Journeyman é um filme de boxe
diferente. Estruturalmente, o longa escrito, dirigido e estrelado pelo
talentoso Paddy Considine até remete ao formato clássico do subgênero. A
proposta, entretanto, é bem pessoal. Esqueça a típica história de redenção no
melhor estilo Rocky Balboa. Esqueça o “herói” azarão. Esqueça o pugilista
decadente. Esqueça o protagonista iludido pelo próprio sucesso obrigado a
voltar às suas raízes. Esqueça o boxer autodestrutivo. Esqueça os mais
populares (e saturados) arquétipos do segmento. Em Journeyman o que vemos é um
outro lado da modalidade. Uma face poucas vezes explorada. O drama daqueles que
na busca pelo triunfo sacrificam tudo, inclusive a sua própria saúde. Uma
abordagem realística e nada condescendente reforçada pela delicadeza com que
Considine expõe o quão dura pode ser a rotina daqueles obrigados a conviver com
as sequelas da vitória.
Existe muito mais do que a
derrota ou a vitória no esporte. E os filmes de boxe sempre foram um espaço
fértil para a construção de verdadeiros dramas humanos. Em muitos deles as
conquistas costumam cobrar um preço caro. Embora o viés dramático esteja longe
de ser uma novidade dentro do gênero, Journeyman se difere da turma ao olhar
mais objetivamente para os perigos contidos na própria modalidade. Num momento
em que a discussão sobre as sequelas impostas aos atletas nos esportes de
contato esteja tão em voga, Paddy Considine esbanja propriedade ao escancarar o
impacto da deterioração física na rotina de uma família tão funcional. Ao
contrário da grande maioria dos títulos do segmento, Matthy (Considine) era um
pugilista bem-sucedido. Campeão do mundo, popular, equilibrado, casado com a
afetuosa Emma (Jodie Whittaker) e pai da pequena Mia. Tudo estava muito bem. O
que era para ser a última grande luta da sua vitoriosa carreira, no entanto,
ganha contornos drásticos quando ele sofre um aneurisma cerebral em virtude dos
golpes sofridos no embate. Com a memória violentamente afetada, movimentação
frágil e um natural desequilíbrio emocional, Matthy se esforça para tentar
retomar a sua velha rotina aos poucos, iniciando uma verdadeira batalha contra
um íntimo, silencioso e perigoso.
Não sei explicar ao certo se um
aneurisma (ou AVC) poderia ser capaz de causar um estrago tão grande numa pessoa. É fato,
porém, que Journeyman é implacável ao traduzir sob uma óptica quase naturalista
os efeitos da deterioração física\emocional de Matthy na rotina da sua
funcional família. De uma hora para outro um novo homem volta para casa. Com
uma direção intimista e por vezes aflitiva, Paddy Considine causa um misto de
sensações ao capturar o esforço da resiliente Emma em lidar com a nova condição
do seu marido. O problema não está na amnésia. Na dificuldade de fala. Na
errática movimentação. O realizador é enfático ao ressaltar a vulnerabilidade
do ser humano na figura de um pugilista. O que era para ser o triunfo máximo na
carreira de um atleta se torna num verdadeiro pesadelo. Aqui não existe espaço
para a condescendência. Matthy se transforma ora num homem oco e introspectivo,
ora agressivo e confuso. Por mais que o roteiro sustente
algumas das mudanças de curso da trama em gatilhos emocionais bem batidos,
Considine compensa pela franqueza com que trata o drama do seu personagem. Um
lutador perdido dentro do seu próprio corpo. À procura das memórias que o
definiam, da sua identidade, do homem que ele se acostumou a ser. Sob uma
perspectiva humana, talvez o grande trunfo do longa, o realizador é
cuidadoso ao estabelecer a dor dos personagens, a frustração, o medo, a
angústia, a tristeza. Numa performance genuinamente maternal, Joddie Whitaker
esbanja intensidade ao traduzir a delicada posição de Emma, uma esposa amorosa,
apaixonada, repentinamente tragada por uma rotina saturante. É impossível
julgar as atitudes dela. Um predicado, na verdade, valorizado pela maneira
compreensiva com que o cineasta trata a jornada da personagem.
Algo que se reflete, em especial,
na relação de Matthy com os seus velhos parceiros. É legal ver como, mesmo
respeitando a frieza “masculinizada” deste núcleo, Journeyman consegue enxergar além da
casca. Ao invés de julgá-los, Paddy Considine mais uma vez prefere
compreendê-los. E as explicações são naturalmente comoventes. Sem nunca
descaracterizar os seus personagens, as sequências de intimidade entre eles são
emocionantes. Um predicado valorizado pela poderosa
performance de Considine. Por mais que o argumento explore a limitação do seu
personagem com certa conveniência, numa óbvia tentativa de não se distanciar
tanto das populares histórias de redenção do segmento, o intenso (e
subestimado) ator transborda humanidade ao interiorizar o turbilhão de emoções
enfrentadas pelo pugilista. Ele soa frágil quando precisa, infantil, confuso,
ameaçador, amoroso, resiliente. Considine consegue nos fazer experimentar o
sofrimento do seu Matthy, sentir a repressão imposta pelas sequelas, o seu
esforço em parecer melhor do que verdadeiramente está. Isso tudo com um olhar
de piedade e revolta. Embora na transição para o último ato Considine, enquanto
diretor, prefira seguir um caminho mais protocolar\previsível, a sua
performance a frente das câmeras é de uma integridade recompensadora. O que não
quer dizer, entretanto, que a sua condução não seja vistosa. Muito pelo
contrário. Sem interferir demais no aspecto dramático, Considine se esquiva do
sentimentalismo ao investir em planos sóbrios, limpos, incapazes de
extrair mais do que a cena pedia. Tudo é muito real.
No embalo da envolvente trilha
sonora de Henry Scott, Journeyman revigora o subgênero ao mostrar a realidade
de muitos que dedicaram tanto na busca por uma conquista esportiva. Paddy
Considine brinda os fãs dos filmes de boxe com uma obra capaz de abraçar um
plot que durante muito tempo fez parte do segmento, mas nunca foi tão
aprofundada dentro do cinema. Em Rocky V (1990), Balboa foi vetado pela equipe
médico, desobedeceu, lutou e nada aconteceu. Aqui a sequela é dura e muito mais
impiedosa do que qualquer desafiante.
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