quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Crítica | Dor e Glória

O que move um artista

É impossível determinar o quanto Dor e Glória tem a dizer sobre a vida e o passado de Pedro Almodóvar. É fácil perceber, porém, que nunca o aclamado cineasta espanhol se expôs tanto. Tratado pelo próprio como o filme mais pessoal da sua carreira, o drama existencialista estrelado por Antônio Banderas merece ser analisado - nas palavras do realizador - como uma autoficção. Embora coloque um cansado diretor na posição de protagonista, algo que, naturalmente, sugere certa literalidade, Almodóvar é categórico ao se revelar mais nas entrelinhas. Basta um olhar mais objetivo para percebermos que ele não coloca tanto de si na jornada do seu Salvador. 

Enquanto Pedro Almodóvar segue no ápice, produtivo, influente e bastante ativo, o personagem central aqui surge anestesiado pela vida. Inerte, melancólico, resignado. Um artista derrotado pela improdutividade, pela saúde frágil, pela solidão. “Sem filmar minha vida não faria sentido”, diz Salvador. E Salvador já não podia filmar mais. Neste aspecto, é difícil traçar qualquer paralelo entre o personagem e o seu criador. Por mais que Salvador traga consigo características claras de Almodóvar, o cabelo arrepiado, o encantamento pelo feminino, a homossexualidade e as dores crônicas, o protagonista (em sua camada mais superficial) não parece dizer tanto assim sobre o diretor. Talvez intimamente Almodóvar sofra. Talvez ele tenha encontrado em Salvador a oportunidade de escancarar o quão duro é o processo de filmagens (e a vida como um todo) para um artista envelhecido. Talvez, talvez... O cineasta é astuto ao, até aqui, testar as expectativas do público. Especular sobre as reais angústias físicas e emocionais de um homem acostumado a criar. 



É quando decide olhar para a intimidade do seu personagem, no entanto, que Pedro Almodóvar se expõe mais. As memórias do diretor refletem a influência do feminino na sua formação com maestria. Sob a perspectiva do pequeno Salvador, ele fala sobre resiliência, sobre cultura, sobre educação, sobre o efeito transformador da arte, sobre a sua paixão pelo masculino. Temas que, claramente, moldaram não só a sua carreira, mas também a sua vida. Penélope Cruz, por exemplo, surge como um poético símbolo do feminino. Uma matriarca valente que, mesmo fiel à sua visão de mundo, nunca cortou as asas do seu filho. Uma performance radiante. É na relação com ela, aliás, que Almodóvar expõe melhor os seus medos mais íntimos. Temores reconhecíveis. O medo de não ter sido um grande filho, o medo de ter a frustrado por sua profissão\opção sexual, o medo de perde-la, o medo de não ter quem o guiar. Vendo Dor e Glória fica fácil entender o respeito do cineasta pelos tipos maternais. Se as mulheres o inspiram e são inquestionáveis, os homens o atraem e são por vezes um fardo. Amor, raiva e frustração andam de mãos dadas na relação de Salvador com o masculino. No ápice da sua inércia, ele, a partir de um reencontro com o seu passado, decide se expor, se revelar. E isso o conduz por uma tortuosa, mas recompensadora jornada. Por mais que o roteiro use e abuse das conveniências narrativas, Almodóvar compensa ao usar as coincidências e as simplificações dramáticas para assumir publicamente aquilo que o move. Em Dor e Glória são os homens que o revigoram. Um velho parceiro do passado (Asier Etxeandia), uma paixão que o tempo tratou de esfriar (Leonardo Sbaraglia), um empregado que ajudou a mudar o rumo da sua vida (César Vicente). O cinema, aqui, é o meio encontrado por Salvador para expugnar os seus fantasmas e canalizar os seus sentimentos. O cinema é o espelho do protagonista e consequentemente do próprio Almodóvar.


E com isso não quero dizer que a arte tem um papel diminuto na jornada de Salvador. Muito pelo contrário. É quando fala sobre a sua profissão que o cineasta espanhol mais se revela. “Um grande ator não é aquele que chora, mas o que resiste ao choro”, diz Salvador em certo momento do longa. Uma verdadeira ‘masterclass’. Indo de encontro a muitos filmes da sua carreira, Almodóvar assume a sua face mais contida ao entender o estado de espírito do seu personagem. Estamos diante de uma obra madura. Honesta em sua proposta. Que em muitos momentos assume um teor confessional. A partir da visão de mundo de Salvador enxergamos muito da visão de cinema de Almodóvar. A sua relação com o passado. O seu fascínio pelo feminino. O seu olhar compreensivo sobre temas complexos. Por mais que as cores dos cenários sigam vivas, que a fotografia siga vibrante, que o vermelho siga predominante, o realizador reflete sobre a sua vida\carreira em tons mais contemplativos. O que fica bem claro, óbvio, na contida performance de Antônio Banderas. Fazendo jus aos ensinamentos do seu Salvador, o expansivo ator interioriza mais do que extravasa. Ouve mais do que fala. Observa mais do que revela. Um trabalho minucioso. A dor e a glória do personagem são expostas nos detalhes. Nas suas memórias da infância. No seu modo de andar. No seu olhar de vulnerabilidade. Banderas surge cansado em cena, mas nunca opaco ou sem vida. Um homem castigado que convence do primeiro ao último minuto de película. Um predicado, verdade seja dita, potencializado pelo dinâmico vai e vem temporal pensado por Almodóvar.


Contando ainda com uma solução final espertíssima, o elemento da metalinguagem, sem querer revelar muito, é utilizado com brilhantismo, Dor e Glória é uma obra singular dentro da carreira de Pedro Almodóvar. Um retrato recheado de fatos, sugestões e especulações sobre a relação de um artista com a sua obra e por consequência com a sua própria vida. Uma autoficção que, embora venda uma imagem preocupante para os fãs do realizador espanhol ao se concentrar na figura de um diretor obrigado a encarar a sua decadência física\emocional, reluta em tratar a desistência como a única resposta para a melancolia. No fim, como de costume na carreira de Almodóvar, a mensagem é de resiliência e resistência. Apesar do envelhecimento.

Nenhum comentário: