segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Crítica | Um Garoto como Jake

Ser diferente é realmente normal?

Vivemos tempos nebulosos quando o assunto é identidade de gênero. Ao mesmo tempo em que muitos especialistas tentam desmitificar o tema com debates, reflexões e um diálogo honesto, uma ruidosa corrente retrógrada insiste em distorcer a questão, tratar como um tabu e criminalizar aqueles defendem o esclarecimento para todas as idades. Mesmo sem base científica para tal, este “grupo” insiste em acreditar que a disseminação de conteúdo sobre tal assunto poderia influenciar o comportamento dos mais jovens. Diante deste cenário, títulos como Um Garoto Como Jake passam a ter uma grande importância. Sob a delicada batuta de Silas Howard, um cineasta transexual, o longa é cuidadoso ao investigar a precoce crise de identidade de uma criança com a complexidade que o tema exigia. Sem a intenção de reduzir tudo ao clichê do “ser diferente é normal”, o realizador é inteligente ao abordar a questão da transexualidade a partir da perspectiva dos despreparados pais, revelando o impacto desta iminente descoberta dentro de um contexto realístico, íntimo e muito atual. 



Ser diferente é normal? Sim! Claro! O problema é que vivemos numa sociedade que não está 100% preparada para lidar com essas tais diferenças. Longe disso. Filmes como Um Garoto como Jake só ajudam a reforçar este sentimento. Baseado na peça homônima escrita por Daniel Pearle, o argumento assinado pelo próprio é inteligente ao situar a trama num cenário teoricamente diversificado. Uma grande metrópole. Com escolas preparadas para lidar com todo e qualquer tipo de padrão na formação de uma criança. No papel, Jake nasceu numa família “desconstruída”. Seu pai, o psicólogo Greg (Jim Parsons), estava longe de preencher o arquétipo do macho alpha. Sua mãe, a zelosa Alex (Claire Danes), não se incomodava em ver o entusiasmo do seu filho pelas princesas da Disney, pelo universo dos Conto de Fadas. Ambos evitavam ao máximo limitar a sua visão de mundo. Queriam apenas que ele fosse uma criança feliz como ele é. Uma realidade funcional que é abalada quando chega a hora dos dois matricularem Jake na escola. Com a ajuda de Judy (Octavia Spencer), a conselheira educacional da pré-escola em que ele estava matriculado, o casal decide iniciar uma exaustiva busca pela instituição ideal, encontrando obstáculos naturais ao finalmente enxergar o singular perfil de Jake. 



O primeiro grande trunfo de Um Garoto Como Jake está na coragem do argumento em propositalmente se distanciar da figura do menino. As descobertas dele são reveladas sob uma perspectiva lúdica e comedida. Silas Howard parece proteger o protagonista (e consequentemente o pequeno Leo James Davis) do julgamento do público. A intenção não é dramatizar este processo tão único e complexo. O diretor evita assim estabelecer uma fórmula, encontrar uma justificava para o comportamento dele. Quando está em cena, Jake é filmado sob a perspectiva dos adultos. Quase sempre imerso nas suas brincadeiras, no mundo fabulesco que ele tanto gostava. Uma realidade percebida pelos pais, mas tratada sempre com certo distanciamento. Se por um lado os cuidadosos Greg e Alex não reprimiam a veia claramente feminina do garoto, muito pelo contrário, por outro eles também pareciam fugir da verdade escondida neste comportamento. Uma hora, porém, o tema deveria ser tratado com a devida propriedade. Algo que, acertadamente, logo é alçado para o centro da trama. Na verdade, os verdadeiros protagonistas da obra são os pais de Jake. O foco está na angústia daqueles que, antes mesmo do menino, percebem o quão árdua seria a sua jornada.


Neste aspecto, Um Garoto Como Jake é acima de tudo um grande drama familiar. Embora a questão da identidade do gênero seja o agente catalisador da obra, Silas Howard é astuto ao nunca reduzir o filme a este tema. O longa funciona seja como um retrato intimista sobre um casal obrigado a lidar com os conflitos de gênero do seu filho, seja como uma crônica sobre a crise de dois pais superprotetores as avessas com o destino do seu vulnerável garoto. Com a propriedade de alguém provavelmente sentiu na pele algo muito semelhante, Howard esbanja honestidade ao traduzir o efeito desta “descoberta” na rotina deles. Por trás da aparente desconstrução de Greg e Alex existe a relutância, o medo, a inércia e porque não o preconceito. É fácil respeitar a individualidade de terceiros. É fácil defender a diversidade. O difícil é conviver dentro de casa com alguém “fora dos padrões”. Com o olhar de estranhamento, com a fofoca, com as incertezas quanto ao futuro. No contexto proposto pelo filme, a urgente busca do casal pela melhor escola faz todo o sentido. Mesmo com discrição, Howard é enfático ao mostrar o que crianças como Jake teriam que enfrentar dali para frente por simplesmente não se encaixarem num padrão previamente estabelecido. Existe um desconforto claro entre os adultos. Existe um clima de “provocação” pueril entre as crianças. Por mais que algumas destas situações se deem de maneira abrupta, o cineasta consegue realçar através delas o estado de espírito dos seus protagonistas. Enquanto Greg parece aceitar com maior naturalidade os fatos em questão, Alex insiste em não tomar as rédeas da situação. A partir de diálogos francos, Howard é objetivo ao despir os dois perante o público e ao capturar a crescente disfuncionalidade daquele núcleo familiar.


Um predicado, de fato, potencializado pelas maiúsculas performances de Jim Parsons e Claire Danes. Reconhecido por viver o engraçadíssimo Sheldon Cooper em The Big Bang Teory, o ator encara o papel mais desafiador da sua carreira dramática, transitando entre a racionalidade e a inércia com extrema sutileza. Uma performance comedida que contrasta com a enérgica presença de Danes. Na pele de Alex, a subestimada atriz abraça o viés superprotetor da personagem com intensidade, mergulhando num turbilhão de emoções capaz de desequilibrar qualquer pessoa. Sem nunca interferir demais nas cenas, Silas Howard consegue filmar este choque de mentalidades com delicadeza e intimismo, nos brindando com pelo menos três grandes sequências. Uma pena que o roteiro, numa tentativa desnecessária de agitar as coisas, flerte tanto com o melodrama barato na segunda metade da trama, em especial com a figura de Alex. Outro ponto que incomoda, e muito, é o vacilo do argumento em traduzir algumas situações. Em um ou dois momentos, Howard prefere dizer o que aconteceu do que mostrar o ato em si, um erro crasso em qualquer roteiro que acaba por reduzir o peso destas passagens. Nada que, no fim, esvazie a importância de Um Garoto como Jake. Sob uma palheta bastante realista, o cineasta entrega um drama com muito a dizer sobre a identidade de gênero e os inúmeros tabus escondidos na mentalidade até dos mais desconstruídos.


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