sexta-feira, 26 de abril de 2019

Crítica | Assunto de Família

O que define uma família?

Representante japonês na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2019, Assunto de Família é um filme de opinião forte. E sobre um tema extremamente delicado. Se em Pais e Filhos (2013) Hirokazu Koreeda já havia colocado em cheque a importância dos laços consanguíneos ao narrar o drama de duas famílias vítimas de uma troca de bebês na maternidade, em Shoplifters (no original) o sensível realizador nipônico toca em feridas bem mais profundas ao se insurgir de vez contra a pretensa funcionalidade de uma família biológica. Sob uma perspectiva íntima e fascinantemente naturalista, Koreeda rompe com uma visão conservadora sobre o que deve definir um núcleo familiar ao acompanhar as desventuras de um casal humilde disposto a abrigar uma garotinha vítima de maus tratos. Com personagens falhos e uma abordagem humana sobre o assunto, o realizador causa um misto de encantamento e desconforto ao abraçar a disfuncionalidade presente na trama, ao tratar o afeto como a principal resposta para a pergunta feita acima. 



Vivemos tempos de extrema insensibilidade humana. Seja na regrada sociedade japonesa, sejam nos caóticos centros urbanos ocidentais, o “eu” cada vez mais se sobrepõe ao “nós”. O drama alheio cada vez mais importa menos. Uma crise de empatia agravada pelas implacáveis sequelas da desigualdade social. A ajuda, porém, pode vir de onde menos esperamos. Hirokazu Koreeda sabe muito bem disso. Seus filmes não estão interessados em exaltar a pobreza como uma virtude. Longe disso. Em Assunto de Família os protagonistas, o casal Osamu (Lily Franky) e Nobuyo (Sakura Andô), além de conviver com as incertezas de um passado nebuloso, completam a sua renda com pequenos furtos e desvios. Eles fazem o que precisam para sobreviver, para levar uma vida mais digna. O que inclui usar as crianças como parte dos inofensivos roubos. Um desvio que, aos olhos do ocidente, pode até soar pequeno, mas, sob a rígida perspectiva oriental, costuma dizer muito sobre o caráter dos autores. Uma visão insensível veementemente contestada pelo longa. Na verdade, a pobreza surge como um agente catalisador da história. Ao situar a trama num ambiente humilde e frequentemente vilanizado por muitos, Koreeda só reforça o soco no estômago proposto pela trama. O biológico, aqui, pouco importa. O material então nem se fala.


Diante do calor humano, da conexão quase que obrigatória numa casa tão pequena, da constante troca de palavras e carinho, não existe literalmente espaço para o vazio. Para a solidão. Osama e Nobuyo podem ter pouco a oferecer, mas o que possuem entregam ao máximo. Uma troca de experiências potencializada pela comovente abordagem naturalista proposta por Hirokazu Koreeda. Sem grandes firulas estéticas\narrativas, ele se encanta pela verdade dos seus falíveis personagens, pela força dos laços construídos, pelo esforço de cada um deles em tratar a pequena e acuada Yuri (Miyu Sasaki) como uma nova peça desta engrenagem. Em dar a ela aquilo que aqueles que a geraram não fizeram a questão de oferecer. Ao longa da primeira metade do longa, em especial, o realizador nipônico se preocupa muito mais com o desenvolvimento do elo entre os personagens do que propriamente com a construção narrativa, tornando tudo muito real e sem filtros aos olhos do público. E isso, verdade seja dita, sem nunca deixar de expor o melhor e o pior dos seus personagens. O que, graças a visão compreensiva do realizador japonês, só ajuda a reforçar a crítica proposta pela película.


Curiosamente, entretanto, apesar da óbvia linguagem naturalista do projeto, é interessante ver a sagacidade de Hirokazu Koreeda em não atenuar a complexidade do tema proposto. Sem a intenção de dar respostas fáceis, o argumento assinado pelo próprio diretor é inteligente ao gradativamente sugerir pistas sobre a real conexão entre os membros desta disfuncional família. O sentimento entre eles, de fato, nunca é questionado. Mas os motivos que os uniram não poderiam deixar de ser. Aos poucos algumas perguntas começam a vir à tona. Por que o pequeno e carinhoso Shoto (Jye Kairi) insiste em não chamar Osamu de pai? Por que a irônica vovó Hatsue (Kirin Kiki) recebe escondida uma quantia em dinheiro de uma outra família? Por que eles temem tanto a presença do Estado? A partir destas instigantes questões, Koreeda esbanja sensibilidade ao expor a realidade dos fatos, ao enxergar além da troca de afeto\proteção. Existe perigo por trás das boas intenções. Um passo em falso e tudo pode ruir. Nas entrelinhas, sob uma perspectiva silenciosamente infantil, o diretor é cuidadoso ao estabelecer a vulnerável posição das crianças. A partir da singela relação entre Shoto e Yuri, em especial, Koreeda discorre sobre o passado delas, transitando por temas como abandono infantil, abuso paterno e evasão escolar com enorme propriedade. E isso, em muitos casos, sugerindo mais do que mostrando, o que, dada a universalidade do delicado assunto em questão, faz todo o sentido. 


A alma de Assunto de Família, porém, está invariavelmente na crítica proposta por Hirokazu Koreeda. Na transição para o último ato, o longa é corajoso ao mudar drasticamente o tom da obra, ao concretizar alguns dos maiores medos daquela família. Impecável ao estabelecer o sincero elo afetivo entre os personagens, o diretor japonês é igualmente cuidadoso ao questionar a validade da lógica daqueles que tratam o vínculo biológico como a pedra fundamental para a construção de um núcleo familiar. Com uma franqueza desoladora, Koreeda se insurge contra o conservadorismo da sociedade nipônica ao revelar a distorcida visão estatal sobre o que eles viveram, sobre a verdade dos protagonistas, expondo assim o impacto da insensibilidade coletiva sob uma desconcertante perspectiva governamental. Uma crítica seca e implacável que, ainda assim, em nenhum momento reduz a beleza do que foi mostrado previamente. Da relação construída num ambiente de desamparo, desigual e um tanto quanto injusto. Recheado de sequências primorosas, o abraço entre “mãe” e “filha” desponta como uma das cenas mais poderosas da história recente do cinema, Assunto de Família surge então como um retrato daquilo que deveria ser valorizado, dos sentimentos que, independentemente de laços consanguíneos, deveriam definir o que é uma família.

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