Grande parte do triunfo de uma
comédia romântica reside na química entre os seus protagonistas. Não importa a
qualidade da obra. O talento do diretor. O refinamento do texto. Estamos diante
de um gênero que depende quase totalmente de um par, ou trio, ou até mesmo
quarteto - Amor à Toda Prova (2011) que o diga. Precisa haver aquela chama,
aquele brilho. Uma fagulha que tomou conta da tela, por exemplo, quando vimos
pela primeira vez Clark Gable e Claudett Cobert em Aconteceu Naquela Noite
(1934), Billy Cristal e Meg Ryan em Henry e Sally (1989), Richard Gere e Julia
Roberts em Uma Linda Mulher (1990), Hugh Grant e Andie McDowell em Quatro
Casamentos e Um Funeral (1994), Tom Cruise e Reneé Zellweger em Jerry Maguire
(1997), Heath Ledger e Julie Stiles em 10 Coisas que Eu Odeio em Você (1999), Hugh
Grant\Colin Firth e Reneé Zellweger em O Diário de Briget Jones (2001) e tantos
outros. É algo imprevisível. Por melhor que seja a escalação do elenco, a
mágica parece acontecer no set. E muitas vezes de maneira surpreendente. Neste
sentido, Casal Improvável é o título perfeito para explicar este exemplar do
segmento estrelado pela eclética musa Charlize Theron e por um sempre
desapegado Seth Rogen. Sob a antenada batuta de Jonathan Levine (50%), no
melhor trabalho da sua irregular filmografia, a inusitada dupla faz a mágica
acontecer numa produção dinâmica, inteligente e indiscutivelmente engraçada.
Como se não bastasse o magnetismo dos protagonistas, o longa supera as
expectativas ao brincar com os contrastes dentro de um contexto extremamente
particular, a corrida presidencial norte-americana, encontrando a chance de debochar
de alguns tabus\clichês com um frescor cada vez mais raro dentro do gênero.
Um dos segmentos mais frutíferos
nos anos 1990 e 2000, as comédias românticas caíram em desusos rapidamente em
Hollywood. E os motivos me parecem bem claros. A mentalidade do público mudou.
Em especial do feminino. As mulheres parecem ter se cansado de serem reduzidas
a um arquétipo. Ao da prostituta sem “modos”, ao da produtora com baixa estima,
ao da estudante irritadiça, ao da amante relutante. A idealização do romantismo
perdeu força. Após tanto tempo “dependente” do masculino dentro do gênero, elas
se empoderaram e querem se reconhecer nas personagens. O mesmo, aliás,
aconteceu do outro lado. Imaginem o quão duro foi para uma geração ter que
crescer com a imagem de Richard Gere de Uma Linda Mulher como o símbolo de
beleza\caráter\comportamento, ou Hugh Grant, ou Tom Cruise, ou Heath Ledger.
Personagens másculos, charmosos, bem-sucedidos, confiantes. Eles tinham que
tomar a iniciativa. Eram pouco, ou nada relutantes. O medo de tomar um fora não
passava pela mente deles. Eles eram o símbolo de algo praticamente inatingível.
O que pode ser bastante frustrante para qualquer mortal. Homens e mulheres
cansaram de não se enxergar em tela. O que, naturalmente, levou a uma
perceptível mudança dentro do gênero. Os últimos cases de sucesso dentro da
comédia romântica mostram a transformação no estado das coisas. Filmes como 500
Dias com Ela (2009), o já citado Amor a Toda Prova (2011), o aclamado Missão
Madrinha de Casamento (2011), Uma Questão de Tempo (2013), Doentes de Amor
(2017), Crazy, Rich, Asians (2018) e o recente Alguém Especial (2019) optaram
por humanizar os seus personagens, por representa-los de melhor forma. Eles
agora são falhos. Inseguros. Erram e acertam como qualquer um. A idealização
ainda existe. Óbvio. O cinema precisa dela para existir. Mas em doses
“homeopáticas”.
O que fica bem claro em Casal
Improvável. Ela, aqui, representa o poder. Futura candidata à presidência dos
EUA, Charlotte Field (Charlize Theron) é gabaritada, popular, bela,
inteligente. Um modelo de mulher aparentemente perfeito. Ele, por outro lado,
seria o símbolo do fracasso. Quer dizer, para o padrão Seth Rogen, Fred Flansky
é até bem-sucedido. Um jornalista íntegro, mas irresponsável que, devido as
suas firmes convicções, desperdiça oportunidades com relativa frequência. No
papel, o argumento assinado por Dan Sterling e Liz Hannah não parece se diferir
tanto do formato clássico do gênero. Temos dois personagens em posições sociais
distintas, aparentemente incompatíveis, unidos por uma paixonite da juventude.
Em mãos erradas estaríamos diante de mais um representante genérico do
segmento. Uma espécie de Uma Linda Mulher às avessas. A ideia, entretanto, é
justamente essa. Casal Improvável subverte algumas das mais tradicionais
convenções do gênero ao construir uma história de amor (e humor) franca, afiada
e indiscutivelmente sagaz. Embora a inacreditável química entre Theron e Rogen
salte aos olhos, Jonathan Levine consegue ir sempre além ao nunca reduzi-los ao
que a premissa parecia sugerir. Por trás impavidez da secretária do Estado existe
uma mulher descontraída, rebelde, moleca, uma pessoa disposta a assumir o
risco, a experimentar, a correr atrás daquilo que quer. Por trás da imaturidade
desleixada do redator existe um homem talentoso, fiel ao que acredita, disposto
a se desconstruir sem deixar de ser a pessoa que é. Com dois personagens tão
cativantes em mãos, Levine esbanja astúcia ao extrair o melhor deles numa obra
positivamente inquieta. Ao contrário de grande parte das produções de Seth
Rogen, existe um senso de consequência aqui. Despretensão e descompromisso não se
confundem. Nos momentos em que quer arrancar risadas, o cineasta tira da
cartola um punhado de sequências absolutamente impagáveis, extraindo o máximo
do entrosamento do talentoso casal de atores e principalmente afiado texto.
Nem só de humor, porém, vive
Casal Improvável. Quando decide explorar o sentimento dos seus personagens,
Jonathan Levine o faz com um misto de delicadeza e ironia, evitando se prender
demais ao entrosamento natural do casal ao nos brindar com sequências
genuinamente românticas. Há tempos o gênero não tinha uma passagem tão anos 90
quanto a da dança ao som de Must Be Love, da Roxette. Uma cena magnificamente
“quebrada” graças a objetividade com que o roteiro subverte esta aura romântica
noventista. Numa época em que o elemento nostálgico\metalinguístico se faz tão
presente dentro da indústria, aliás, Levine é astuto ao brincar com as inúmeras
referências pop propostas pelo excelente texto, indo de Boys 2 Men ao Universo
Marvel com dinamismo. Por falar no roteiro, é legal ver como o longa evita se
prender demais as figuras dos protagonistas. Embora com um óbvio menor tempo de
tela, tipos como o entusiasmado amigo republicano vivido por O'Shea Jackson Jr,
a ferina auxiliar de campanha interpretada por June Diane Raphael, o
introspectivo segurança vivido por Tristan D. Lalla e o midiático presidente
dos EUA de Bob Odenkik são - à sua maneira - carismáticos e só contribuem para
o excelente ritmo da obra. Até o detestável político vivido por um hilário Andy
Serkis merece destaque e acrescenta uma peculiaridade à produção. Falando nisso,
a cereja do bolo de Casal Improvável está na forma com que Levine usa o
contexto para debochar do circo que tomou conta da política norte-americana\mundial.
Flertando levemente com o viés satírico, a crítica ao jornalismo da Fox News é
impagável, o diretor eleva o nível da produção ao não perder a oportunidade de
tocar em questões mais ácidas, criando um cenário bastante reconhecível aos
olhos do público. Não à toa, o mais detestável personagem da obra soa como uma
cópia cartunesca do atual presidente Donald Trump.
Com a multifacetada Charlize
Theron (que atriz!) radiante em cena, a sequência do sequestro é fantástica, e
Seth Rogen em sua melhor forma, Casal Improvável é uma bem-vinda quebra de
expectativa. Jonathan Levine une dois atores em posições “diferentes” dentro da
indústria numa comédia romântica capaz de transformar o elemento peculiar desta
relação em algo normal ou até possível. Mesmo quando decide se render aos antecipáveis
gatilhos dramáticos, o cineasta o faz com uma dose de irreverência incomum
dentro do gênero, renegando sempre que possível os clichês (alguns continuam
imutáveis) ao exaltar as particularidades dos seus personagens. Uma comédia
romântica com personalidade.
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