segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Fugindo do Hype | Era uma vez em... Hollywood

O resgate de um ícone

Mais do que um grande diretor, Quentin Tarantino é um verdadeiro cinéfilo. Isso não é novidade para ninguém. Seus filmes refletem a sua paixão pela arte. O tipo (raro) de cineasta que não se incomoda em reverenciar aqueles que o moldaram. Tarantino é, acima de tudo, um iconólatra. Um realizador que fez do seu vasto repertório de referências a sua principal assinatura. Os símbolos (cinematográficos ou não) sempre tiveram muito valor para ele. Um sentimento que fica evidente quando nos deparamos com esta pérola chamada Era uma Vez em... Hollywood. Após décadas homenageando aqueles que os inspiraram em seus projetos, ele resolveu ir além. Desta vez Tarantino não quis somente reescrever a história, mas situar a sua nova obra no cenário que influenciou a maior parte dos seus trabalhos. Uma Hollywood mais ingênua. A Hollywood dos Westerns decadentes, do Kung-Fu, da libertação sexual, das transformações socioculturais, das jovens estrelas. Um verdadeiro parque de diversões nas mãos de um profundo conhecedor deste período. De longe o filme mais audacioso da sua carreira, o irreverente drama “semi-biográfico” mostra então um Quentin Tarantino mais contemplativo. A trama é tratada como uma mera desculpa para ele mergulhar de corpo e alma numa época singular do cinema norte-americano. As referências\reverências, aqui, não são só parte do todo. Mais do que se apropriar dos fatos, Tarantino busca sentir\viver aquele momento, busca passear por um período de efervescência, busca compartilhar sensações com o seu público. Uma experiência imersiva e entusiasmada de um realizador consciente das particularidades que cercaram aquele raro momento.



No fim da década de 1960 Hollywood passava por uma grande transformação. O modelo dos grandes estúdios já não era mais tão rentável. A televisão surgia como um mercado atrativo para estrelas decadentes. Novos rostos “revigoravam” a indústria com menos vaidade e mais atitude. Nascia então a Nova Hollywood. Os movimentos de contracultura. Uma sensação de liberdade que Quentin Tarantino faz questão de exaltar em Era uma Vez... Hollywood. O tipo de obra que tem duas horas e quarenta, mas poderia ter facilmente três horas, três horas e meia. Sem amarras, o realizador norte-americano não titubeia em vagar por uma ensolarada Los Angeles muitas vezes sem rumo. Um Tarantino menos verborrágico e mais curioso. Disposto a capturar a atmosfera da época se apropriar dos fatos com autenticidade. Sob a perspectiva da errática estrela de faroestes Rick Dalton (Leonardo Di Caprio) e do seu fiel dublê Cliff Both (Brad Pitt), ele traduz com encantamento as peculiaridades daquele período. Cada um dos seus virtuosos planos é carregado de informações\referências. Tarantino não se deixa limitar pela estrutura de atos, por ‘plots’ e\ou construção de arcos. A trama nasce com espontaneidade e desenvolvida de forma intuitiva. A partir do olhar dos excêntricos protagonistas somos levados a uma Hollywood quente, sedutora, alegre. Um espaço em que estrelas de cinema conviviam quase que diretamente com hippies. Um ambiente em que velhos tabus eram quebrados. Uma realidade iluminada por figuras como Sharon Tate. Sem medo de errar a centelha que Quentin Tarantino precisava para tirar um projeto desses do papel.


