terça-feira, 30 de julho de 2019

Crítica | Casal Improvável

Votem em Charlize Theron para presidente

Grande parte do triunfo de uma comédia romântica reside na química entre os seus protagonistas. Não importa a qualidade da obra. O talento do diretor. O refinamento do texto. Estamos diante de um gênero que depende quase totalmente de um par, ou trio, ou até mesmo quarteto - Amor à Toda Prova (2011) que o diga. Precisa haver aquela chama, aquele brilho. Uma fagulha que tomou conta da tela, por exemplo, quando vimos pela primeira vez Clark Gable e Claudett Cobert em Aconteceu Naquela Noite (1934), Billy Cristal e Meg Ryan em Henry e Sally (1989), Richard Gere e Julia Roberts em Uma Linda Mulher (1990), Hugh Grant e Andie McDowell em Quatro Casamentos e Um Funeral (1994), Tom Cruise e Reneé Zellweger em Jerry Maguire (1997), Heath Ledger e Julie Stiles em 10 Coisas que Eu Odeio em Você (1999), Hugh Grant\Colin Firth e Reneé Zellweger em O Diário de Briget Jones (2001) e tantos outros. É algo imprevisível. Por melhor que seja a escalação do elenco, a mágica parece acontecer no set. E muitas vezes de maneira surpreendente. Neste sentido, Casal Improvável é o título perfeito para explicar este exemplar do segmento estrelado pela eclética musa Charlize Theron e por um sempre desapegado Seth Rogen. Sob a antenada batuta de Jonathan Levine (50%), no melhor trabalho da sua irregular filmografia, a inusitada dupla faz a mágica acontecer numa produção dinâmica, inteligente e indiscutivelmente engraçada. Como se não bastasse o magnetismo dos protagonistas, o longa supera as expectativas ao brincar com os contrastes dentro de um contexto extremamente particular, a corrida presidencial norte-americana, encontrando a chance de debochar de alguns tabus\clichês com um frescor cada vez mais raro dentro do gênero. 



Um dos segmentos mais frutíferos nos anos 1990 e 2000, as comédias românticas caíram em desusos rapidamente em Hollywood. E os motivos me parecem bem claros. A mentalidade do público mudou. Em especial do feminino. As mulheres parecem ter se cansado de serem reduzidas a um arquétipo. Ao da prostituta sem “modos”, ao da produtora com baixa estima, ao da estudante irritadiça, ao da amante relutante. A idealização do romantismo perdeu força. Após tanto tempo “dependente” do masculino dentro do gênero, elas se empoderaram e querem se reconhecer nas personagens. O mesmo, aliás, aconteceu do outro lado. Imaginem o quão duro foi para uma geração ter que crescer com a imagem de Richard Gere de Uma Linda Mulher como o símbolo de beleza\caráter\comportamento, ou Hugh Grant, ou Tom Cruise, ou Heath Ledger. Personagens másculos, charmosos, bem-sucedidos, confiantes. Eles tinham que tomar a iniciativa. Eram pouco, ou nada relutantes. O medo de tomar um fora não passava pela mente deles. Eles eram o símbolo de algo praticamente inatingível. O que pode ser bastante frustrante para qualquer mortal. Homens e mulheres cansaram de não se enxergar em tela. O que, naturalmente, levou a uma perceptível mudança dentro do gênero. Os últimos cases de sucesso dentro da comédia romântica mostram a transformação no estado das coisas. Filmes como 500 Dias com Ela (2009), o já citado Amor a Toda Prova (2011), o aclamado Missão Madrinha de Casamento (2011), Uma Questão de Tempo (2013), Doentes de Amor (2017), Crazy, Rich, Asians (2018) e o recente Alguém Especial (2019) optaram por humanizar os seus personagens, por representa-los de melhor forma. Eles agora são falhos. Inseguros. Erram e acertam como qualquer um. A idealização ainda existe. Óbvio. O cinema precisa dela para existir. Mas em doses “homeopáticas”.


O que fica bem claro em Casal Improvável. Ela, aqui, representa o poder. Futura candidata à presidência dos EUA, Charlotte Field (Charlize Theron) é gabaritada, popular, bela, inteligente. Um modelo de mulher aparentemente perfeito. Ele, por outro lado, seria o símbolo do fracasso. Quer dizer, para o padrão Seth Rogen, Fred Flansky é até bem-sucedido. Um jornalista íntegro, mas irresponsável que, devido as suas firmes convicções, desperdiça oportunidades com relativa frequência. No papel, o argumento assinado por Dan Sterling e Liz Hannah não parece se diferir tanto do formato clássico do gênero. Temos dois personagens em posições sociais distintas, aparentemente incompatíveis, unidos por uma paixonite da juventude. Em mãos erradas estaríamos diante de mais um representante genérico do segmento. Uma espécie de Uma Linda Mulher às avessas. A ideia, entretanto, é justamente essa. Casal Improvável subverte algumas das mais tradicionais convenções do gênero ao construir uma história de amor (e humor) franca, afiada e indiscutivelmente sagaz. Embora a inacreditável química entre Theron e Rogen salte aos olhos, Jonathan Levine consegue ir sempre além ao nunca reduzi-los ao que a premissa parecia sugerir. Por trás impavidez da secretária do Estado existe uma mulher descontraída, rebelde, moleca, uma pessoa disposta a assumir o risco, a experimentar, a correr atrás daquilo que quer. Por trás da imaturidade desleixada do redator existe um homem talentoso, fiel ao que acredita, disposto a se desconstruir sem deixar de ser a pessoa que é. Com dois personagens tão cativantes em mãos, Levine esbanja astúcia ao extrair o melhor deles numa obra positivamente inquieta. Ao contrário de grande parte das produções de Seth Rogen, existe um senso de consequência aqui. Despretensão e descompromisso não se confundem. Nos momentos em que quer arrancar risadas, o cineasta tira da cartola um punhado de sequências absolutamente impagáveis, extraindo o máximo do entrosamento do talentoso casal de atores e principalmente afiado texto.


Nem só de humor, porém, vive Casal Improvável. Quando decide explorar o sentimento dos seus personagens, Jonathan Levine o faz com um misto de delicadeza e ironia, evitando se prender demais ao entrosamento natural do casal ao nos brindar com sequências genuinamente românticas. Há tempos o gênero não tinha uma passagem tão anos 90 quanto a da dança ao som de Must Be Love, da Roxette. Uma cena magnificamente “quebrada” graças a objetividade com que o roteiro subverte esta aura romântica noventista. Numa época em que o elemento nostálgico\metalinguístico se faz tão presente dentro da indústria, aliás, Levine é astuto ao brincar com as inúmeras referências pop propostas pelo excelente texto, indo de Boys 2 Men ao Universo Marvel com dinamismo. Por falar no roteiro, é legal ver como o longa evita se prender demais as figuras dos protagonistas. Embora com um óbvio menor tempo de tela, tipos como o entusiasmado amigo republicano vivido por O'Shea Jackson Jr, a ferina auxiliar de campanha interpretada por June Diane Raphael, o introspectivo segurança vivido por Tristan D. Lalla e o midiático presidente dos EUA de Bob Odenkik são - à sua maneira - carismáticos e só contribuem para o excelente ritmo da obra. Até o detestável político vivido por um hilário Andy Serkis merece destaque e acrescenta uma peculiaridade à produção. Falando nisso, a cereja do bolo de Casal Improvável está na forma com que Levine usa o contexto para debochar do circo que tomou conta da política norte-americana\mundial. Flertando levemente com o viés satírico, a crítica ao jornalismo da Fox News é impagável, o diretor eleva o nível da produção ao não perder a oportunidade de tocar em questões mais ácidas, criando um cenário bastante reconhecível aos olhos do público. Não à toa, o mais detestável personagem da obra soa como uma cópia cartunesca do atual presidente Donald Trump.


Com a multifacetada Charlize Theron (que atriz!) radiante em cena, a sequência do sequestro é fantástica, e Seth Rogen em sua melhor forma, Casal Improvável é uma bem-vinda quebra de expectativa. Jonathan Levine une dois atores em posições “diferentes” dentro da indústria numa comédia romântica capaz de transformar o elemento peculiar desta relação em algo normal ou até possível. Mesmo quando decide se render aos antecipáveis gatilhos dramáticos, o cineasta o faz com uma dose de irreverência incomum dentro do gênero, renegando sempre que possível os clichês (alguns continuam imutáveis) ao exaltar as particularidades dos seus personagens. Uma comédia romântica com personalidade.

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