segunda-feira, 17 de junho de 2019

Crítica | Galveston

Depois da tempestade vem...

Não existe espaço para redenção em Galveston. Isso precisa ficar bem claro. Disposta a quebrar expectativas, a atriz Melánie Laurent (Bastardos Inglórios) amadurece enquanto diretora num thriller dramático robusto e realístico, um filme incapaz de “enganar” o seu público. Com roteiro assinado por Nic Pizzolatto, da elogiada série True Detective, o longa estrelado pelos talentosos Ben Foster e Elle Fanning não titubeia em imprimir em tela uma realidade nua e crua, um cenário sombrio que, apesar dos vistosos lampejos de esperança, é contundente ao mostrar que em alguns casos depois da tempestade pode vir mais tempestade. 

Embora o trailer entregue muito mais do que deveria, portanto fuja dele sem medo, Galveston é o tipo de obra que não depende de trucagens ou reviravoltas para funcionar. Estamos diante de um drama sólido, com personagens complexos e uma trama infelizmente reconhecível aos olhos de muitos. Sem a intenção de reduzir tudo ao típico clichê da redenção, Melánie Laurent e Nic Pizzolatto fogem do lugar comum ao dar contornos intensos (e imprevisíveis) a uma inesperada história de amizade. Impecável ao extrair a beleza de um contexto sujo e insensível, a cineasta francesa vai do desconforto à cumplicidade ao narrar a jornada Roy (Foster), um criminoso destemido que sobrevive a uma repentina armadilha. Em fuga, ele cruza o caminho da bela Rocky (Fanning), uma prostituta sedutora que encontra nele a chance de escapar do seu cruel destino. Unidos pelos seus “pecados” e traumas, os dois decidem se isolar num hotel de uma pequena cidade à espera de uma chance, experimentando um raro sopro de normalidade enquanto decidem o que fazer das suas respectivas vidas. 


Em mãos menos talentosas, Galveston poderia ser facilmente mais um thriller dramático, mais um filme de vingança, mais uma história de redenção. No papel, a sensação de já vi isso antes é bem óbvia. Melánie Laurent, entretanto, não parece disposta a entregar aquilo que o espectador esperava assistir. O que, de fato, pode ser até tratado como um problema, principalmente junto àqueles acostumados com títulos mais “adrenalizados”. Com os dois pés fincados na realidade, a cineasta francesa escolhe o caminho mais difícil ao valorizar o desenvolvimento dos personagens em detrimento da banalização da ação. Uma opção que só adiciona peso aos arcos de Roy e Rocky. Fazendo jus às expectativas, o “casal” traz consigo o senso de humanidade que o longa precisava para fisgar o público. A força do argumento está na complexa relação entre eles, na maneira gradativa com que este elo é construído. Por mais que os dois protagonistas funcionem individualmente, Laurent é sutil ao estreitar este laço, ao trabalhar os conflitos entre eles, a crise de confiança, o temor, o sentimento de incerteza e também de identificação. Embora em fases distintas das suas respectivas vidas, Roy enxerga em Rocky muito de si, do seu “eu” jovem e do círculo vicioso que o levou a uma posição extremamente delicada. É fácil entender os motivos que os unem. O difícil é enxergar um cenário em que esta tortuosa “parceria” pudesse prosperar.


É aqui, aliás, que está o grande trunfo de Galveston. Estamos diante de um filme narrativamente inquieto. Quando tudo parecia caminhar para um lugar, Melánie Laurent testa as nossas expectativas ao levar a história para um lado completamente oposto. Sem querer cair no clichê da sensibilidade feminina, é revigorante ver como a realizadora renega com veemência alguns dos mais enraizados clichês do gênero. Sustentada pelo competente texto de Pizzolatto, que cresce nos momentos mais dramáticos, Laurent reforça também o elo entre o público e os personagens à medida que os desnuda dramaticamente, que os expõe além do esperávamos. Por trás do criminoso frio existe um homem frágil, com medo, relutante em embarcar numa espinhosa relação. Por trás da garota de programa sensual existia uma jovem traumatizada, em busca de dignidade, obrigada a se esconder numa casca para sobreviver. A rigor, Rocky e Roy nada mais são do que duas vítimas de um sistema cruel e injusto. Sem nunca soar condescendente para com os erros dos seus falhos personagens, Laurent é cuidadosa ao, após o contundente primeiro ato, pisar no freio. Se debruçar sobre a intimidade dos dois. Entender um pouco dos seus respectivos passados, das suas responsabilidades, das suas perspectivas de futuro. Com enquadramentos vistosos e genuinamente intimistas, incrementados pela saturada fotografia em tons alaranjados de Arnaud Poitier (Skin), a diretora consegue extrair o máximo desta instável relação, preparando o terreno para o que estar por vir tanto nos momentos mais revigorantes, quanto nas passagens mais tensas. Dor e esperança caminham de mãos dadas aqui, nos lembrando a todo momento dos perigos que cercam a dupla e o pouco que ela construiu. Algo que, inclusive, ajuda a manter o clima de tensão sempre presente.


O coração de Galveston, no entanto, reside nas poderosas performances de Elle Fanning e principalmente de Ben Foster. Do alto dos seus 21 anos, a irmã mais nova de Dakota adiciona outro papel desafiador a sua filmografia. Por mais que o seu rosto quase angelical seja um agente complicador, Fanning mergulha no turbilhão de emoções da sua Rocky com intensidade, capturado o misto de sensualidade, pureza e vulnerabilidade da protagonista com enorme naturalidade. É difícil não criar um vínculo de empatia com ela, não compreender o seu sofrimento, não entender aquilo que a mantinha em movimento, sorrindo, resistindo. Em duas sequências chave da película, Fanning desmonta perante o público com uma franqueza desconcertante, nos fazendo querer quebrar a quarta parede para confortar a sua personagem. Um sentimento que, sem querer revelar muito, só aflora dentro do implacável clímax, muito em função da maneira corajosa com que Melánie Laurent decide pontuar a jornada desta sofrida jovem. Ainda que diante da força da natureza chamada Elle Fanning, porém, Ben Foster rouba a cena mais uma vez ao dar contornos erráticos ao seu atormentado Roy. Na pele de um homem acostumado a se isolar, a escolher o caminho mais fácil, ele mostra porque é um dos atores mais subestimados da sua geração com uma performance irretocável. Mesmo quando o texto não lhe oferece o bastante, como na breve passagem envolvendo uma ex-namorada do passado, Foster compensa injetando sentimentos que vão além do que a sequência parecia exigir. Reconhecido pelos seus trabalhos mais explosivos, ele esbanja comedimento ao entregar um personagem de fala baixa, um tanto quanto silencioso, mas capaz de se mostrar afetuoso\vulnerável\ameaçador sempre que preciso. O que fica bem claro, em especial, no espetacular plano sequência dentro do clímax, quando, num ‘mise en scene’ engenhoso, Laurent deixa o ódio falar por si só numa explosão de visceralidade.


Embora sustente parte das suas “quebras” narrativas em soluções formulaicas e\ou pouco inspiradas, Galveston compensa ao colocar o drama dos seus personagens em primeiro lugar. Com ambientação oitentista, mas um contexto hostil ainda hoje bastante reconhecível, Melánie Laurent é categórica ao expor a violência em sua face mais banal, escancarando as sequelas por trás de um agressivo círculo vicioso enquanto especula sobre o destino de Roy e Rocky longe do mundo que eles se acostumaram a viver.

Nenhum comentário: