria tão predatória,
Tarantino não perde a oportunidade de rir de tudo isso, de brincar com velhos
símbolos sem nunca os desrespeitar. Num sagaz exercício metalinguístico, ele usa
o set de filmagens (todos construídos para o longa) a seu favor nestas
passagens mais intimistas. As lacunas entre as gravações de Rick abrem brechas
para planos mais longos. Com menos cortes. Movimentos de câmera mais discretos.
O senso de vulnerabilidade indulgente do ator, em especial, rende uma série de situações
impagáveis nas mãos de Tarantino. Sem querer revelar muito, a sequência em que
o astro do faroeste resolve se abrir para uma precoce atriz mirim (Jullia
Butters, soberba) é fantástica, assim como os desdobramentos dela. Uma cena,
óbvio, impulsionada pela primorosa performance de Leonardo DiCaprio. No
espírito da brincadeira, ele debocha de algumas idiossincrasias da sua
profissão com coragem e uma energia única. Nos momentos em que o seu Rick precisa
realçar a sua fragilidade física\emocional, DiCaprio adiciona outros
sentimentos à cena graças a sua hilária fisicalidade. A macheza ‘fake’ destas
velhas estrelas, nas mãos de Tarantino, se torna um precioso instrumento
cômico. Brilhante.
Nem só de Rick Dalton, porém,
vive Era Uma Vez em... Hollywood. Muito mais do que uma sombra do ator, o
temperamental Cliff Burton representa os olhos de Quentin Tarantino sobre
aquele universo. É a partir dele que, verdadeiramente, o realizador narra\reescreve
a história. Ainda mais distante dos holofotes, o dublê (uma peça no processo de
filmagem sempre muito valorizada pelo diretor) transita por esta abrasiva Los
Angeles com um misto de curiosidade, fascínio e plenitude. O ar contemplativo
da obra ganha corpo através de planos abertos e dinâmicos. Em muitos momentos a
câmera de Tarantino parece planar pelo cenário, reforçando o elemento
transcendental ao não desgrudar daquilo que mais chama a atenção. Os letreiros
luminosos dos cinemas. Os pôsteres. Os programas de TV. Os filmes da época. Sharon Tate, claro. Por
sinal, o diretor não se intimida em explorar o sex-apeal dos seus atores com enquadramentos naturalmente sensuais. É a
partir de Burton, no entanto, que Tarantino melhor captura também o contexto
sociocultural, a decadência da velha Hollywood, a presença do movimento hippie.
Ele é descolado, charmoso, ‘bad-ass’. Outra vez, Tarantino topa entrar numa
polêmica ao se apropriar de um símbolo\ícone tão estimado a favor do seu personagem.
O que faz todo sentido dentro do desconcertante clímax. No auge da sua forma do
alto dos seus 56 anos, Pitt causa um frisson natural ao criar um tipo com
múltiplas facetas. O seu Cliff é dúbio, é simpático, é fiel, é agressivo, é
afetuoso. Sempre que preciso, Pitt explode em cena sem pudor, traduzindo também
a raiva de Tarantino quanto a ordem dos fatos.
É aqui, na verdade, que Era uma
Vez em... Hollywood mostra a sua face mais venal e crítica. Consciente do
estrago causado pelo assassinato de Sharon Tate, que, claramente, representou
uma mancha no movimento hippie e de certa forma limitou o senso de liberdade
pensado pela contracultura, Quentin Tarantino é impiedoso ao se insurgir contra
aqueles que ele considera culpado. A tensão nasce naturalmente. A aleatória
figura do narrador surge para injetar um pouco mais de urgência à trama.
Repentinamente o longa ganha uma nova cara. Menos contemplativa. Mais real.
Mais enervante. Mais até documental. O que só ajuda a colocar as nossas
expectativas em cheque. Até porque o tempo não foi capaz de atenuar o peso dos
fatos em questão. A transcendental Sharon Tate de Margot Robbie só ajuda a
reforçar este sentimento. Tarantino sabe disso. No momento em que a justiça se
torna vingança, a veia gráfica\brutal do diretor fala mais alto, culminando
numa sequência capaz de embrulhar o estômago dos mais sensíveis. Existe muita
raiva aqui. Um rompante de fúria que, graças a maturidade de Tarantino, logo dá
lugar mais uma vez a um agridoce sentimento de melancólica. Com pulso narrativo
e pleno domínio sobre o tom da sua obra, o cineasta encerra o longa com uma
sequência de partir o coração, usando o cinema para entregar a sua emotiva visão de um
final feliz.
Com um elenco fantástico em mãos,
Al Pacino, Margaret Qualley, Luke
Perry, Dakota Fanning, Damian Lewis, Bruce Dern e Austin Butler preenchem as
arestas com vigor e presença cênica, Quentin Tarantino faz de Era Uma Vez em...
Hollywood um retrato saudosista sobre um período de transformação manchado por
sangue inocente. Reconhecido pelo seu fascínio por produções dos anos
1960\1970, o realizador (como de costume na sua filmografia) vai bem além da
referência pela referência ao mergulhar nesta colorida e musical Los Angeles, reciclando
clássicos símbolos da época para reescrever a história com vigor,
estilo e originalidade. Mais Tarantino impossível.
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