sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Crítica | O Rei (The King)

Paz forjada na guerra

A segunda grande investida da Netflix no gênero épico, a primeira se deu no robusto Legítimo Rei (2018), O Rei tem muito mais em comum com o seu “antecessor” do que poderíamos esperar. Embora apenas distribuído pelo gigante do ‘streaming’, o longa foi produzido pela Plan B Entertainment (empresa de Brad Pitt), é interessante perceber o involuntário senso de unicidade entre as duas obras. Tal qual o pesado filme de David Mackenzie sobre o libertador da Escócia Robert The Bruce, o intimista retrato da ascensão do rei Henrique V pensado pelo diretor David Michôd (Reino Animal) renega os arquétipos previamente criados ao investigar a trajetória do jovem monarca sob uma óptica humana e nada reverente. Com base na visão ‘Shakespeariana’ da história, o talentoso realizador australiano redimensiona o conceito de “épico” ao trocar o gigantismo por uma insinuante trama palaciana, transitando habilmente entre os fatos e a reinterpretação dos mesmos a fim de pintar um retrato realista sobre um rei inexperiente, idealista e manipulado.



Tal qual Legítimo Rei, The King (no original) preza pelo rigor histórico acima de tudo. Por mais que vez ou outra o argumento assinado pelo próprio David Michôd, ao lado do ator Joel Edgerton, tome algumas liberdades poéticas, elas quase sempre apontam para o rumo dos fatos. Fazendo jus ao material fonte, as Henriad (grupo de peças de William Shakespeare sobre a dinastia dos Henry IV e V), o longa “floreia” com a intenção de criar um protagonista mais acessível. Ou talvez mundano. Henrique V (Timothée Chalamet) nunca foi um jovem promíscuo que assumiu o trono por falta de opções. Embora criado longe da corte, ele passou a ser um nome forte na sucessão quando o seu pai, Henrique IV (Ben Mendelsohn), se insurgiu contra Ricardo II e o destronou. Antes mesmo de se tornar rei, Henrique V lutou grandes batalhas, combateu revoltosos, quase morreu numa delas. E isso por volta dos seus 15\16 anos. A essência do personagem, entretanto, era basicamente essa. Ele era contra algumas das decisões do seu pai, visava a união do Reino Unido acima de tudo, era inteligente, habilidoso, pacificador. Graças a Shakespeare, contudo, Henry V ficou conhecido como um príncipe romântico, um jovem rebelde transformado em rei e depois em mito por “derrotar” a França durante a Guerra dos 100 anos. 


Com base neste símbolo, David Michôd esbanja perspicácia ao redimensionar a figura de Henry V ao longo da sua trajetória. Por mais que, narrativamente, o argumento se apresse no que diz respeito ao estudo de personagem, tornando algumas decisões do jovem monarca mais avulsas (ou intempestivas) que o ideal, o realizador compensa ao gradativamente o distanciar do rótulo mítico. Ao se aproximar dos fatos. Aos poucos o jovem boêmio e charmoso vai sendo desconstruído. Mais do que simplesmente centrar todo o filme na figura de Henrique V, Michôd é habilidoso ao usar o palácio como um agente catalisador da história. No topo do poder, o novo Rei é obrigado a conviver com o medo, com ameaças silenciosas, com a desconfiança, com a vaidade, com a ambição, com influências nocivas. Aos olhos de Michôd, o macro moldou o micro. Ao contrário de Legítimo Rei, por exemplo, o cineasta em nenhum momento parece interessado em criar\reforçar um mito. A ideia aqui é humaniza-lo. Nem que para isso precise sacrificar algumas das mais populares convenções do gênero. Sem dúvida o traço mais genuíno de O Rei. Ao trocar as grandes batalhas pela realidade do palácio, o diretor encontra o palco perfeito para desenvolver este rico personagem aos olhos do público. Uma coisa é lutar em nome da coroa britânica, outra coisa é representá-la. Com pulso narrativo e uma condução vistosa, Michôd invade a intimidade do rei com propriedade, reinterpretando os seus maiores feitos à medida que se debruça na raiz deles. O que o levou a entrar em guerra contra a França? A renegar a sua visão de mundo para forjar a paz na base da guerra? O diretor é habilidoso ao criar um ambiente marcado pela ambiguidade, pelo jogo de interesses, pela subserviência, pela corrupção de valores. E ao realçar a partir dele a vulnerabilidade do protagonista durante a sua tortuosa jornada de amadurecimento.


É aqui, na verdade, que reside o melhor de O Rei. Mesmo mantendo alguns elementos clássicos da obra de William Shakespeare, entre eles o fiel escudeiro ficcional John Falstaff (Joel Edgerton), David Michôd é cuidadoso ao traduzir com verossimilhança o isolamento de um rei na Idade Média e o perigo escondido nele. Sem nunca isentar a figura real de culpa, algo que sempre fica bem claro quando enxergamos os seus rompantes tirânicos, o longa é inteligente ao traduzir o efeito dos seus conselheiros na formação\exposição da verdadeira identidade do monarca. O jovem idealista pouco a pouco é consumido por aqueles que os cerca, pelas ideias que os cercam. Personagens ferinos como o Chefe de Justiça William (Sean Harris) sintetizam tudo isso. Ele fala o que Henrique V quer ouvir, ele sabe como plantar dúvidas, sabe como manipular. Indo de encontro a muitos títulos do gênero, Michôd opta aqui por não vilanizar este arquétipo. Muito pelo contrário. O realizador o transforma num tipo de difícil tradução. Suas palavras ora ferem, ora confortam, ora idolatram. Graças a soberba performance de Harris, que, em muitas sequências, parece uma serpente em torno do monarca, é a partir de figuras como essa que melhor enxergamos a realidade dos fatos e a deterioração das virtudes heroicas tão defendidas nas Henriad’s. Nas entrelinhas, inclusive, Michôd é objetivo ao traduzir a perversa influência da Igreja Católica durante a Idade Média, a ação do clérigo em prol da guerra, da submissão, da violência. Somado a isso, O Rei causa um impacto natural ao renegar todo e qualquer resquício de bravura num campo de batalha. Quando os combates se dão, eles são caóticos, sujos, angustiantes. Michôd nos abandona no olho do furacão com os seus expressivos planos aéreos e os seus asfixiantes planos fechados, tornando tudo o mais exaustivo possível. As armaduras parecem pesar centenas de quilos. O espaço beira o claustrofóbico. Ingleses e franceses se confundem num emaranhado de lama, ferro retorcido e vísceras. O misto de dor e desespero é de saltar aos olhos. Um elemento potencializado pelo primoroso trabalho da equipe de direção de arte (cheiro de indicação ao Oscar no ar), pelo sugestivo design de som e pela frieza impressa em tela pela fotografia suja\nebulosa de Adam Akapaw (Macbeth: Ambição e Guerra).



Uma série de predicados, verdade seja dita, valorizada pelo extraordinário elenco. Um dos mais robustos ‘cast’ de 2019. A estrela masculina jovem do momento em Hollywood, Timothée Chalamet faz jus as expectativas ao criar um multifacetado Henrique V. Se por um lado a sua esquálida presença esguia confere a ele uma aura de príncipe romântico, a sua intensidade em cena injeta peso e complexidade ao personagem. Embora o texto não acompanhe de perto a sua transformação em tela, Chalamet compensa ao encontrar um comedido meio termo entre o mito e a realidade. O seu Henrique V ameaça sem deixar de parecer frágil, ambiciona sem perder a razão, acusa sem nunca esquecer das suas falhas. Um personagem no limite entre a justiça e a crueldade, entre a racionalidade e a raiva. Algo que fica bem claro na poderosa última sequência envolvendo o rei e o seu conselheiro real. Do outro lado da moeda está o propositalmente unidimensional John Falsfat de Joel Edgerton. Com carisma de sobra, o eclético ator australiano cria o típico guerreiro beberrão, o amigo fiel com a missão de abrir os olhos do seu protegido. Um arquétipo reconhecível revigorado pelo toque de inteligência\humor impresso por Edgerton. O que falar então do príncipe francês vivido por Robert Pattinson. Sem querer revelar muito, só mesmo um ator disposto a se reinventar\desafiar toparia encarar uma figura tão peculiar como essa. Uma bem-vinda quebra de expectativas. Por fim, impressionante como de costume, Ben Mendelsohn precisa de pouco tempo para se tornar o espelho de Henrique V, para refletir tudo aquilo que cruzaria o seu caminho. Basta olhar para a trajetória do jovem monarca para entender o destino do seu pai.



Com uma visão particular sobre os fatos, O Rei busca a verdade perdida nos mitos sem necessariamente renega-los num épico ousado, íntimo e intrigante. Ao não entregar rigorosamente aquilo que o público esperava de um filme do gênero, David Michôd encontra o espaço necessário para desvendar uma figura histórica complexa, um regente reverenciado e contraditório, pacificador e implacável, independente e influenciável, refletindo sobre a juventude em tempos de reis e tiranos numa obra capaz de enxergar a realidade à medida que se distancia dos símbolos de heroísmo.

2 comentários:

Unknown disse...

A fotografia é usada como instrumento narrativo, com coerentes avanços entre planos fechados e abertos, sendo mais soturna mas sem se evadir de um jogo de luz e sombras, demostrando os perigos que cercam a coroa. Off topic: o jogo de luz e sombras, em geral na diagonal, me lembrou de quadros barrocos.

As atuações são convincentes e o Timothée Chalamet prova mais uma vez, após Lady Bird, Call Me By Your Name e Beautiful Boy que é, mais do que uma promessa de uma futura grande estrela, um ator já consolidado e do mais alto nível.

Um parabéns especial à direção sobretudo nas cenas de batalhas, que se esquivam de um heroísmo exacerbado para dar lugar ao realismo, com homens se engalfinhando sem brilho, mas com a crueza e o animalesco inerentes de uma guerra.

Já o roteiro tem seus percalços. Eu, que aprecio obras mais lentas sem o frenesi característico dos blockbusters, senti que houve momentos que deixam a tensão (e a atenção) do espectador fugir. No entanto, alguns diálogos são potentes (Shakespeare né!) e eu apreciei o plot twist final (será que posso denominar assim?).

No mais: obrigado pelo conteúdo do Cinemaniac e "God Save The King". 👑

thicarvalho disse...

Concordamos em basicamente tudo. Não chega a ser novidade, mas é legal ver o esforço desta geração de cineastas em usar a iluminação natural em filmes sobre a Idade Média. A Favorita, recentemente, também fez um excelente uso da luz e da ausência dela. Quanto ao roteiro acho que, quando a tensão se esvai, o longa compensa ao valorizar a trama palaciana com um maior apuro histórico. Acho The King um grande filme de época. Valeu pela visita e pelo comentário.