terça-feira, 5 de março de 2019

Crítica | Homem-Aranha no Aranhaverso

Ao mestre Stan Lee, com carinho!

É fácil entender os motivos que transformaram o amigão da vizinhança Peter Parker num dos super-heróis mais populares da cultura pop moderna. Ele é divertido, carismático, justo e acima de tudo altruísta. Um garoto comum que, com grandes poderes, não titubeou em abraças as grandes responsabilidades. Graças a perspicácia do saudoso Stan Lee, criador e assumidamente maior entusiasta do herói, o Homem-Aranha se tornou um símbolo reconhecível, universal, um jovem obrigado a amadurecer, a enfrentar os seus medos, os seus traumas, as suas desilusões. Por trás dos super-vilões, dos intrépidos resgates e do fator aranha existe um garoto comum, com anseios comuns, uma característica básica do personagem que, felizmente, se fez presente na maior parte das produções envolvendo esta verdadeira legenda do selo Marvel. Nos quadrinhos, nos universos expandidos e especialmente no cinema, o teioso sempre teve a sua essência respeitada, algo que só ajudou a solidificar o status deste icônico super-herói. Poucos destes títulos, entretanto, conseguiram reverenciar o legado da criação da dupla Stan Lee e Steve Ditko com tanta plenitude e originalidade quanto o primoroso Homem-Aranha no Aranhaverso. Uma daquelas obras que exalam o raro frescor da novidade do primeiro ao último minuto de projeção, o longa dirigido pelo trio Bob Persichetti, Peter Ramsay e Rodney Rothman reforça o mito em torno da figura do amigão da vizinhança sem abdicar de trazer algo novo para este saturado gênero, nos presenteando com uma aventura ousada, criativa e inestimavelmente sentimental. Um ‘coming of age movie’ travestido de filme de super-herói que, ao ir além do seu triunfante aspecto visual, entrega uma das experiências cinematográficas mais imersivas e empolgantes da história recente do cinema. 


E por mais que, esteticamente, Homem-Aranha no Aranhaverso chame uma óbvia atenção, o grande trunfo da trinca de diretores está no dinamismo prático com que eles estabelecem uma nova história de origem. Com uma montagem fenomenal, inúmeras referências aos quadrinhos e um elogiável respeito a estrutura da Nona Arte, Persichetti, Ramsay e Rothman revigoram o segmento ao mostrar que uma premissa, mesmo muitas vezes contadas, pode render uma série de novas possibilidades. Inspirado no popular universo Ultimate, o argumento idealizado por Phil Lord (Uma Aventura Lego) é astuto ao não perder um segundo sequer com arestas e redundâncias. Por mais que o protagonista da vez seja o descolado Miles Morales (voz do ótimo Shameik Moore), o roteiro, a rigor, é enfático ao tratar o ultra-conhecido arco do teioso, evitando o didatismo desnecessário ao se concentrar naquilo que realmente importa: a identidade do novo herói. E aqui começa a ficar claro que estamos diante de uma obra diferente. Com um intimismo dinâmico, o trio de realizadores dedica o tempo necessário para que conheçamos a rotina do jovem protagonista, a sua rebeldia, a falta de diálogo com os pais, o desconforto dele dentro do respeitado novo colégio, a sua solidão e (em especial) a ausência de um lugar para chamar de seu. Miles tinha muito a oferecer, mas via a sua voz ser reprimida diante da superproteção paterna e da necessidade de não desperdiçar o que seria a chance da sua vida numa elitista instituição de ensino. Sem querer revelar muito, é legal ver o tempo dedicado pelo roteiro a figura do tio, o encorajador Aaron (voz de Mahershala Ali), um personagem marcante que, embora dialogue com o arco clássico de Peter Parker, se torna uma peça chave na jornada de amadurecimento de Miles. E isso dentro de um contexto bem mais mundano e complexo.



O que fica bem claro, em especial, com a inesperada curva dramática que o filme toma na transição para o segundo ato. Numa opção indiscutivelmente corajosa, Persichetti, Ramsay e Rothman revigoram as engrenagens do gênero ao aproximar o arco central de um mundo mais hostil e impiedoso. Esqueça os vilões mais cartunescos. O antagonista da vez é um vingativo e imponente Wilson Fisk, o Rei do Crime (voz de Liev Schereiber). Por mais que o argumento esbanje leveza ao reciclar elementos típicos dos filmes de origem, vide a maneira cômica com que o longa trabalha a relação de Miles com os seus recém-descobertos superpoderes, Homem-Aranha no Aranhaverso finca os pés na realidade ao escancarar o peso das consequências, ao mostrar que um super-herói precisava de muito mais do que boa índole para desafiar a vilania. Algo que, diga-se de passagem, só confere profundidade ao arco do protagonista, principalmente quando ele se vê precocemente obrigado a restabelecer a ordem das coisas. A partir da figura deste fragilizado protagonista, o argumento encanta ao atrelar a jornada de amadurecimento de Miles ao legado clássico de Peter Parker. Fiel a visão de heroísmo idealizada por Stan Lee, bravura e altruísmo se confundem enquanto o jovem tenta assumir as suas novas responsabilidades, o que só atesta a mensagem que o quadrinista ajudou a consagrar. Qualquer um pode ter o seu dia de herói, seja um adolescente em busca de autoafirmação, seja um policial rígido e impositivo, seja um porco cartunesco e engraçadíssimo.


É aqui, porém, que Homem-Aranha no Aranhaverso sobra na turma. No momento em que o aspecto super fala mais alto, o argumento dá uma verdadeira aula quando o assunto é a construção do multiverso. Com uma justificativa sólida, personagens brilhantemente introduzidos\desenvolvidos e um magistral uso do ‘fan-service’, Phil Lord reúne o melhor do universo aracnídeo com leveza, humor e muita personalidade, estreitando os laços entre eles à medida que o sexteto tem que se unir para conseguirem voltar para as suas respectivas casas. Embora o foco fique na singular relação pupilo\mentor entre Miles e um saturado Peter Parker (voz de Jake Johnson, um dos ‘highlights’ do filme), o roteirista é astuto ao conferir um bem-vindo protagonismo a cada um dos demais heróis, conseguindo extrair o máximo de cada um deles. Seja a confiança empoderada da destemida Gwen-Aranha (voz de Hailee Stenfield, radiante como de costume), a sobriedade madura do Aranha-Noir (voz de Nicolas Cage, um reforço de luxo para o elenco), a comicidade lúdica do querido Porco-Aranha (voz de John Mulaney, impagável), ou então a fofura nipônica da cativante Peni Parker (voz de Kimiko Glenn). Mesmo diante do louvável senso de urgência da trama, Lord é cuidadoso ao arquitetar o sincero senso familiar que dita o tom da dinâmica entre eles, o que se torna decisivo para a construção do empolgante último ato. Um predicado que, diga-se de passagem, se reflete quando o assunto é a introdução do núcleo vilanesco. Indo muito além da figura de Fisk, um oponente genuinamente ameaçador, o longa é sagaz ao trazer outros conhecidos nomes do universo aracnídeo, entre eles o feroz Gatuno, um agressivo Dr. Octopus e o impiedoso Escorpião, conferindo ao ‘plot’ um senso de equilíbrio entre forças que serve muito bem a aventura como um todo.


Como se não bastasse o nível de qualidade, complexidade e entretenimento do argumento, Homem-Aranha no Aranhaverso se coloca entre os melhores filmes do gênero na última década graças (também) ao seu indescritível triunfo visual. Numa mistura de técnicas, estilos e visões sobre as possibilidades ofertadas pela animação, Bob Persichetti, Peter Ramsay, Rodney Rothman entregam uma mistura completamente nova e criativa. O trio pinta em tela uma verdadeira aquarela de cores saturadas e texturas, extraindo o máximo dos imagéticos personagens em enquadramentos engenhosos e planos de uma inventividade rara. A questão não é só a ação em si. Indo muito além das alucinantes batalhas e do fluído senso de simultaneidade em cena, a trinca de realizadores nos brinda com um balé vertiginoso, brincando por diversas vezes com a nossa perspectiva ao investir em ângulos ousados e num ‘mise en scene’ que insiste em nos surpreender. O que fica claro, em especial, no arrepiante “salto de fé” de Miles Morales rumo ao clímax. Somado a isso, mesmo diante da explosão luminosa que toma conta de alguns dos cenários e do frisson causado pelos inacreditavelmente fluidos combates, impressiona a capacidade dos diretores em tornar tudo o mais vistoso possível aos olhos do público, valorizando a plasticidade dos saltos dos heróis e a criatividade das sequências aventurescas da forma mais imagética possível. Por fim, a cereja no bolo reside no virtuosismo estético da dupla na composição de personagens oriundos de mundos diferentes. Respeitando as suas respectivas mídias originais, Persichetti, Ramsay e Rothman imprimem num mesmo quadro técnicas diferentes de animação, transitando entre o 2-D tradicional do Porco-Aranha, o CGI verossimilhante do Aranha-Noir, os traços orientais da Peni Parker e o visual estilizado do mundo de Miles Morales com uma propriedade impressionante. Uma combinação audaciosa poucas vezes vista dentro do gênero.


Embora tenha causado um enorme impacto logo no seu primeiro trailer, Homem-Aranha no Aranhaverso supera as mais elevadas expectativas ao reverenciar o legado do amigão da vizinhança numa obra catártica, expressiva e indiscutivelmente autoral. O foco, aqui, não está no ‘fan-service’ pelo ‘fan-service’. As referências e inserções gráficas estão a serviço de algo maior, da fascinante jornada de autodescoberta do menino por trás da máscara. Mais do que um grande filme e uma poderosa experiência cinematográfica, o longa, na verdade, se revela a mais justa das homenagens ao mestre Stan Lee, principalmente pela sinceridade com que exalta a face inspiradora deste herói e os ideais que nas últimas cinco décadas ajudaram a transformar o icônico Homem-Aranha num símbolo de empatia, justiça e altruísmo.

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