quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Crítica | A Professora do Jardim de Infância

O talento que inebria

Com muito a dizer sobre o burocrático processo de educação infantil, A Professora do Jardim de Infância se revela uma obra complexa e em sua essência polêmica. Remake norte-americano do drama israelense homônimo escrito e dirigido por Nadav Lapid, o longa encontra na delicadeza da cineasta Sara Colangelo (Conflitos e Reencontros) o senso de ambiguidade que o material fonte precisava para causar um misto de choque e reflexão no espectador. Embora peque pela falta de sutileza ao investigar o mundo em que vivemos e o efeito causado por ele nos portadores de um talento genuíno, a realizadora compensa ao investigar com extremo cuidado a obsessiva relação entre uma professora e um dos seus pequenos alunos, uma criança com um dom inimaginável para a poesia. Sem a intenção de simplesmente julgar a sua protagonista, Colangelo causa um misto de tensão e comoção ao procurar entender os motivos dela, enxergando as suas falhas e também as suas virtudes enquanto justifica os seus atos. O resultado é um estudo de personagem tênue potencializado pela brilhante performance de Maggie Gyllenhaal.



Enquanto se concentra na persona da professora Lisa (Maggie), na verdade, The Kindegarten Teacher (no original) é um filme praticamente irretocável. Estamos diante de uma figura complexa por natureza. Com vocação para lecionar, Lisa sempre cuidou dos seus pequenos com muito carinho e afeto. Escondida no avatar da professora dedicada e exemplar, entretanto, existia uma mulher frustrada. Uma poeta medíocre, uma mãe incomodada com o rumo dos filhos, uma esposa presa à rotina. Uma mulher “engolida” pelo mundo em que habitava. A sua vida, no entanto, ganha um novo sentido quando ela descobre o pequeno Jimmy (Parker Sevak). Um garotinho comum e calado com um talento natural para a poesia. Pela primeira vez ela se deparava com um verdadeiro virtuoso. Consciente da sua responsabilidade enquanto tutora, Lisa decide estreitar o laço com o garoto à medida que o aprimora, ultrapassando uma série de limites na tentativa de fazer dele aquilo que pretensamente ele nasceu para ser.


Mais do que simplesmente se concentrar na estranha relação entre mentora e pupilo, A Professora do Jardim de Infância acerta em cheio ao investigar a reação de Lisa à um menino tão genial e autodidata. Aos cinco anos e meio, Jimmy tem o talento que a sua professora nunca teve. O que para ele nasce como naturalidade, para ela chega na base da força. E isso mexe com ela. Sem nunca reduzir a sua protagonista, Sara Colangelo eleva o nível da obra ao tentar compreender as suas atitudes. Brilhante ao absorver o senso de ambiguidade da obra, Maggie Gyllenhaal provoca um misto de sentimentos ao criar uma personagem com inúmeras camadas, com uma lógica própria. É fácil enxergar a boa vontade de Lisa, assim como a sua obsessão. Gyllenhaal consegue se equilibrar entre o certo e o errado com maestria. Com um olhar ora fascinado, ora insano. Com um comportamento ora singelo, ora possessivo. Diante de um verdadeiro talento, Lisa se afoba, se expõe. Primeiro com intenções genuínas. Ali, como ela mesmo diz, poderia estar um jovem Mozart. Depois com intenções egoístas. Na ânsia de amplificar o alcance da “obra” do seu pupilo, ela passa a cultivar um distorcido de propriedade. Como se aquilo fosse parte do seu trabalho. Por fim com intenções perigosas. Como se ela, e só ela, fosse capaz de enxergar o talento num mundo insensível para a arte. Por mais que o envolvente roteiro penda gradativamente para o suspense em detrimento do drama, Colangelo em momento algum trata Lisa como uma típica antagonista. Por trás dos seus atos mais impulsivos existe pureza, existe medo, existe experiência, existe a certeza de que aquilo poderia ser o melhor para Jimmy.


Um sentimento reforçado pela maneira enfática com que A Professora do Jardim de Infância reflete sobre os obstáculos que impedem a descoberta de novos talentos da arte. Com um olhar crítico sobre o tema, Sara Colangelo enxerga algum sentido na lógica de Lisa quando o assunto é o desdém coletivo para com a veia artística das crianças. Sob a óptica materna da protagonista, o longa tece espertos comentários quanto a visão de futuro cultivada pelas novas gerações, quanto a falta de oportunidades, a insensibilidade e a desvalorização da arte como um todo. Nas entrelinhas, inclusive, a cineasta olha para o próprio meio com certa dureza ao questionar o elitismo, a cultura de nicho e a pretensa superioridade dos “talentosos”. O que fica bem claro, em especial, no discurso do mentor vivido por Gael Garcia Bernal. Uma pena que, à medida que se distancia das figuras de Lisa e Jimmy, A Professora do Jardim de Infância perca tanto da sua sutileza. Até alguns dos questionamentos levantados acima são feitos de forma abrupta, a partir de diálogos expositivos e personagens muito mal trabalhados. Colangelo pesa a mão ao tocar em temas como a ausência paterna, a disfuncionalidade familiar nos grandes centros urbanos, o efeito capitalista da identidade dos jovens. O que reduz parte da crítica levantada acima. Neste ponto, e só nele, a diretora parece confiar demais na visão da protagonista e chega a quase vilanizar o outro lado (o pai workaholic, a filha preguiçosa, a babá ignorante). Uma dose a mais de sensibilidade aqui não faria mal algum.


No fim, porém, o recado de A Professora do Jardim de Infância é claro e inteligente. Embora nunca valide as atitudes da sua protagonista, vide a desconcertante sequência final, Sara Colangelo é madura o bastante ao enxergar também o seu lado mais racional, rompendo com a barreira da unidimensionalidade ao realçar a lógica de uma mulher inebriada pelo talento. Uma figura que, na ânsia de cultivar\proteger um dom, decidiu redimensionar o seu próprio papel enquanto mentora.


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