terça-feira, 29 de outubro de 2019

Crítica | O Ano de 1985

O Outro lado dos anos 1980

Hollywood ajudou a “colorir” a década de 1980. Tudo era muito vibrante, musical, estilizado, irreverente. O escapismo moldou uma geração que cresceu assistindo John Hughes, Steven Spielberg, George Lucas, Robert Zemeckis, Os Trapalhões e os “brucutus” do cinema de ação. É fácil entender porque até hoje a mídia olha com saudosismo para este período. Por trás desta gama de filmes ingênuos e descomplicados, porém, existia a dura realidade. O mundo “lá fora” estava à beira do caos. Guerra Fria, ameaça atômica, ditaduras, violência urbana, crise econômica, o ‘boom’ da Aids, conservadorismo... Uma série de males que acometiam o dia a dia de muitos, tornando tudo mais cinza, mais triste, mais complexo. Um outro lado dos anos oitenta que pode ser notado com clareza no sensível drama O Ano de 1985. Tocando em feridas ainda hoje reconhecíveis, o profundo longa escrito e dirigido por Yen Tan invade a rotina de uma família aparentemente funcional para refletir sobre o impacto da repressão na identidade\destino de um jovem homem às avessas com uma dolorosa verdade. Um filme sobre segredos translúcidos, sobre os tabus em torno da aceitação e a delicada posição daqueles impedidos de assumirem o que são. 



Indo de encontro à corrente nostálgica que tomou conta de Hollywood nos últimos anos, Yen Tan opta por mostrar a realidade como ela era. Ou melhor, como ainda é para muitos. Sem filtros, sem cores, sem escape. Muito mais do que um mero recurso estético, a soturna e dessaturada fotografia em preto e branco ajuda a traduzir o estado de espírito do jovem protagonista, o sensível Adrian (Cory Michael Smith). De volta para casa após um longo período, o publicitário esconde na bagagem um segredo devastador, daqueles que poderiam arruinar a sua relação com os conservadores pais. Entre a cruz e a espada, Adrian tenta encontrar a coragem que precisava para finalmente se abrir junto a eles. Ele então decide tirar proveito das festas natalinas para se reconectar com os dois, tateando no escuro à procura da brecha perfeita para se abrir. Tudo, no entanto, ganha contornos mais complicados quando ele percebe que o seu solitário irmão, o afetuoso Andrew (Aidan Langford, olho nele), está prestes a enfrentar uma jornada tão tortuosa quanto a sua. O que só ajuda a potencializar as suas inseguranças quanto ao estrago que a revelação poderia causar dentro do seu núcleo familiar.


Tal qual Adrian, O Ano de 1985 é um filme que expõe mais do que diz. O que aqui faz todo o sentido. Yen Tan mostra máximo respeito pelo seu personagem ao compreender os seus atos. Com um olhar humano sobre os seus conflitos, o realizador malaio toca em feridas reconhecidas ao invadir a intimidade de um homem com medo, em constante fuga. É muito fácil julgar Adrian. É muito fácil taxa-lo como um covarde. É muito fácil condenar o roteiro por não tocar em temas tão importantes com a franqueza que o movimento LGBT precisa na atualidade. Basta o mínimo exercício de empatia, porém, para entendermos a posição dele. A questão aqui não gira em torno de um personagem em busca de autoafirmação, mas de aceitação. Consciente disso, Tan esbanja sutileza ao acompanhar os erráticos passos de um homem obrigado a finalmente expor a verdade para àqueles que mais amava. Uma revelação que poderia abalar a estrutura de duas figuras conservadoras por natureza. Ao contrário de muitos filmes do gênero, que, na ânsia de fortalecer a sua mensagem, optam por vilanizar o outro lado, O Ano de 1985 é igualmente humano ao dar voz aos pais de Adrian. Ninguém ali é gratuitamente preconceituoso, hostil às diferenças ou agressivo. Tanto o rústico Dale (Michael Chiklis, excelente), um veterano de guerra incapaz de exibir os seus sentimentos, quanto a singela Eileen (Virginia Madsen, cativante), uma dona de casa recatada disposta a tudo para acolher o seu querido filho, ganham nuances complexas. A barreira que os separa é quase invisível. Fortalecida pela ignorância, por raízes machistas, pela falta de voz. Numa das passagens de maior franqueza da obra, Dale, alcoolizado, confidencia ao filho que o seu pai não o abraçava, que o criou desse jeito e que isso deu "certo". Existe dúvida nesta afirmação. Um sentimento de incerteza que claramente foi passado de pai para filho.


Por mais que a sua opção sexual não fosse um problema, Adrian é também um personagem em dúvidas. Em sérias dúvidas. Um homem fragilizado castigado pelo meio em que vivia. Atordoado pelo preconceito, pela dura realidade que muitos gays enfrentavam nos anos oitenta. Um sentimento que O Ano de 1985 explora com maestria do primeiro ao último minuto de projeção. Existe um claro senso de proteção aqui. A fotografia em preto e branco ajuda a esconder aquilo que o personagem não quer que outros visualizem. O seu olhar de tristeza, a sua desconcertante falta de perspectivas, o beijo naquele que ele mais amava. Sem a intenção de reduzir tudo ao sentimentalismo, Yen Tan é categórico ao enxergar além do medo do protagonista. À medida que a trama avança percebemos que a insegurança dele diz mais sobre o próprio Adrian, do que sobre o temor envolvendo a relação dele com os pais. O argumento é cuidadoso ao capturar a dificuldade do jovem em verbalizar aquilo que ele precisa (ou quer) dizer. O que fica bem claro, em especial, no comovente reencontro com a sua ex-namorada, a independente Carly (Jamie Chang, ótima). A impressão que fica é que o tal muro invisível foi arquitetado pelo próprio protagonista e que ele não podia mais esconder uma verdade translúcida. Com um misto de comedimento e intensidade, Cory Michael Smith absorve o turbilhão de emoções enfrentado pelo seu Adrian com naturalidade, permitindo que o público (assim como Tan) pudesse também entender a sua visão sobre os fatos. Não é fácil jogar tudo para o alto. Não é fácil mudar da noite para o dia a forma como os demais passariam a enxerga-lo. Não é fácil colocar em risco o elo com aqueles que o geraram. Os segredos, aqui, estão tão enraizados que já não podem mais serem ceifados de uma única vez.


Tratando o tempo como um adversário impiedoso, O Ano de 1985 investiga uma reconhecível realidade sob uma óptica intimista, delicada e genuinamente familiar. Disposto a respeitar a essência dos seus personagens, Yen Tan nos brinda com um drama autêntico e envolvente, um estudo de personagem complexo que não se contenta em permanecer na superfície. Somado a isso, ao trocar o julgamento pela compreensão, o longa pinta um retrato denso sobre um período devastador para muitos, renegando o escapismo oitentista ao escancarar as chagas em torno de uma amarga volta para casa.

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