quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Crítica | O Irlandês (The Irishman)

Uma viagem pelo passado

Martin Scorsese, ao lado de Francis Ford Coppola e Brian de Palma, ajudou a redefinir o que chamamos de filmes de máfia. Embora lá atrás, no início dos anos 1930, o subgênero tenha sido consagrado com títulos como Alma no Lodo (1931), de Mervyn Leroy, Inimigo Público (1931), de William A. Wellman, e Scarface: A Vergonha da Nação (1932), de Howard Hanks e Howard Hughes, o malfadado Código Hays (um conjunto de normais moras que vigorou na indústria do entretenimento entre 1930 e 1968) surgiu como uma enorme pedra no sapato no segmento. Os poderosos estavam cansados de ver os gangsters tratados como ícones populares nos jornais, no rádio e no cinema norte-americanos. Nos anos seguintes o que aconteceu foi a “morte” destes personagens dúbios. Um cenário que, com raríssimas exceções, vigorou até quase o final dos anos sessenta. Só em 1967, com o aclamado Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas, Hollywood voltaria a ter uma grande produção protagonizada por verdadeiros criminosos. Mais do que isso. O diretor Arthur Penn inauguraria com a sua produção um movimento conhecido como a Nova Hollywood, uma corrente cinematográfica de vanguarda que, dentre outros grandes realizadores, revelou os três nomes que abrem este texto. Juntos, Coppola, Scorsese e De Palma reaqueceram o subgênero com títulos como O Poderoso Chefão (1972), Caminhos Perigosos (1973), O Poderoso Chefão: Parte 2 (1974), Scarface (1983) e Os Bons Companheiros (1990). O tipo de produção que durante muito tempo o público foi privado de assistir.



Sem falso moralismo, o trio enxergou além do glamour tão reforçado pela mídia entre os anos 1920 e 1960. Sim, alguns gangsters eram tão (ou mais) populares que cantores e estrelas do cinema. Por trás do rígido código de ética, do luxo e do poder existia ambição, violência, amargura, agressividade. Tudo tinha um preço. E os cineastas citados acima estavam dispostos a expor isso. A investigar, sem julgamentos, até onde um homem estaria disposto a ir para conseguir algo que julgava seu por direito e (claro!) as consequências deste comportamento. Assim nasceram personagens icônicos com Don Corleone (Marlon Brando), Michael Corleone (Al Pacino), Tony Montana (Al Pacino), Henry Hill (Ray Liotta), Tommy DeVito (Joe Pesci). Figuras que, mais do que refletir a realidade do crime organizado, expressavam a verdade daqueles que encontraram na violência um instrumento de ascensão social. Uma visão de mundo que décadas depois volta a ser explorada com brilhantismo no primoroso O Irlandês. De volta ao subgênero que o consagrou após treze anos, o seu último trabalho neste universo foi o implacável Os Infiltrados (2006), Martin Scorsese decide revisitar os filmes de máfia (e a história dos EUA por tabela) sob um ponto de vista calejado e melancólico. Seu novo filme passeia pelo passado com dor, com dramaticidade, com pesar. Como se só agora, do alto dos seus 77 anos, tal qual o seu complexo protagonista, ele tivesse finalmente enxergado o todo. Tivesse a certeza que, neste mundo, pior do que morrer é envelhecer. O silêncio nunca foi tão devastador. Não existe espaço para o sentimentalismo aqui. Uma obra impressionante até para o padrão Martin Scorsese de qualidade.


