Alô Unidos da Netflix! Alô Acadêmicos do Telecine Play! Alô Grêmio Recreativo do Google Play! Tem que ter pique para curtir o Carnaval no Rio de Janeiro. Tem que gostar de multidão, blocos que cada vez mais tocam de tudo menos samba, metrô\ônibus lotado, calor de 40 graus, de vender um órgão para comprar um ingresso para a Sapucaí, de quilômetros de engarrafamento. Nos últimos anos a minha paciência para esses perrengues acabou. Para fugir do fervor que geralmente toma conta das grandes cidades, nada melhor para os fãs de cinema do que aproveitar o feriado para colocar em dia os filmes atrasados. Esvaziar as listas de “assistir mais tarde”. E neste Carnaval foi o que eu fiz. Nada melhor, aliás, que gastar algumas linhas para escrever sobre esta eclética seleção de obras. Filmes que já estavam não meu radar há algum tempo, mas devido a falta de tempo, a corrida temporada de premiações e a (provável) falta de retorno em views foram ficando para depois. Neste Diário de um cinéfilo no Carnaval, portanto, confira os meus pitacos sobre algumas obras que fizeram a minha alegria no feriado. E isso, como de costume neste espaço, procurando sempre fugir da obviedade, das opções fáceis.
- Hector (2015)
E veio da Netflix o meu primeiro
filme desta lista. Uma daquelas obras indispensáveis num momento de tanta
agressividade e falta de compaixão. Mais do que jogar uma realística luz sobre
a situação dos moradores de rua nos grandes centros urbanos, Hector causa um
misto de simpatia e incomodo ao narrar a desventura de um homem de passado
nebuloso disposto reencontrar os seus familiares no dia de Natal. Com uma
pegada tipicamente britânica, o longa dirigido e roteirizado por Jake Gavin
transita entre o comedimento e a ironia final ao oferecer um olhar humano sobre
o que leva um homem a decidir viver à margem da sociedade. No embalo da
magnífica performance de Peter Mullen, intenso ao conferir peso, senso de humor
e acima de tudo dignidade ao seu Hector, o realizador é cuidadoso ao expor a
vulnerável posição do protagonista sob uma perspectiva ora tenra e inspiradora,
ora dura e realística. Sob a perspectiva de Hector enxergamos o melhor e o pior
do ser humano. O altruísmo daqueles que ajudam, a repulsa daqueles que esnobam,
o preconceito daqueles que acusam. Sem nunca o tratar como uma pessoa digna de
pena, Gavin esbanja delicadeza ao mostrar o senso de cumplicidade entre os
moradores, os sinceros laços de amizade, a luta diária deles por algo melhor.
Ao mesmo tempo, vemos também o impacto da miséria, do abandono, da falta de um
teto. Ainda que, nas sequências mais singelas, o diretor enxergue o copo meio
cheio ao revelar a rotina deles dentro dos confortáveis abrigos, o que fica bem
claro na honesta relação de amizade entre o protagonista e a compreensiva Sara
(Sarah Solemani, excelente), Gavin não foge de realidade ao realçar as
incertezas, o lado mais vil e amargo disso tudo. A realidade é dura e por vezes
impiedosa. Enfim, por mais que no seu terço final o longa seja “britânico demais”
ao situar o espectador quanto aos conflitos mais íntimos do desabrigado, Hector
cativa ao valorizar pura e simplesmente a empatia daqueles que se importam.
Avesso ao unidimensional, Jake Gavin respeita o cenário em que eles vivem ao
sair em defesa do respeito, do ombro amigo, da importância de não se fechar os
olhos para a miséria alheia. Até porque, como fica bem claro aqui, ninguém
escolhe esta posição porque quer.
- Operação Overlord (2018)
Para assistir a esse eu tive que
coçar o bolso. Um daqueles títulos, infelizmente, retumbantemente esnobados
pelas distribuidoras brasileiras, Operação Overlord é mais um triunfo para a
carreira do criativo produtor J.J Abrams. Acostumado a proteger os segredos em
torno das suas obras, o realizador deu ao promissor Julius Avery (Sangue Jovem)
a oportunidade de tirar do papel um thriller de Horror grotesco e empolgante.
Uma obra com o nível de tensão que um filme de guerra deve ter e o apetite
feroz que um ‘zombie movie’ precisa ter. Dividido em três terços bem distintos,
Operação Overlord impressiona no seu primeiro ato ao mostrar as sequelas do dia
D sob a perspectiva de um exposto esquadrão de paraquedistas. Liderado por um
renegado Cabo, o ‘bad-ass’ Ford (Wyatt Russell, agressivo como o seu personagem
pedia), o grupo se vê em maus lençóis quando a aeronave que eles estavam é
abatida e eles precisam – em número reduzido – dar sequência uma missão em
território inimigo. Só pela primeira cena, Operação Overlod valeu o din din que
eu depositei no Google Play. Nela, com efeitos visuais muito acima do esperado
para um longa de US$ 38 mi, Avery nos coloca no olho do furacão sem dó nem
piedade, numa sequência vertiginosa, caótica e sufocante. À medida que a trama
avança, no entanto, o diretor é igualmente habilidoso ao trazer o suspense para
o centro da história. Em menor número e despreparados, o inexperiente grupo
precisa botar as diferenças de lado enquanto foge do radar de um impiedoso
oficial nazista (Pilou Asbæk, sinistro e detestável como o antagonista pedia).
Sob uma perspectiva furtiva e
saborosamente unidimensional, principalmente no que diz respeito aos odiosos
soldados alemães, Avery mostra pulso ao introduzir não só os seus cativantes protagonistas
e a vulnerabilidade deles, como também o elemento bizarro que cerca a trama.
Sem nunca sacrificar o ritmo da película, é legal ver como tipos como o bondoso
Boyce (Jovan Adepo, intenso como o nosso representante dentro da obra), o
falastrão Tibbet (John Magaro, puro carisma) e a resliente Chloe (Mathilde
Ollivier, intensa) crescem ao longo do segundo ato, o que só ajuda a estreitar
o elo entre o público e os personagens. Num filme de Terror que se preze, nós
devemos nos importar com os personagens, e aqui, pelo menos na minha visão, é o
que acontece. Muito em função, diga-se de passagem, da sagacidade do roteiro em
explorar os alívios cômicos, a clássica dicotomia bem versus mal e
principalmente o fofíssimo personagem infantil vivido por Gianny Taufer. Eis
que, após estabelecer com um bem-vindo asco os mistérios em torno da base
nazista alvo desta missão quase suicida, Jules Avery não titubeia em pintar a
tela de vermelho (se é que vocês me entendem) no terço final. O que fica bem
claro, em especial, na fantástica sequência da transformação de um dos
soldados. Daquelas que, guardada as devidas proporções, remetem a títulos como
Um Lobisomem Americano em Londres (1981) e A Mosca (1986). Fazendo um inspirado
uso da mistura de efeitos práticos com o CGI, o realizador extrai o máximo da
‘creep’ direção de arte num clímax nervoso e empolgantes, nos colocando no
centro da ação com movimentos de câmera espertos e um ‘mise en scene’ digno de
elogios. Nós sentimos o medo dos personagens, o espanto, a dor, a raiva. Por
fim, mesmo se sustentando em soluções um tanto quanto improváveis\estúpidas
para fazer a história avançar, Operação Overlord é astuto ao interligar gêneros
contrastantes sem reduzir tudo a galhofa, conseguindo enervar, angustiar e
inegavelmente divertir como poucos representantes do gênero na atualidade.
- Irmã (2016)
Você já viu provavelmente esta
história antes em algum filme. Mas não contada desta forma. Ainda na Netflix, a
pequena pérola da vez foi o revigorante Irmã. Numa sincera ode a
disfuncionalidade familiar, o longa escrito e dirigido por Zack Clark extrai o
máximo da sua peculiar premissa ao narrar as desventuras de uma noviça com
passado gótico que, na véspera de concluir os seus votos perpétuos, decide
voltar para a casa para ajudar o seu irmão desfigurado pela guerra. A rigor,
estamos diante de um típico drama familiar, uma história de perdão e reconexão
sincera e divertida. O grande diferencial do longa, porém, reside no contexto
criado por Clark. No embalo da adorável performance de Addison Timlin (uma
atriz radiante e muito promissora) e na vibrante trilha sonora, o realizador
esbanja originalidade ao criar uma protagonista única, uma freira convicta que,
na sua adolescência, experimentou com afinco o movimento gótico e todas as suas
idiossincrasias. De volta para a sua casa, ela é obrigada a se deparar com este
passado, mas ao contrário das expectativas, o faz com carinho e ironia. Como se
aquilo fosse ainda parte da sua personalidade. Sob a curiosa perspectiva desta
personagem, disposta a revisitar o seu “eu” jovem para levantar o astral do seu
querido e acuado irmão, Clark é cuidadoso ao tocar em feridas ainda abertas, ao
estabelecer\compreender os motivos por trás da disfuncionalidade que cerca a
família de Colleen. A partir da complexa relação entre ela e a sua imatura mãe,
vivida com personalidade por Ally Sheedy (a gótica Allison do clássico Clube
dos Cinco), o argumento é sutil ao mostrar que escondido nos conflitos, na
aparente desordem e nas frustrações existiam sentimentos sinceros. Existia um grupo
de pessoas que, mesmo diante das adversidades, seguia vivendo, as vezes
sucumbindo, mas nunca desistindo. Sem querer revelar muito, o grande diálogo
entre mãe e filha dentro do clímax é de uma profundidade emocionante,
principalmente pela forma honesta com que trata as falhas dos personagens, a
imaturidade, os medos e as pressões impostas pela vida “adulta”. Além disso,
nas entrelinhas, o longa, ambientado em 2008, é perspicaz ao usar a transição
para a Era Obama como um símbolo de ruptura progressista, como um vislumbre de
esperança na mudança iminente. Com uma visão moderna sobre temas tradicionais,
incluindo a própria fé cristã, Irmã acredita no elo dos seus personagens, na
verdade deles e nos sentimentos que ajudam a mover esta singular película. Um
belo representante do cinema ‘indie’ americano.
- Burn Burn Burn (2015)
Para que serve um amigo? Para
falar o que queremos ouvir? Nos divertir? Um ombro nos momentos em que mais
precisamos? Para nos falar a verdade? Na resposta desta pergunta reside a
coração de Burn Burn Burn, mais uma pequena gema escondida no catálogo da
Netflix. Sob a irônica batuta de Chanya Button, fundamental para o feminino
estudo de personagem proposto pela trama, o longa encontra no sarcasmo
tipicamente britânico uma alternativa para o sentimentalismo. O resultado é
sincero e genuinamente engraçado. Sem um pingo de condescendência, a
realizadora mostra humanidade ao investigar as agruras das amigas de longa data
Seph (Laura Carmichael) e Alex (Chloe Pirrie), jovens mulheres unidas para
enterrar o terceiro elo desta relação, o expansivo Dan (Jack Farthing).
Convivendo com os seus próprios pessoais, elas se veem obrigadas a fugir da sua
rotina quando o saudoso jovem deixa uma mensagem póstuma pedindo que as duas
despejassem as suas cinzas em quatro pontos diferentes do Reino Unido. O que
elas não esperavam, porém, é que ele fosse usar os seus últimos momentos em
vida para expor algumas desconcertantes verdades, desafiando Seph e Alex
enquanto elas partem numa reveladora ‘road trip’. Com um senso de humor afiado e
um ‘timing cômico’ sabiamente pensado para quebrar o potencial lacrimoso do
texto, Button é cuidadosa ao desconstruir as duas personagens perante o
público. Elas são falhas, inseguras, equivocadas. Erram e acertam como qualquer
ser humano comum. O grande diferencial do longa, inclusive, reside na
sagacidade do roteiro em usar o luto como um agente catalisador. Como a lupa
que amplifica o lado mais incoerente e contraditório delas. A partir do choque
de realidade proposto por Dan, a diretora não perde a oportunidade de tirá-las
das suas respectivas zonas de conforto, se debruçando com propriedade sobre
temas como infidelidade, vaidade, egocentrismo, preconceito, solidão,
imaturidade e principalmente o impacto do luto na rotina das duas. Impulsionado
pelas performances espontâneas de Laura Carmichael e Chloe Pirrie, Burn Burn
Burn tem os seus desníveis, o que fica claro quando percebemos a face mais
conveniente do esquemático script. No último ato, inclusive, o roteiro flerta repentinamente
com o sentimentalismo ao trazer um inesperado terceiro elemento para a viagem.
Mesmo nestes momentos mais “cinematográficos”, no entanto, Chanya Button não
sacrifica o senso de honestidade que guia esta revigorante história de amizade,
extraindo o máximo dos fatos que a cercam ao defender o valor da verdade a
qualquer custo.
- Quatro Minutos (2006)
Este já estava no meu radar há
algum tempo. E que filme! Em Quatro Minutos, fica claro a importância do
alcance dado a produções mundiais por empresas de streaming como a Netflix.
Indo muito além do ‘plot’ proposto, uma aparente história de redenção através
da música, o intenso longa dirigido e roteirizado por Chris Klaus pisa firme no
drama ao unir duas amarguradas mulheres numa jornada tortuosa e pouco
recompensadora. Pagando caro pelos seus erros do passado, seguimos os passos da
jovem Jenny (Hannah Herzsprung), uma presidiária agressiva e ao mesmo tempo
talentosa que chama a atenção de uma rígida professora de piano (Monica
Bleibtreu). Fascinada pelo dom da detenta, a veterana decide recruta-la para as
suas aulas, com a esperança que ela pudesse participar de algumas importantes
premiações. Do choque de personalidade entre as duas, porém, nasce uma instável
amizade, daquelas capaz de reabrir algumas das mais dolorosas feridas de mestre
e pupilo. Com uma pegada forte e realística, Klaus investe num drama
inclemente, recheado de personagens tridimensionais, com virtudes, falhas e
vícios praticamente insuperáveis. Enquanto Jenny, castigada pelo seu dom, não
pestanejava em atacar aqueles que minimamente a ameaçassem, Gertrud, a
professora, escondia na sua postura severa\intransigente as sequelas de um
passado impiedoso. Com muito mais semelhanças do que pareciam inicialmente, a
relação das duas é construída com solidez pelo argumento, que, graças ao
inteligente uso do recurso do ‘flashback’, adiciona um certo clima de mistério
a jornada das duas. Além disso, extraindo o máximo do ambiente prisional, Klaus
não titubeia em realçar a violência que cerca a rotina de Jenny, a sua
degradação, a sua falta de motivação, a sua ferocidade, um cenário que se torna
totalmente compreensível à medida que o longa invade também o passado da jovem.
O grande trunfo de Quatro Minutos, porém, está na maneira com que a película
trata a música. Como se não bastasse as marcantes performances da dupla de
protagonistas, o realizador é cuidadoso ao tratar a arte como uma fonte de
amargura. As duas tiveram que sacrificar muito para seguir o seu sonho. Algo
que fica claro, em especial, no catártico clímax, quando num misto de raiva e “renascimento”
sentimos toda a angústia de uma vida marcada por traumas ecoar nos acordes de
um piano. Um misto de sofrimento e virtuosismo que dita o tom de Quatro Filmes,
um drama musical impactante.
- Ex- Pajé (2018)
No carnaval tem fantasia indígena, maquiagem indígena,
marchinhas com base indígena. Nada mais justo, portanto, que em pleno festejo falar sobre este indispensável documentário nacional já disponível na Globosat
Play. Ex-Pajé é um filme fascinante em muitos sentidos. Conduzido com
sensibilidade por Luis Bolognesi, o longa usa uma desconcertante história
baseada em fatos para escancarar a dura realidade dos povos indígenas no
coração do Brasil. Sob uma perspectiva absolutamente singular, a de um ex-pajé
numa aldeia “catequizada” por missionários evangélicos, o diretor é habilidoso
ao desvendar o efeito do etnocídio nos primeiros habitantes do nosso
continente. Num inspirado exercício antropológico, Bolognesi mostra propriedade
ao tocar na raiz da questão, a impiedosa influência da cultura branca na
estrutura social de uma tribo de verdadeiros sobreviventes. Embora o longa não
relute em questionar a imposição dos missionários e a ignorância no trato da
religião nativa, em nenhum momento o doc reduz tudo ao terreno do
unidimensional. O vilão, aqui, é a nossa incapacidade de compreender as reais
necessidades dos indígenas. Algo que fica bem claro graças a perspicácia do
longa em, nas entrelinhas, mostras as consequências de tamanha interferência.
Bolognesi, em especial, é cuidadoso ao tratar o ex-pajé Perpera Suruí como o “último
dos moicanos”, como a voz de uma cultura que parece próxima da extinção. Uma
abordagem densa valorizada tanto pela beleza imagética da produção, quanto pela
delicadeza do diretor em capturar o quão nobre, sábio e resiliente era o
experiente índio. Sem nunca pesar a mão, o diretor consegue jogar uma
naturalista luz sobre o homem que, para voltar a ser aceito por uma catequizada
sociedade, se viu obrigado a “aceitar” a presença dos missionários e se
distanciar das suas tradições. Um arco por si só complexo, mas que atinge o seu
ápice no recompensador clímax. Embora se disperse no terço final, uns dez
minutos a menos não faria mal algum, Ex-Pajé dá uma verdadeira aula de respeito
as diferenças ao reverenciar o inestimável valor de uma cultura. Uma obra
urgente num momento em que a delicada causa indígena parece tão vulnerável.
- O Menino que Descobriu o Vento
(2019)
Só de pensar que a história aqui
contada se passa nos anos 2000 comprova a nossa falha enquanto sociedade
globalizada. A partir de um contexto de miséria reconhecível, a trama se passa
na África mais poderia facilmente ser ambientada no sertão brasileiro no mesmo
período, O Menino Que Descobriu o Vento inspira ao defender com afinco o
transformador poder da educação. Escrito, estrelado e dirigido por Chiwetel
Ejiofor (12 Anos de Escravidão), que estreia na função com um trabalho robusto,
o longa causa um misto de emoções ao narrar as desventuras de uma família de
fazendeiros diante da falta de recursos, da seca, da fome e do desdém estatal. Disposto
a pintar em tela a realidade de um pequeno vilarejo africano sem dispersões, o
realizador é categórico ao respeitar o DNA da região, ao falar a língua deles,
ao resgatar as tradições deles, ao mostrar a verdade deles. O grande acerto do
longa está na capacidade do argumento em ir bem além dos feitos tecnológicos do
inteligente William (Maxwell Simba, excelente). O foco está no drama humano.
Com uma performance intensa e uma direção impactante, Ejiofor não titubeia em
escancarar as mazelas enfrentadas pelos humildes fazendeiros. Ao longo dos dois
primeiros atos, O Menino Que Descobriu o Vento é cuidadoso ao trazer o estado
das coisas na África, ao revelar a diluição das tradições culturais, a
violência política, o desamparo estatal, os efeitos do desespero e (em
especial) o círculo vicioso num ambiente em que a educação era um artigo de
luxo.
Sob uma perspectiva por vezes
naturalista, Chiwetel Ejiofor entrega um drama baseado em fatos que em muitos
momentos lembra um verdadeiro clássico da literatura nacional, o desconcertante
Vidas Secas, de Graciliano Ramos. O que, de fato, diz muito sobre o nível de
qualidade da película. É doloroso ver que, em pleno 2001, um grupo de pessoas
simplesmente não sabia usar os abundantes recursos naturais a seu favor. Algo
que fica bem claro quando vemos o impacto de uma simples engenhoca tecnológica
na rotina dos humildes moradores. Sem enxergar a necessidade de se concentrar
muito na construção do dispositivo em si, Ejiofor encontra o tempo necessário
para se aprofundar na dinâmica de uma família comum às avessas com a iminência
da fome, extraindo o máximo do choque de mentalidades entre pai e filho ao
defender uma bem-vinda passagem de bastão. E isso, verdade seja dita, sem nunca
julgar a visão de mundo dos seus personagens. Embora se sustente em alguns
previsíveis gatilhos emocionais, vide o destino da Baleia da vez, O Menino Que
Descobriu o Vento é mais uma produção original Netflix com pedigree. Um filme
que não se contenta pura e simplesmente com o teor reverencial, dando voz a
tipos constantemente esquecidos enquanto evidencia o efeito de simples mudanças
na rotina de toda uma região.
- A Livraria (2017)
Carnaval no fim, quarta-feira de
cinzas se aproximando, hora de um ‘feel good movie’ britânico. Ops, errei feio.
Não se engane com as aparências. A Livraria é um denso drama de época sobre
empoderamento. Usando o universo da literatura como um agente catalisador da
história, o adorável longa dirigido pela espanhola Isabel Coixet surpreende ao
narrar as desventuras de uma mulher em busca de independência. Confesso que,
num primeiro momento, o ritmo morno me fez pensar se essa era a melhor pedida.
Uma dúvida totalmente equivocada que logo cai por terra à medida que nos
deparamos com a inspiradora Florence (Emily Mortimer, adorável como de costume)
e a sua tentativa de inaugurar uma loja de livros numa pacata cidade do
interior da Inglaterra no fim da década de 1950. Guiada por esta simpática
figura, Coixet é astuta ao extrair o máximo da obra de Penelope Fitzgerald, encontrando
na jornada da sua protagonista os ingredientes necessários para expor os muitos
obstáculos impostos a uma mulher na busca por liberdade financeira. Embora use
e abuse da unidimensionalidade no que diz respeito a grande antagonista da
história, Coixet consegue manter tudo dentro do universo feminino, algo que
ainda hoje faz muito sentido. Se por um lado Mortimer esbanja doçura e
resiliência como uma tímida mulher negócios, por outro a personagem vivida por
Patricia Clarkson surge ferina na pele de uma ricaça com tempo de sobra para
gastar incomodada com tamanha ousadia da empreendedora. À medida que a trama avança,
é legal ver a seriedade com que a trama se debruça sobre os efeitos desta rixa,
mostrando a dura realidade de um peixe pequeno diante dos escusos interesses
dos poderosos. Além disso, Coixet é habilidosa ao trabalhar a interação de
Florence com os personagens de apoio, entre eles o recluso Edmund (Bill Nighy,
magnífico como de costume), a esperta Christine (Honor Kneafsey, que jovem
atriz expressiva) e o dúbio Milo (James Lance, competente), preenchendo a trama
temas bem mais densos e dramáticos do que a premissa poderia sugerir. Uma ode a
coragem feminina, A Livraria se insurge contra o sentimentalismo ao transitar por
temas inerentes a realidade do gênero com sinceridade, sensibilidade e muito
coração.
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