Como disse acima, o arco central, a desventurada jornada de dois homens obrigados a se reinventar nesta remodelada Hollywood, é apenas uma mera desculpa para aquilo que realmente importa. Mais uma vez, Quentin Tarantino encontra a oportunidade perfeita para reescrever a história. E, desta vez, sem deixar se levar tanto pelo sentimento de vingança. Indo de encontro ao fantástico Bastardos Inglórios (2009), em Era uma Vez em... Hollywood a violência não é a única resposta. Aos olhos do diretor, Sharon Tate se torna o símbolo desta época quase renascentista. Uma das maiores promessas da época, a radiante atriz tinha tudo que precisava para triunfar. Seu talento era inquestionável. Sua beleza descomunal. Seu carisma natural. Sua presença magnética era capaz de seduzir qualquer câmera. Sua independência já era conhecida. Tate surgia como postulante a se tornar uma voz de uma geração de mulheres. Isso até a sua trágica morte, assassinada aos 26 anos, por membros da seita liderada por Charles Manson. Uma estrela que não teve tempo de brilhar o bastante. Com afeto e muita delicadeza, Tarantino decide então usar a sua arte como instrumento de justiça. No embalo da reluzente performance de Margot Robbie, o realizador não se interessa tanto pela mulher Sharon Tate, nem tão pouco pela estrela Sharon Tate, mas pelo símbolo Sharon Tate. Sob a perspectiva dele ela é tratada como uma figura quase angelical. Pura, doce, moleca, livre. Muito mais do que um fetiche na minha visão, a maneira com que Tarantino filma os pés das suas personagens (inclusive da própria Tate) diz muito sobre a natureza libertária delas. A mesma atriz que anda com pés sujos no seu dia a dia é capaz de iluminar o ambiente assim que pisa nele. O expressivo plano sequência da festa que o diga. O tipo de figura capaz de arrancar sorrisos a cada segundo que está em tela. O que para muitos foi um problema, para mim foi uma sacada de gênio. Consciente do impacto cultural causado pela sua morte, Tarantino evita banalizar a figura de Tate. Ele parece protegê-la. Entrega somente o suficiente para que possamos enxergar o que ela foi e o que poderia ter representado. É impossível dissociar a imagem dela da tragédia. Por trás do alto astral, até por isso, existe um forte senso de melancolia. O que só torna os diminutos momentos em que ela está em cena mais prazerosos. Ou profundos.


O tipo de protagonista ausente que, de forma inteligente, embala por consequência o arco de Rick e Cliff. A simples figura de Sharon Tate, aos olhos deles, é tratada como um símbolo de esperança. A lembrança de que o “sonho americano” vivia na vizinhança. Mesmo quando as suas respectivas carreiras diziam o contrário. Guiado por esta constante presença, Quentin Tarantino é perspicaz ao analisar este período de transformações dentro da indústria a partir da perspectiva deles. Com os dois pés na realidade, o realizador invade este singular período do cinema norte-americano disposto a investigar a reação de uma estrela diante da iminência da decadência. Enquanto, no aspecto macro da coisa, Tarantino traduz a eletricidade de Los Angeles em planos ágeis, expansivos e repletos de movimento, no aspecto micro, o cineasta desfila o seu afiado senso de humor ao invadir a rotina de um ator engolido pelo tempo. Mesmo nos momentos em que se comove pela situação do seu personagem, um drama reconhecível dentro de uma indústria tão predatória, Tarantino não perde a oportunidade de rir de tudo isso, de brincar com velhos símbolos sem nunca os desrespeitar. Num sagaz exercício metalinguístico, ele usa o set de filmagens (todos construídos para o longa) a seu favor nestas passagens mais intimistas. As lacunas entre as gravações de Rick abrem brechas para planos mais longos. Com menos cortes. Movimentos de câmera mais discretos. O senso de vulnerabilidade indulgente do ator, em especial, rende uma série de situações impagáveis nas mãos de Tarantino. Sem querer revelar muito, a sequência em que o astro do faroeste resolve se abrir para uma precoce atriz mirim (Jullia Butters, soberba) é fantástica, assim como os desdobramentos dela. Uma cena, óbvio, impulsionada pela primorosa performance de Leonardo DiCaprio. No espírito da brincadeira, ele debocha de algumas idiossincrasias da sua profissão com coragem e uma energia única. Nos momentos em que o seu Rick precisa realçar a sua fragilidade física\emocional, DiCaprio adiciona outros sentimentos à cena graças a sua hilária fisicalidade. A macheza ‘fake’ destas velhas estrelas, nas mãos de Tarantino, se torna um precioso instrumento cômico. Brilhante.