Assim como muitos títulos do subgênero, O Irlandês é um filme sobre homens forjados na violência e o efeito dela nas suas respectivas identidades. O diferencial fica pela perspectiva revisionista proposta por Martin Scorsese. Tomando como base o livro I Heard You Paint Houses: Frank "The Irishman" Sheeran and the Closing of the Case on Jimmy Hoffa, de Charles Brandt, o argumento assinado por Steven Zaillian (A Lista de Schindler) invade este rico e brutal universo sob a óptica de um homem cansado. Um mafioso que viveu demais e teve que conviver com o remorso, com o peso dos seus atos, com a penitência. Assim como Clint Eastwood fez em Os Imperdoáveis (1992), Scorsese desconstrói a estética e os símbolos que ajudou a arquitetar ao renegar qualquer resquício de glamourização do tema. A máfia, me arrisco a dizer, nunca foi exposta de forma tão dura, seca e impiedosa. A violência nunca foi tão abrupta. Tão banal. Não existe um resquício de glória aqui. Existe sentimento entre os personagens? Claro! Uma mistura de emoções trabalhadas com enorme sensibilidade por Scorsese. Desde o início, porém, talvez pelo fato da história ser narrada por um envelhecido Frank Sheeran (Robert De Niro), os personagens parecem conscientes de que naquele mundo eles não poderiam se apegar tanto. Inspirado em fatos majoritariamente concretos, isso porque alguns dos episódios “revelados” nunca foram elucidados, o realizador provoca um misto de sensações ao investigar a intimidade de um grupo de personagens embrutecidos pelos seus atos. Mais do que narrar a trajetória de Frank, O Irlandês, Scorsese se encanta pela tridimensionalidade do personagem. Pela trajetória de um tipo fiel que ascendeu graças a isso. Fazendo um brilhante uso da não linearidade narrativa, o diretor pinta, enquanto estudo de personagem individual, um retrato dramático de um homem obrigado a conviver com os dois lados da moeda. Com a violência e o afago. Com a tristeza e a satisfação. Com o poder e o esquecimento. Com amigos que se tornam ameaças. E consequentemente com a solidão. 


O que mais fascina em O Irlandês, na verdade, é a capacidade de Martin Scorsese em consolidar os laços afetivos que regem a jornada de Frank. Ao longo das envolventes três horas e meia de produção, o realizador dedica o tempo necessário para que possamos entender as emoções do protagonista a partir das suas relações. E aqui, apesar dos enormes méritos narrativos, o texto, em especial, é de um refinamento ímpar, precisamos ressaltar o impacto do majestoso elenco na construção dramática da obra. Com um trio de personagens riquíssimos em mãos, Scorsese encontra na maturidade de Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino o que precisava para se distanciar do ar epopeico que geralmente costuma impregnar o gênero. Tudo aqui é muito contido. Muito íntimo. Os personagens resistem em exprimir os seus verdadeiros sentimentos. É um jogo de poker constante comandado por um cineasta sedento por estas reações naturais, disposto a enxergar o tema sob uma nova perspectiva. Mais lúcida, mais trágica, mais humana. O Frank de De Niro, por exemplo, se revela o típico homem que criou uma casca para sobreviver. Ele é prático, frio, objetivo. Uma pessoa programada para cumprir ordens com a esperança de sustentar os seus com aquilo que considerava justo. Não demora, porém, para percebermos que existe muito além disso. Escondido na imponência de Frank existe um comovente senso de camaradagem, existe apreço, inocência, medo, tristeza, melancolia. Na sua melhor atuação em anos, De Niro absorve as conflitantes emoções do seu personagem com rara intensidade, o que torna as suas ações\reações sempre mais impactantes. Ele consegue exprimir sentimentos sem necessariamente verbaliza-los. Algo vital no mundo em que o seu personagem habitava. 


O que fica bem claro, por sinal, na delicada relação entre Frank e o seu “padrinho”, o temido Russel Buffalino (Joe Pesci). O tipo de vínculo que sintetiza com maestria o que era viver no mundo do crime organizado. Ao mesmo tempo em que narra (com um senso de objetividade impressionante) a trajetória de ascensão do Irlandês rumo ao topo da “cadeia alimentar”, Martin Scorsese se preocupa em se aprofundar nos meandros desta parceria. No efeito causado por Russel não só em Frank, como em todos aqueles que o cercavam. É aqui que melhor enxergamos o perigo escondido num sorriso. O poder que uma simples palavra pode ter sobre um homem. O diretor se preocupa em expor tanto o elo de fidelidade entre os dois, quanto o desequilíbrio da balança que determinava a posição deles aos olhos do todo. Um passo em falso e tudo poderia mudar. Como se, de certa forma, Frank tivesse assinado um acordo unilateral em que só ele poderia sair perdendo. Um sentimento de vulnerabilidade potencializado pela soberba presença de Joe Pesci. Sem medo de errar, o camisa 10 nesta constelação de estrelas. Apesar da presença frágil e do ar simpático do seu Russel, o experiente ator nos brinda com uma performance a sua maneira assustadora. Ele não precisa perder a calma para ameaçar. Ele não precisa espancar alguém. Sequer pegar em uma arma. Pesci se impõe na base do olhar. O seu Russel consegue ao mesmo tempo cativar e ferir. Consegue alcançar o seu objetivo sem ao menos pedir. O tipo de figura que definitivamente você não quer incomodar. O que, aliás, ajuda a explicar a constante troca de sutilezas na relação entre Frank e Russel. Sem querer revelar muito, Scorsese é particularmente habilidoso ao concretizar essa percepção a partir do acuado\desconfortável olhar de Peggy (Lucy Gallina\Anna Paquin), a silenciada filha do protagonista, indo além do ambiente da máfia ao traduzir o impacto da violência no seio familiar. E isso, diga-se de passagem, sem que nunca o personagem assuma uma presença vilanesca e\ou perversa. Nos momentos em que o mafioso “se desarma”, Pesci esbanja o seu reconhecido carisma ao traduzir os sentimentos mais reprimidos do gangster, ao revelar o seu senso de cumplicidade, a sua presença pacificadora e a sua crescente sensação de frustração diante das medidas mais drásticas. Definitivamente, Frank e Russel pertencem ao mesmo mundo.


O Irlandês, em contrapartida, expõe o seu lado mais sentimental no momento em que foca em outra importante figura da sua época, o poderoso líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino). Enquanto se concentra na crescente relação de afeto entre o sindicalista e Frank, Martin Scorsese desmonta o seu protagonista ao mostrar o seu lado mais humano. Com dinamismo e uma bem-vinda preocupação com o contexto histórico, o realizador consegue estreitar os laços entre os dois personagens à medida que invade os bastidores de uma outra disputa pelo topo. Se a força de Frank nasce da brutalidade, a de Jimmy nasce da sua influência. Embora, num determinado momento da história recente, Hoffa tenha sido uma das figuras mais poderosas dos EUA, Scorsese se encanta pelo homem por trás do mito. Vemos não só o orador midiático, o negociante implacável, mas também o homem seduzido pelo holofote, a sua arrogância, a sua bondade, o seu carinho pelos amigos, a sua devoção pela causa. Uma figura repleta de falhas e virtudes que só ajuda a enriquecer dramaticamente a jornada de Frank. Algo que Pacino, com uma vitalidade digna de inveja, captura ora com um histrionismo inconsequente milimetricamente calculado, ora com uma dose de delicadeza capaz de comover até os menos emotivos. Até porque, Martin Scorsese sabe apertar os botões certos na hora certa. Como disse acima, o realizador é cuidadoso ao, nos momentos chave da trama, pisar no freio, valorizar o silêncio, construir a tensão nos detalhes, escancarando a bússola moral dos seus respectivos personagens ao revelar (sem um pingo de condescendência) o tal do preço pago por cada um deles para chegar ao topo. Mais do que simplesmente sugerir respostas para alguns “mistérios” ainda hoje debatidos, Scorsese se preocupa em solidificar a sua visão dos fatos, em entender os atos destes homens e o trágico efeito deles nas suas vidas. O estrago, graças a sutileza dilacerante do cineasta, não poderia ficar mais claro aos olhos do público. 


No fim, ainda que funcione magistralmente enquanto filme de máfia, O Irlandês usa a violência como o agente catalisador para um estudo de personagem dramático, íntimo e genuinamente doloroso. Um retrato revisionista sobre o destino daqueles que fizeram da morte a sua profissão. No auge da sua maturidade, Martin Scorsese troca o ritmo frenético de Os Bons Companheiros (1990) por um sereno ar melancólico, desbravando o turbilhão de emoções de um grupo de homens reprimidos pela natureza bruta do mundo em que habitam. Por trás dos inúmeros predicados artísticos (entre eles os enquadramentos dignos de moldura, os planos criativos que parecem cansados de "pintar a tela de vermelho", os espantosos efeitos digitais de rejuvenescimento facial, a envernizada fotografia em tons frios\amadeirados de Rodrigo Prieto e o primoroso trabalho da equipe de direção de arte) reside talvez a obra mais franca e objetiva de Scorsese desde a sua fase inicial. Um filme gigante em seu aspecto artístico, mas pessoal em sua proposta. Poucas vezes o fardo da velhice foi explorado com tanto peso. Sem medo de errar, o mais profundo (e questionador) título do subgênero desde O Poderoso Chefão 2.

Um comentário:

Unknown disse...

Puxa deve ser mesmo um filmaço. E vai faturar Oscar, é certo.