É impossível determinar o quanto Dor e Glória tem a dizer sobre a vida e
o passado de Pedro Almodóvar. É fácil perceber, porém, que nunca o aclamado
cineasta espanhol se expôs tanto. Tratado pelo próprio como o filme mais
pessoal da sua carreira, o drama existencialista estrelado por Antônio Banderas
merece ser analisado - nas palavras do realizador - como uma autoficção. Embora
coloque um cansado diretor na posição de protagonista, algo que, naturalmente, sugere
certa literalidade, Almodóvar é categórico ao se revelar mais nas entrelinhas.
Basta um olhar mais objetivo para percebermos que ele não coloca tanto de si na
jornada do seu Salvador.
Enquanto Pedro Almodóvar segue no ápice, produtivo, influente e bastante
ativo, o personagem central aqui surge anestesiado pela vida. Inerte,
melancólico, resignado. Um artista derrotado pela improdutividade, pela saúde
frágil, pela solidão. “Sem filmar minha vida não faria sentido”, diz Salvador.
E Salvador já não podia filmar mais. Neste aspecto, é difícil traçar qualquer
paralelo entre o personagem e o seu criador. Por mais que Salvador traga
consigo características claras de Almodóvar, o cabelo arrepiado, o encantamento
pelo feminino, a homossexualidade e as dores crônicas, o protagonista (em sua
camada mais superficial) não parece dizer tanto assim sobre o diretor. Talvez
intimamente Almodóvar sofra. Talvez ele tenha encontrado em Salvador a
oportunidade de escancarar o quão duro é o processo de filmagens (e a vida como
um todo) para um artista envelhecido. Talvez, talvez... O cineasta é astuto ao,
até aqui, testar as expectativas do público. Especular sobre as reais angústias
físicas e emocionais de um homem acostumado a criar.
É quando decide olhar para a intimidade do seu personagem, no entanto, que
Pedro Almodóvar se expõe mais. As memórias do diretor refletem a influência do
feminino na sua formação com maestria. Sob a perspectiva do pequeno Salvador,
ele fala sobre resiliência, sobre cultura, sobre educação, sobre o efeito
transformador da arte, sobre a sua paixão pelo masculino. Temas que,
claramente, moldaram não só a sua carreira, mas também a sua vida. Penélope
Cruz, por exemplo, surge como um poético símbolo do feminino. Uma matriarca
valente que, mesmo fiel à sua visão de mundo, nunca cortou as asas do seu
filho. Uma performance radiante. É na relação com ela, aliás, que Almodóvar expõe
melhor os seus medos mais íntimos. Temores reconhecíveis. O medo de não ter
sido um grande filho, o medo de ter a frustrado por sua profissão\opção sexual,
o medo de perde-la, o medo de não ter quem o guiar. Vendo Dor e Glória fica
fácil entender o respeito do cineasta pelos tipos maternais. Se as mulheres o
inspiram e são inquestionáveis, os homens o atraem e são por vezes um fardo. Amor,
raiva e frustração andam de mãos dadas na relação de Salvador com o masculino.
No ápice da sua inércia, ele, a partir de um reencontro com o seu passado,
decide se expor, se revelar. E isso o conduz por uma tortuosa, mas
recompensadora jornada. Por mais que o roteiro use e abuse das conveniências
narrativas, Almodóvar compensa ao usar as coincidências e as simplificações
dramáticas para assumir publicamente aquilo que o move. Em Dor e Glória são os
homens que o revigoram. Um velho parceiro do passado (Asier Etxeandia),
uma paixão que o tempo tratou de esfriar (Leonardo Sbaraglia), um empregado que ajudou a mudar o rumo da sua vida
(César Vicente). O cinema, aqui, é o meio encontrado por Salvador para expugnar
os seus fantasmas e canalizar os seus sentimentos. O cinema é o espelho do
protagonista e consequentemente do próprio Almodóvar.
E com isso não quero dizer que a arte tem um papel diminuto na jornada
de Salvador. Muito pelo contrário. É quando fala sobre a sua profissão que o
cineasta espanhol mais se revela. “Um grande ator não é aquele que chora, mas o
que resiste ao choro”, diz Salvador em certo momento do longa. Uma verdadeira ‘masterclass’.
Indo de encontro a muitos filmes da sua carreira, Almodóvar assume a sua face
mais contida ao entender o estado de espírito do seu personagem. Estamos diante
de uma obra madura. Honesta em sua proposta. Que em muitos momentos assume um
teor confessional. A partir da visão de mundo de Salvador enxergamos muito da
visão de cinema de Almodóvar. A sua relação com o passado. O seu fascínio pelo
feminino. O seu olhar compreensivo sobre temas complexos. Por mais que as cores
dos cenários sigam vivas, que a fotografia siga vibrante, que o vermelho siga predominante,
o realizador reflete sobre a sua vida\carreira em tons mais contemplativos. O
que fica bem claro, óbvio, na contida performance de Antônio Banderas. Fazendo
jus aos ensinamentos do seu Salvador, o expansivo ator interioriza mais do que
extravasa. Ouve mais do que fala. Observa mais do que revela. Um trabalho
minucioso. A dor e a glória do personagem são expostas nos detalhes. Nas suas
memórias da infância. No seu modo de andar. No seu olhar de vulnerabilidade.
Banderas surge cansado em cena, mas nunca opaco ou sem vida. Um homem castigado
que convence do primeiro ao último minuto de película. Um predicado, verdade
seja dita, potencializado pelo dinâmico vai e vem temporal pensado por
Almodóvar.
Contando ainda com uma solução final espertíssima, o elemento da
metalinguagem, sem querer revelar muito, é utilizado com brilhantismo, Dor e
Glória é uma obra singular dentro da carreira de Pedro Almodóvar. Um retrato
recheado de fatos, sugestões e especulações sobre a relação de um artista com a
sua obra e por consequência com a sua própria vida. Uma autoficção que, embora
venda uma imagem preocupante para os fãs do realizador espanhol ao se
concentrar na figura de um diretor obrigado a encarar a sua decadência
física\emocional, reluta em tratar a desistência como a única resposta para a
melancolia. No fim, como de costume na carreira de Almodóvar, a mensagem é de
resiliência e resistência. Apesar do envelhecimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário