A segunda grande investida da
Netflix no gênero épico, a primeira se deu no robusto Legítimo Rei (2018), O
Rei tem muito mais em comum com o seu “antecessor” do que poderíamos esperar.
Embora apenas distribuído pelo gigante do ‘streaming’, o longa foi produzido
pela Plan B Entertainment (empresa de Brad Pitt), é interessante perceber o
involuntário senso de unicidade entre as duas obras. Tal qual o pesado filme de
David Mackenzie sobre o libertador da Escócia Robert The Bruce, o intimista
retrato da ascensão do rei Henrique V pensado pelo diretor David Michôd (Reino
Animal) renega os arquétipos previamente criados ao investigar a trajetória do
jovem monarca sob uma óptica humana e nada reverente. Com base na visão ‘Shakespeariana’
da história, o talentoso realizador australiano redimensiona o conceito de “épico”
ao trocar o gigantismo por uma insinuante trama palaciana, transitando
habilmente entre os fatos e a reinterpretação dos mesmos a fim de pintar um
retrato realista sobre um rei inexperiente, idealista e manipulado.
Tal qual Legítimo Rei, The King
(no original) preza pelo rigor histórico acima de tudo. Por mais que vez ou outra
o argumento assinado pelo próprio David Michôd, ao lado do ator Joel Edgerton,
tome algumas liberdades poéticas, elas quase sempre apontam para o rumo dos
fatos. Fazendo jus ao material fonte, as Henriad (grupo de peças de William
Shakespeare sobre a dinastia dos Henry IV e V), o longa “floreia” com a
intenção de criar um protagonista mais acessível. Ou talvez mundano. Henrique V
(Timothée Chalamet) nunca foi um jovem promíscuo que assumiu o trono por falta
de opções. Embora criado longe da corte, ele passou a ser um nome forte na
sucessão quando o seu pai, Henrique IV (Ben Mendelsohn), se insurgiu contra
Ricardo II e o destronou. Antes mesmo de se tornar rei, Henrique V lutou grandes
batalhas, combateu revoltosos, quase morreu numa delas. E isso por volta dos
seus 15\16 anos. A essência do personagem, entretanto, era basicamente essa.
Ele era contra algumas das decisões do seu pai, visava a união do Reino
Unido acima de tudo, era inteligente, habilidoso, pacificador. Graças a
Shakespeare, contudo, Henry V ficou conhecido como um príncipe romântico, um
jovem rebelde transformado em rei e depois em mito por “derrotar” a França durante a Guerra dos 100 anos.
Com base neste símbolo, David Michôd esbanja perspicácia ao redimensionar a figura de Henry V ao longo da sua trajetória. Por mais que, narrativamente, o argumento se apresse no que diz respeito ao estudo de personagem, tornando algumas decisões do jovem monarca mais avulsas (ou intempestivas) que o ideal, o realizador compensa ao gradativamente o distanciar do rótulo mítico. Ao se aproximar dos fatos. Aos poucos o jovem boêmio e charmoso vai sendo desconstruído. Mais do que simplesmente centrar todo o filme na figura de Henrique V, Michôd é habilidoso ao usar o palácio como um agente catalisador da história. No topo do poder, o novo Rei é obrigado a conviver com o medo, com ameaças silenciosas, com a desconfiança, com a vaidade, com a ambição, com influências nocivas. Aos olhos de Michôd, o macro moldou o micro. Ao contrário de Legítimo Rei, por exemplo, o cineasta em nenhum momento parece interessado em criar\reforçar um mito. A ideia aqui é humaniza-lo. Nem que para isso precise sacrificar algumas das mais populares convenções do gênero. Sem dúvida o traço mais genuíno de O Rei. Ao trocar as grandes batalhas pela realidade do palácio, o diretor encontra o palco perfeito para desenvolver este rico personagem aos olhos do público. Uma coisa é lutar em nome da coroa britânica, outra coisa é representá-la. Com pulso narrativo e uma condução vistosa, Michôd invade a intimidade do rei com propriedade, reinterpretando os seus maiores feitos à medida que se debruça na raiz deles. O que o levou a entrar em guerra contra a França? A renegar a sua visão de mundo para forjar a paz na base da guerra? O diretor é habilidoso ao criar um ambiente marcado pela ambiguidade, pelo jogo de interesses, pela subserviência, pela corrupção de valores. E ao realçar a partir dele a vulnerabilidade do protagonista durante a sua tortuosa jornada de amadurecimento.
Com base neste símbolo, David Michôd esbanja perspicácia ao redimensionar a figura de Henry V ao longo da sua trajetória. Por mais que, narrativamente, o argumento se apresse no que diz respeito ao estudo de personagem, tornando algumas decisões do jovem monarca mais avulsas (ou intempestivas) que o ideal, o realizador compensa ao gradativamente o distanciar do rótulo mítico. Ao se aproximar dos fatos. Aos poucos o jovem boêmio e charmoso vai sendo desconstruído. Mais do que simplesmente centrar todo o filme na figura de Henrique V, Michôd é habilidoso ao usar o palácio como um agente catalisador da história. No topo do poder, o novo Rei é obrigado a conviver com o medo, com ameaças silenciosas, com a desconfiança, com a vaidade, com a ambição, com influências nocivas. Aos olhos de Michôd, o macro moldou o micro. Ao contrário de Legítimo Rei, por exemplo, o cineasta em nenhum momento parece interessado em criar\reforçar um mito. A ideia aqui é humaniza-lo. Nem que para isso precise sacrificar algumas das mais populares convenções do gênero. Sem dúvida o traço mais genuíno de O Rei. Ao trocar as grandes batalhas pela realidade do palácio, o diretor encontra o palco perfeito para desenvolver este rico personagem aos olhos do público. Uma coisa é lutar em nome da coroa britânica, outra coisa é representá-la. Com pulso narrativo e uma condução vistosa, Michôd invade a intimidade do rei com propriedade, reinterpretando os seus maiores feitos à medida que se debruça na raiz deles. O que o levou a entrar em guerra contra a França? A renegar a sua visão de mundo para forjar a paz na base da guerra? O diretor é habilidoso ao criar um ambiente marcado pela ambiguidade, pelo jogo de interesses, pela subserviência, pela corrupção de valores. E ao realçar a partir dele a vulnerabilidade do protagonista durante a sua tortuosa jornada de amadurecimento.
É aqui, na verdade, que reside o
melhor de O Rei. Mesmo mantendo alguns elementos clássicos da obra de William
Shakespeare, entre eles o fiel escudeiro ficcional John Falstaff (Joel
Edgerton), David Michôd é cuidadoso ao traduzir com verossimilhança o isolamento
de um rei na Idade Média e o perigo escondido nele. Sem nunca isentar a figura
real de culpa, algo que sempre fica bem claro quando enxergamos os seus
rompantes tirânicos, o longa é inteligente ao traduzir o efeito dos seus
conselheiros na formação\exposição da verdadeira identidade do monarca. O jovem
idealista pouco a pouco é consumido por aqueles que os cerca, pelas ideias que
os cercam. Personagens ferinos como o Chefe de Justiça William (Sean Harris)
sintetizam tudo isso. Ele fala o que Henrique V quer ouvir, ele sabe como
plantar dúvidas, sabe como manipular. Indo de encontro a muitos títulos do
gênero, Michôd opta aqui por não vilanizar este arquétipo. Muito pelo
contrário. O realizador o transforma num tipo de difícil tradução. Suas
palavras ora ferem, ora confortam, ora idolatram. Graças a soberba performance
de Harris, que, em muitas sequências, parece uma serpente em torno do monarca,
é a partir de figuras como essa que melhor enxergamos a realidade dos fatos e a deterioração das virtudes heroicas tão defendidas nas Henriad’s. Nas
entrelinhas, inclusive, Michôd é objetivo ao traduzir a perversa influência da
Igreja Católica durante a Idade Média, a ação do clérigo em prol da guerra, da
submissão, da violência. Somado a isso, O Rei causa um impacto natural ao
renegar todo e qualquer resquício de bravura num campo de batalha. Quando os
combates se dão, eles são caóticos, sujos, angustiantes. Michôd nos abandona no
olho do furacão com os seus expressivos planos aéreos e os seus asfixiantes
planos fechados, tornando tudo o mais exaustivo possível. As armaduras parecem
pesar centenas de quilos. O espaço beira o claustrofóbico. Ingleses e franceses
se confundem num emaranhado de lama, ferro retorcido e vísceras. O misto de dor
e desespero é de saltar aos olhos. Um elemento potencializado pelo primoroso
trabalho da equipe de direção de arte (cheiro de indicação ao Oscar no ar), pelo sugestivo design de som e
pela frieza impressa em tela pela fotografia suja\nebulosa de Adam Akapaw
(Macbeth: Ambição e Guerra).
Uma série de predicados, verdade
seja dita, valorizada pelo extraordinário elenco. Um dos mais robustos ‘cast’ de
2019. A estrela masculina jovem do momento em Hollywood, Timothée Chalamet faz
jus as expectativas ao criar um multifacetado Henrique V. Se por um lado a sua
esquálida presença esguia confere a ele uma aura de príncipe romântico, a sua
intensidade em cena injeta peso e complexidade ao personagem. Embora o texto não acompanhe de perto a sua transformação em tela, Chalamet compensa ao encontrar um comedido meio
termo entre o mito e a realidade. O seu Henrique V ameaça sem deixar de parecer frágil, ambiciona sem perder a razão, acusa sem nunca esquecer das suas falhas. Um personagem no limite entre a justiça e a crueldade, entre a racionalidade e a raiva. Algo que fica bem claro na poderosa última sequência envolvendo o rei e o seu
conselheiro real. Do outro lado da moeda está o propositalmente unidimensional
John Falsfat de Joel Edgerton. Com carisma de sobra, o eclético ator
australiano cria o típico guerreiro beberrão, o amigo fiel com a missão de
abrir os olhos do seu protegido. Um arquétipo reconhecível revigorado pelo
toque de inteligência\humor impresso por Edgerton. O que falar então do
príncipe francês vivido por Robert Pattinson. Sem querer revelar muito, só
mesmo um ator disposto a se reinventar\desafiar toparia encarar uma figura tão
peculiar como essa. Uma bem-vinda quebra de expectativas. Por fim, impressionante como de costume, Ben Mendelsohn
precisa de pouco tempo para se tornar o espelho de Henrique V, para refletir
tudo aquilo que cruzaria o seu caminho. Basta olhar para a trajetória do jovem
monarca para entender o destino do seu pai.
Com uma visão particular sobre os
fatos, O Rei busca a verdade perdida nos mitos sem necessariamente renega-los num
épico ousado, íntimo e intrigante. Ao não entregar rigorosamente aquilo que o
público esperava de um filme do gênero, David Michôd encontra o espaço
necessário para desvendar uma figura histórica complexa, um regente
reverenciado e contraditório, pacificador e implacável, independente e influenciável,
refletindo sobre a juventude em tempos de reis e tiranos numa obra capaz de
enxergar a realidade à medida que se distancia dos símbolos de heroísmo.
2 comentários:
A fotografia é usada como instrumento narrativo, com coerentes avanços entre planos fechados e abertos, sendo mais soturna mas sem se evadir de um jogo de luz e sombras, demostrando os perigos que cercam a coroa. Off topic: o jogo de luz e sombras, em geral na diagonal, me lembrou de quadros barrocos.
As atuações são convincentes e o Timothée Chalamet prova mais uma vez, após Lady Bird, Call Me By Your Name e Beautiful Boy que é, mais do que uma promessa de uma futura grande estrela, um ator já consolidado e do mais alto nível.
Um parabéns especial à direção sobretudo nas cenas de batalhas, que se esquivam de um heroísmo exacerbado para dar lugar ao realismo, com homens se engalfinhando sem brilho, mas com a crueza e o animalesco inerentes de uma guerra.
Já o roteiro tem seus percalços. Eu, que aprecio obras mais lentas sem o frenesi característico dos blockbusters, senti que houve momentos que deixam a tensão (e a atenção) do espectador fugir. No entanto, alguns diálogos são potentes (Shakespeare né!) e eu apreciei o plot twist final (será que posso denominar assim?).
No mais: obrigado pelo conteúdo do Cinemaniac e "God Save The King". 👑
Concordamos em basicamente tudo. Não chega a ser novidade, mas é legal ver o esforço desta geração de cineastas em usar a iluminação natural em filmes sobre a Idade Média. A Favorita, recentemente, também fez um excelente uso da luz e da ausência dela. Quanto ao roteiro acho que, quando a tensão se esvai, o longa compensa ao valorizar a trama palaciana com um maior apuro histórico. Acho The King um grande filme de época. Valeu pela visita e pelo comentário.
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