sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Crítica | Meu Nome é Dolemite (Dolemite is My Name)

Eddie Murphy is back!

Se tem uma coisa que Hollywood curte é o bom e velho ‘comeback’. A popular volta por cima. Quantos títulos foram produzidos sobre potenciais fracassos que se tornaram sucessos? Sobre os “vira-latas” que na base da superação chegaram ao topo contra tudo e contra todos?Inúmeros. Na música, no mundo dos negócios e (claro!) no cinema. Há pouco menos de dois anos, por exemplo, vimos um dos piores filmes já produzidos (o cult The Room) ser redimensionado aos olhos do ‘mainstream’ no aclamado O Artista do Desastre (2017). A indústria do entretenimento gosta de falar sobre os seus ‘cases’ mais inusitados tanto quanto as suas maiores estrelas. Algo que vemos mais uma vez no irreverente Meu Nome é Dolemite. Muito mais do que uma cinebiografia padrão, o longa dirigido por Craig Brewer (Ritmo de um Sonho) supera todas as expectativas ao usar o ponto de vista do seu resiliente biografado na construção de um relato efervescente sobre o blaxploitation. Indo muito além da “casca” trash e pretensamente vulgar para muitos, o realizador invade os bastidores de uma das produções mais rentáveis deste período com um olhar atento para a representatividade daquele movimento, refletindo sobre empoderamento e a identidade afro-americana numa comédia dramática enérgica, engraçada e ao mesmo tempo consciente do impacto cultural de uma figura como Billy Ray Moore. Uma produção com inúmeros predicados estéticos e narrativos, mas cujo a alma reside na elétrica presença de Eddie Murphy, magnífico ao capturar a extravagância deste período com a seriedade que o tema (e por consequência o filme) pedia. 



Tentar traçar um paralelo entre as figuras de Billy Ray Moore e Eddie Murphy seria um grande equívoco da minha parte. Da minha não. De qualquer um que tente tirar do papel alguma comparação. Enquanto o showman (músico, cantor, comediante) sempre viveu a margem do sucesso em busca de um lugar ao sol, Murphy se tornou quase que instantaneamente uma das maiores estrelas que Hollywood já viu. Só quem viveu\cresceu nos anos 1980 sabe qual foi o tamanho deste fenômeno. Em pouco menos de dez anos o então jovem comediante se tornou um dos astros mais lucrativos da indústria do entretenimento com títulos como 48 Horas (1982), Trocando as Bolas (1983), Um Tira da Pesada (1984), Um Príncipe em Nova York (1988). Embora nem sempre contando com a boa vontade da crítica norte-americana, Murphy estava nos cinemas, na TV (brilhando no Saturday Night Live), nos palcos (com os seus inúmeros shows de stand-up comedy) e até nas rádios (com as suas desastradas incursões no mundo do rap\black music). E permaneceu assim até o começo dos anos 2000 quando, repentinamente, num distorcido passe de mágica, Eddie Murphy perdeu o seu encanto. Seus filmes “solos” se tornaram ou fracassos inimagináveis de público (Pluto Nash, O Grande Dave), ou produções esquecíveis (A Mansão Mal-Assombrada, Imaginem Só!, Roubo nas Alturas). Ele até ensaiou abraçar um estilo mais “sério” de produção com competência no elogiado Dreamgirls, mas, neste meio tempo, o seu grande sucesso foi na comédia dublando o engraçadíssimo Burro da popular (e saturada) franquia Shrek. Uma situação que só pioraria nos anos seguintes. Prova disso é que entre 2012 e 2019, Eddie Murphy, uma das personas mais populares dos anos 80 e 90, só lançou um filme. Um mísero filme. O minúsculo Mr. Church (2016).