Nem só de Rick Dalton, porém, vive Era Uma Vez em... Hollywood. Muito mais do que uma sombra do ator, o temperamental Cliff Burton representa os olhos de Quentin Tarantino sobre aquele universo. É a partir dele que, verdadeiramente, o realizador narra\reescreve a história. Ainda mais distante dos holofotes, o dublê (uma peça no processo de filmagem sempre muito valorizada pelo diretor) transita por esta abrasiva Los Angeles com um misto de curiosidade, fascínio e plenitude. O ar contemplativo da obra ganha corpo através de planos abertos e dinâmicos. Em muitos momentos a câmera de Tarantino parece planar pelo cenário, reforçando o elemento transcendental ao não desgrudar daquilo que mais chama a atenção. Os letreiros luminosos dos cinemas. Os pôsteres. Os programas de TV. Os filmes da época. Sharon Tate, claro. Por sinal, o diretor não se intimida em explorar o sex-apeal dos seus atores com enquadramentos naturalmente sensuais. É a partir de Burton, no entanto, que Tarantino melhor captura também o contexto sociocultural, a decadência da velha Hollywood, a presença do movimento hippie. Ele é descolado, charmoso, ‘bad-ass’. Outra vez, Tarantino topa entrar numa polêmica ao se apropriar de um símbolo\ícone tão estimado a favor do seu personagem. O que faz todo sentido dentro do desconcertante clímax. No auge da sua forma do alto dos seus 56 anos, Pitt causa um frisson natural ao criar um tipo com múltiplas facetas. O seu Cliff é dúbio, é simpático, é fiel, é agressivo, é afetuoso. Sempre que preciso, Pitt explode em cena sem pudor, traduzindo também a raiva de Tarantino quanto a ordem dos fatos.


É aqui, na verdade, que Era uma Vez em... Hollywood mostra a sua face mais venal e crítica. Consciente do estrago causado pelo assassinato de Sharon Tate, que, claramente, representou uma mancha no movimento hippie e de certa forma limitou o senso de liberdade pensado pela contracultura, Quentin Tarantino é impiedoso ao se insurgir contra aqueles que ele considera culpado. A tensão nasce naturalmente. A aleatória figura do narrador surge para injetar um pouco mais de urgência à trama. Repentinamente o longa ganha uma nova cara. Menos contemplativa. Mais real. Mais enervante. Mais até documental. O que só ajuda a colocar as nossas expectativas em cheque. Até porque o tempo não foi capaz de atenuar o peso dos fatos em questão. A transcendental Sharon Tate de Margot Robbie só ajuda a reforçar este sentimento. Tarantino sabe disso. No momento em que a justiça se torna vingança, a veia gráfica\brutal do diretor fala mais alto, culminando numa sequência capaz de embrulhar o estômago dos mais sensíveis. Existe muita raiva aqui. Um rompante de fúria que, graças a maturidade de Tarantino, logo dá lugar mais uma vez a um agridoce sentimento de melancólica. Com pulso narrativo e pleno domínio sobre o tom da sua obra, o cineasta encerra o longa com uma sequência de partir o coração, usando o cinema para entregar a sua emotiva visão de um final feliz.


Com um elenco fantástico em mãos, Al Pacino, Margaret Qualley, Luke Perry, Dakota Fanning, Damian Lewis, Bruce Dern e Austin Butler preenchem as arestas com vigor e presença cênica, Quentin Tarantino faz de Era Uma Vez em... Hollywood um retrato saudosista sobre um período de transformação manchado por sangue inocente. Reconhecido pelo seu fascínio por produções dos anos 1960\1970, o realizador (como de costume na sua filmografia) vai bem além da referência pela referência ao mergulhar nesta colorida e musical Los Angeles, reciclando clássicos símbolos da época para reescrever a história com vigor, estilo e originalidade. Mais Tarantino impossível.

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