Hollywood ajudou a “colorir” a
década de 1980. Tudo era muito vibrante, musical, estilizado, irreverente. O
escapismo moldou uma geração que cresceu assistindo John Hughes,
Steven Spielberg, George Lucas, Robert Zemeckis, Os Trapalhões e os “brucutus”
do cinema de ação. É fácil entender porque até hoje a mídia olha com saudosismo
para este período. Por trás desta gama de filmes ingênuos e descomplicados,
porém, existia a dura realidade. O mundo “lá fora” estava à beira do caos.
Guerra Fria, ameaça atômica, ditaduras, violência urbana, crise econômica, o
‘boom’ da Aids, conservadorismo... Uma série de males que acometiam o dia a dia
de muitos, tornando tudo mais cinza, mais triste, mais complexo. Um outro lado
dos anos oitenta que pode ser notado com clareza no sensível drama O Ano de
1985. Tocando em feridas ainda hoje reconhecíveis, o profundo longa escrito e
dirigido por Yen Tan invade a rotina de uma família aparentemente funcional
para refletir sobre o impacto da repressão na identidade\destino de um jovem
homem às avessas com uma dolorosa verdade. Um filme sobre segredos
translúcidos, sobre os tabus em torno da aceitação e a delicada posição
daqueles impedidos de assumirem o que são.
Indo de encontro à corrente
nostálgica que tomou conta de Hollywood nos últimos anos, Yen Tan opta por mostrar
a realidade como ela era. Ou melhor, como ainda é para muitos. Sem filtros, sem
cores, sem escape. Muito mais do que um mero recurso estético, a soturna e
dessaturada fotografia em preto e branco ajuda a traduzir o estado de espírito
do jovem protagonista, o sensível Adrian (Cory Michael Smith). De volta para
casa após um longo período, o publicitário esconde na bagagem um segredo
devastador, daqueles que poderiam arruinar a sua relação com os conservadores
pais. Entre a cruz e a espada, Adrian tenta encontrar a coragem que precisava
para finalmente se abrir junto a eles. Ele então decide tirar proveito das
festas natalinas para se reconectar com os dois, tateando no escuro à procura da
brecha perfeita para se abrir. Tudo, no entanto, ganha contornos mais
complicados quando ele percebe que o seu solitário irmão, o afetuoso Andrew (Aidan
Langford, olho nele), está prestes a enfrentar uma jornada tão tortuosa quanto
a sua. O que só ajuda a potencializar as suas inseguranças quanto ao estrago que
a revelação poderia causar dentro do seu núcleo familiar.
Tal qual Adrian, O Ano de 1985 é
um filme que expõe mais do que diz. O que aqui faz todo o sentido. Yen Tan
mostra máximo respeito pelo seu personagem ao compreender os seus atos. Com um
olhar humano sobre os seus conflitos, o realizador malaio toca em feridas
reconhecidas ao invadir a intimidade de um homem com medo, em constante fuga. É
muito fácil julgar Adrian. É muito fácil taxa-lo como um covarde. É muito fácil
condenar o roteiro por não tocar em temas tão importantes com a franqueza que o
movimento LGBT precisa na atualidade. Basta o mínimo exercício de empatia,
porém, para entendermos a posição dele. A questão aqui não gira em torno de um
personagem em busca de autoafirmação, mas de aceitação. Consciente disso, Tan
esbanja sutileza ao acompanhar os erráticos passos de um homem obrigado a
finalmente expor a verdade para àqueles que mais amava. Uma revelação que
poderia abalar a estrutura de duas figuras conservadoras por natureza. Ao
contrário de muitos filmes do gênero, que, na ânsia de fortalecer a sua
mensagem, optam por vilanizar o outro lado, O Ano de 1985 é igualmente humano
ao dar voz aos pais de Adrian. Ninguém ali é gratuitamente preconceituoso, hostil às
diferenças ou agressivo. Tanto o rústico Dale (Michael Chiklis,
excelente), um veterano de guerra incapaz de exibir os seus sentimentos, quanto
a singela Eileen (Virginia Madsen, cativante), uma dona de casa recatada disposta
a tudo para acolher o seu querido filho, ganham nuances complexas. A barreira
que os separa é quase invisível. Fortalecida pela ignorância, por raízes
machistas, pela falta de voz. Numa das passagens de maior franqueza da obra,
Dale, alcoolizado, confidencia ao filho que o seu pai não o
abraçava, que o criou desse jeito e que isso deu "certo". Existe dúvida nesta
afirmação. Um sentimento de incerteza que claramente foi passado de pai para
filho.
Por mais que a sua opção sexual não
fosse um problema, Adrian é também um personagem em dúvidas. Em sérias dúvidas. Um homem fragilizado castigado pelo meio em que vivia. Atordoado pelo preconceito, pela dura realidade que muitos gays enfrentavam nos anos oitenta. Um sentimento
que O Ano de 1985 explora com maestria do primeiro ao último minuto de
projeção. Existe um claro senso de proteção aqui. A fotografia em preto e branco ajuda a esconder aquilo que o personagem não quer que outros visualizem. O seu olhar de tristeza, a sua desconcertante falta de
perspectivas, o beijo naquele que ele mais amava. Sem a intenção de reduzir tudo
ao sentimentalismo, Yen Tan é categórico ao enxergar além do medo do
protagonista. À medida que a trama avança percebemos que a insegurança dele diz mais sobre o próprio Adrian, do que sobre o temor envolvendo a
relação dele com os pais. O argumento é cuidadoso ao capturar
a dificuldade do jovem em verbalizar aquilo que ele precisa (ou quer) dizer. O que fica bem claro, em especial, no comovente reencontro com a sua
ex-namorada, a independente Carly (Jamie Chang, ótima). A impressão que fica é que o tal muro invisível foi arquitetado pelo próprio
protagonista e que ele não podia mais esconder uma verdade translúcida. Com um
misto de comedimento e intensidade, Cory Michael Smith absorve o
turbilhão de emoções enfrentado pelo seu Adrian com naturalidade, permitindo
que o público (assim como Tan) pudesse também entender a sua visão sobre os
fatos. Não é fácil jogar tudo para o alto. Não é fácil mudar da noite para o
dia a forma como os demais passariam a enxerga-lo. Não é fácil colocar em risco
o elo com aqueles que o geraram. Os segredos, aqui, estão tão enraizados que já
não podem mais serem ceifados de uma única vez.
Tratando o tempo como um
adversário impiedoso, O Ano de 1985 investiga uma reconhecível realidade sob
uma óptica intimista, delicada e genuinamente familiar. Disposto a respeitar a
essência dos seus personagens, Yen Tan nos brinda com um drama autêntico e envolvente,
um estudo de personagem complexo que não se contenta em permanecer na
superfície. Somado a isso, ao trocar o julgamento pela compreensão, o longa
pinta um retrato denso sobre um período devastador para muitos, renegando o
escapismo oitentista ao escancarar as chagas em torno de uma amarga volta para
casa.
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