E isso talvez explique a gigantesca performance de Eddie Murphy em Meu Nome é Dolemite. Estamos diante de um ator desafiado. Disposto a recuperar o que é seu. Após tanto tempo ensaiando a sua grande “estreia” em um filme dramático, ele finalmente encontrou o papel em que pudesse canalizar todo o seu talento. Existe claramente muito de Murphy em Billy Ray Moore. Como se não bastasse a notória veia cômica destes dois realizadores, tanto biografado, quanto ator compartilharam em algum momento das suas respectivas carreiras sentimentos semelhantes. Um misto de angústia, disposição, criatividade, indignação e resiliência. Por mais que, volto a frisar, Murphy tenha alcançado o topo de Hollywood durante a maior parte da sua trajetória, é fácil enxergar as similaridades no estado de espírito destes dois artistas. Uma conexão que Craig Brewler e principalmente o próprio ator exploram com afinco na construção desta singular cinebiografia. Sem um pingo de vaidade quanto a sua figura, Eddie Murphy absorve o turbilhão de emoções enfrentado por Moore com a verdade de quem sentiu aquilo na pele. Por trás dos figurinos extravagantes e do inabalável otimismo do showman existia um homem corajoso e ao mesmo tempo inseguro, confiante e ao mesmo tempo traumatizado, inteligente e ao mesmo tempo despreparado, expansivo e ao mesmo tempo melancólico. Consciente da importância de Moore e daquilo que ele poderia representar aos olhos do público de hoje, Murphy consegue ir muito além do humor ao conferir peso e profundidade ao protagonista. Mesmo quando o dinâmico roteiro assinado por Scott Alexander e Larry Karaszewski não parece dar a devida a atenção à algumas das feridas abertas do biografado, entre elas a problemática relação com a sua figura paterna, o astro de Um Tira da Pesada compensa ao imprimir toda a raiva e tristeza em momentos mais despretensiosos. São neles, nas passagens mais silenciosas, em que realmente enxergamos o homem por trás do estereótipo, que vemos Murphy transcender as barreiras do gênero. Uma performance maiúscula.


Reduzir Meu Nome é Dolemite à figura de Eddie Murphy, porém, é um erro. E dos grandes. Por mais que o carisma magnético do ator faça toda a diferença, o longa consegue ir além da figura de Billy Ray Moore ao olhar para a produção cultural afro-americana nos anos 1970 com enorme originalidade. Com leveza e pulso narrativo, Craig Brewler enxerga a genialidade onde muitos viam vulgaridade, enxerga a arte onde muitos viam sujeira, enxerga o empreendedorismo onde muitos viam loucura. Através do alter-ego de Moore, o provocador Dolemite, o cineasta é cuidadoso ao expor a realidade do negro norte-americano na década de 1970. A falta de oportunidades, a violência urbana, a dependência, o constante flerte com a clandestinidade. Ao longo da jornada de Moore rumo ao sucesso, Brewler é perspicaz ao ver além das piadas de baixo calão. Escondido nelas existia um discurso de autoafirmação, de resistência, de construção de identidade. Dolemite (assim como Shaft, Foxy Brown e tantos outros ícones do blaxploitation) não só falava a linguagem do seu público, mas os representava. Ele era direto, agressivo, sem meias palavras. Era um homem de ação. Cansado de apanhar. Cansado de ser vítima. Um sentimento de anarquia que impregna o personagem e a sua inusitada produção. Nas entrelinhas, o realizador é habilidoso ao contextualizar tudo isso sem nunca soar demasiadamente didático. Os próprios obstáculos impostos a Moore e seus colaboradores falam por si só. Um passo em falso e tudo poderia ruir. Todos ali estavam conscientes disso. Até  por isso, aliás, é legal ver a naturalidade com que o argumento explora o senso de cumplicidade\comunidade e constrói o estreito elo entre os personagens. O que fica bem claro, em especial, na tocante relação entre Moore e a sua “protegida” Lady Reed (Da'Vine Joy Randolph, magnífica), uma relação singela movida pelo respeito, pela compreensão e por questões que ainda hoje merecem ser discutidas. Quem pagou para ver Murphy, aliás, deve se surpreender também com a impagável performance de Wesley Snipes, de volta a sua melhor forma na pele do afetadíssimo diretor D'Urville Martin.


Embora dê as suas escorregadas em alguns momentos, principalmente quando decide se render aos clichês dos filmes de superação, Meu Nome é Dolemite é o tipo de obra que se orgulha das suas raízes. E isso é absolutamente gratificante. Tal qual o recente Infiltrado na Klan (2018), a produção original Netflix captura com rara categoria o vigor estético dos anos 1970. Uma época de afirmação refletida nos exuberantes figurinos da vencedora do Oscar Ruth E. Carter (Pantera Negra), na explosão de cores pensada pela equipe de design de produção, na palheta de cores vivas da imersiva fotografia saturada de Eric Steelberg (com direito a uma aula sobre a iluminação da pele negra) e principalmente na expressão do talentoso elenco. Somado a isso, Craig Brewler esbanja perspicácia ao exaltar o trabalho de intrépidos realizadores da Sétima Arte, homens e mulheres dispostos a desafiar o sistema, a produzir por conta própria, o que torna os bastidores da reprodução das filmagens de Dolemite (1975) um prato cheio para qualquer fã de cinema. Um pequeno grande filme sobre um artista, um movimento e o impacto sociocultural dele.

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