segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Crítica | Journeyman: Fora de Combate

As sequelas da vitória

Journeyman é um filme de boxe diferente. Estruturalmente, o longa escrito, dirigido e estrelado pelo talentoso Paddy Considine até remete ao formato clássico do subgênero. A proposta, entretanto, é bem pessoal. Esqueça a típica história de redenção no melhor estilo Rocky Balboa. Esqueça o “herói” azarão. Esqueça o pugilista decadente. Esqueça o protagonista iludido pelo próprio sucesso obrigado a voltar às suas raízes. Esqueça o boxer autodestrutivo. Esqueça os mais populares (e saturados) arquétipos do segmento. Em Journeyman o que vemos é um outro lado da modalidade. Uma face poucas vezes explorada. O drama daqueles que na busca pelo triunfo sacrificam tudo, inclusive a sua própria saúde. Uma abordagem realística e nada condescendente reforçada pela delicadeza com que Considine expõe o quão dura pode ser a rotina daqueles obrigados a conviver com as sequelas da vitória. 


Existe muito mais do que a derrota ou a vitória no esporte. E os filmes de boxe sempre foram um espaço fértil para a construção de verdadeiros dramas humanos. Em muitos deles as conquistas costumam cobrar um preço caro. Embora o viés dramático esteja longe de ser uma novidade dentro do gênero, Journeyman se difere da turma ao olhar mais objetivamente para os perigos contidos na própria modalidade. Num momento em que a discussão sobre as sequelas impostas aos atletas nos esportes de contato esteja tão em voga, Paddy Considine esbanja propriedade ao escancarar o impacto da deterioração física na rotina de uma família tão funcional. Ao contrário da grande maioria dos títulos do segmento, Matthy (Considine) era um pugilista bem-sucedido. Campeão do mundo, popular, equilibrado, casado com a afetuosa Emma (Jodie Whittaker) e pai da pequena Mia. Tudo estava muito bem. O que era para ser a última grande luta da sua vitoriosa carreira, no entanto, ganha contornos drásticos quando ele sofre um aneurisma cerebral em virtude dos golpes sofridos no embate. Com a memória violentamente afetada, movimentação frágil e um natural desequilíbrio emocional, Matthy se esforça para tentar retomar a sua velha rotina aos poucos, iniciando uma verdadeira batalha contra um íntimo, silencioso e perigoso.


Não sei explicar ao certo se um aneurisma (ou AVC) poderia ser capaz de causar um estrago tão grande numa pessoa. É fato, porém, que Journeyman é implacável ao traduzir sob uma óptica quase naturalista os efeitos da deterioração física\emocional de Matthy na rotina da sua funcional família. De uma hora para outro um novo homem volta para casa. Com uma direção intimista e por vezes aflitiva, Paddy Considine causa um misto de sensações ao capturar o esforço da resiliente Emma em lidar com a nova condição do seu marido. O problema não está na amnésia. Na dificuldade de fala. Na errática movimentação. O realizador é enfático ao ressaltar a vulnerabilidade do ser humano na figura de um pugilista. O que era para ser o triunfo máximo na carreira de um atleta se torna num verdadeiro pesadelo. Aqui não existe espaço para a condescendência. Matthy se transforma ora num homem oco e introspectivo, ora agressivo e confuso. Por mais que o roteiro sustente algumas das mudanças de curso da trama em gatilhos emocionais bem batidos, Considine compensa pela franqueza com que trata o drama do seu personagem. Um lutador perdido dentro do seu próprio corpo. À procura das memórias que o definiam, da sua identidade, do homem que ele se acostumou a ser. Sob uma perspectiva humana, talvez o grande trunfo do longa, o realizador é cuidadoso ao estabelecer a dor dos personagens, a frustração, o medo, a angústia, a tristeza. Numa performance genuinamente maternal, Joddie Whitaker esbanja intensidade ao traduzir a delicada posição de Emma, uma esposa amorosa, apaixonada, repentinamente tragada por uma rotina saturante. É impossível julgar as atitudes dela. Um predicado, na verdade, valorizado pela maneira compreensiva com que o cineasta trata a jornada da personagem.


Algo que se reflete, em especial, na relação de Matthy com os seus velhos parceiros. É legal ver como, mesmo respeitando a frieza “masculinizada” deste núcleo, Journeyman consegue enxergar além da casca. Ao invés de julgá-los, Paddy Considine mais uma vez prefere compreendê-los. E as explicações são naturalmente comoventes. Sem nunca descaracterizar os seus personagens, as sequências de intimidade entre eles são emocionantes. Um predicado valorizado pela poderosa performance de Considine. Por mais que o argumento explore a limitação do seu personagem com certa conveniência, numa óbvia tentativa de não se distanciar tanto das populares histórias de redenção do segmento, o intenso (e subestimado) ator transborda humanidade ao interiorizar o turbilhão de emoções enfrentadas pelo pugilista. Ele soa frágil quando precisa, infantil, confuso, ameaçador, amoroso, resiliente. Considine consegue nos fazer experimentar o sofrimento do seu Matthy, sentir a repressão imposta pelas sequelas, o seu esforço em parecer melhor do que verdadeiramente está. Isso tudo com um olhar de piedade e revolta. Embora na transição para o último ato Considine, enquanto diretor, prefira seguir um caminho mais protocolar\previsível, a sua performance a frente das câmeras é de uma integridade recompensadora. O que não quer dizer, entretanto, que a sua condução não seja vistosa. Muito pelo contrário. Sem interferir demais no aspecto dramático, Considine se esquiva do sentimentalismo ao investir em planos sóbrios, limpos, incapazes de extrair mais do que a cena pedia. Tudo é muito real.


No embalo da envolvente trilha sonora de Henry Scott, Journeyman revigora o subgênero ao mostrar a realidade de muitos que dedicaram tanto na busca por uma conquista esportiva. Paddy Considine brinda os fãs dos filmes de boxe com uma obra capaz de abraçar um plot que durante muito tempo fez parte do segmento, mas nunca foi tão aprofundada dentro do cinema. Em Rocky V (1990), Balboa foi vetado pela equipe médico, desobedeceu, lutou e nada aconteceu. Aqui a sequela é dura e muito mais impiedosa do que qualquer desafiante.


Nenhum comentário: