Como é reconfortante ver atores
dispostos a levar a sua visão de mundo para o cinema. Realizadores inquietos
com ímpeto para a experimentação. Que não parecem interessados em permanecer na
confortável posição de estrela de Hollywood. Não importa o tamanho da sua
experiência dentro da Sétima Arte, assumir a direção de um longa-metragem não é
para qualquer um. O que fica bem claro, em especial, quando percebemos o
escasso número de grandes atores que realmente prosperaram na função. Clint
Eastwood, Robert Redford, Mel Gibson, Jodie Foster, Ben Affleck, George
Clooney. Isso nos últimos vinte, trinta anos. Um cenário que parece estar
mudando. Poucas vezes vimos tantos longas dirigidos por atores consagrados ganharem
os holofotes em Hollywood quanto em 2017\2018. Num curto espaço de tempo, Greta
Gerwig conquistou a Academia com o seu Lady Bird, Bradley Cooper o mundo com o
popular Nasce Uma Estrela, John Krasinski causou arrepios com Um Lugar Silencioso,
Joel Edgerton gerou um importante debate com o urgente Boy Erased, Jonah Hill
levou para a tela as memórias da sua adolescência no intimista Mid90s, Casey
Affleck arrancou elogios com o drama Light Of My Life. Um dos trabalhos que
mais me impressionou dentro desta seleta safra, no entanto, foi o de Paul Dano
no realístico Vida Selvagem. Um dos nomes mais autorais da sua geração, o
versátil ator estreia na direção com um drama familiar adulto e intimista, um
relato desconcertante e visualmente requintado sobre o impacto do divórcio na
rotina de um adolescente obrigado a furar a bolha da superproteção paterna.
Inspirado na obra homônima de
Richard Ford, Wildlife (no original) provoca um misto de sentimentos ao se
comover pelo aspecto falível dos seus personagens. Com um olhar triste, mas
genuinamente humano sobre os fatos impressos em tela, Paul Dano é incisivo ao
escancarar a deterioração de uma relação consumida pela frieza, pelo
distanciamento, pela crise financeira e (em especial) pela completa falta de
diálogo. Embora o tema proposto (e os protagonistas) soem extremamente
reconhecíveis, o argumento assinado pelo próprio diretor, ao lado da atriz e
sua esposa Zoe Kazan, esbanja perspicácia ao extrair o máximo do contexto
proposto, a conservadora sociedade americana da década de 1960. Dispostos a
abraçar o American Way Of Life, Jerry (Jake Gyllenhaal) e Jeanette (Carey
Mulligan) se esforçavam para manter o padrão de vida que uma família
tradicional esperava ter na época. Enquanto ele, um golfista frustrado, sustentava
a sua casa com um rentável trabalho num campo de golfe, ela, uma professora
substituta, se viu numa posição resoluta ao aceitar a função doméstica. Tudo
para criar o seu inocente filho, o dedicado Joe (Ed Oxenbould), um jovem zeloso
e muito educado que era o orgulho da sua família. Por trás da aparente solidez
que sustentava esta relação, porém, existiam conflitos silenciosos. Quando
Jerry perde o emprego devido a uma incorreção, a pacata família se vê obrigada
a encarar de frente estes “adormecidos” problemas, expondo a ruidosa verdade
escondida numa vida de aparências e acomodação.
No seu primeiro trabalho por trás
das câmeras, Paul Dano mostra maturidade de gente grande ao se debruçar sobre
um tema tão universal. O contexto de época, na verdade, só surge para realçar a
visão patriarcal imposta pela sociedade daquele período. Uma estrutura
retrógada que ainda hoje segue vitimando casamentos ao redor do mundo. Esqueça,
portanto, os figurinos sessentistas, os carros antigos, o pano de fundo bélico,
o pacato estilo de vida interiorano. Por trás do aspecto “ultrapassado” do
longa, nós somos apresentados a um grupo de personagens atuais, com anseios
modernos, com problemas ainda hoje presentes nos núcleos familiares. E o grande
trunfo de Wildlife, de fato, reside na propriedade com que Dano escancara o
“muro invisível” que separa um casal aparentemente perfeito. Em poucos minutos,
o realizador é categórico ao desenvolver os crescentes conflitos, ao expor o
choque de ideias, o misto de esperança, esfriamento e reprovação que passa a
tomar conta da casa no momento em que o papel do “provedor” fica vago. Dano é
especialmente cuidadoso ao nunca julgar os atos dos seus personagens. Muito
pelo contrário. O roteiro é enfático ao exaltar a humanidade deles, as suas
respectivas desordens, o medo, a vulnerabilidade, o lado mais falível. Estamos
diante de duas figuras às avessas com a sua posição na sociedade. Se por um
lado Jerry encontra na “fuga” uma saída para a vergonha de não conseguir
sustentar os seus da forma com que esperava, por outro Jeanette se depara com
uma raivosa crise de identidade ao se perceber sozinha, carente, frustrada e
sem uma fonte de recursos confiáveis. O impacto do tempo perdido\desperdiçado,
aqui, confere um invejável senso de urgência ao drama deles (e a trama como um
todo), algo que ganha força com o surgimento do ricaço vivido pelo experiente
Bill Camp. Embora o foco fique em Jeanette e na desgastante jornada dela em
prol da retomada da sua independência, Dano é inteligente ao manter a figura de
Jerry sempre viva, ao torna-lo parte do problema, o que, sabiamente, impede que
o peso da culpa recaia somente sobre um destes lados da balança. Os dois são
igualmente vítimas e responsáveis dos seus atos. O realismo impresso no longa é
digno de elogios.
O que mais impressiona em Vida
Selvagem, porém, é a maneira sensível com que Paul Dano explora a figura do
real interlocutor da história, o superprotegido Joe. A partir do olhar do
preocupado filho, mais uma vítima da falta de comunicação entre os seus pais, o
realizador torna tudo o mais denso possível. Embora os problemas matrimoniais
surjam como o agente catalisador da trama, o foco de Dano está na jornada de
amadurecimento do adolescente. Na luta dele para entender tudo o que o cerca,
para sustentar quem ama, para superar a dor de ver aqueles que ele sempre
admirou se transformando repentinamente bem a sua frente. Vide o esmero do
longa ao construir a insinuante relação entre mãe e filho. De longe o arco mais
complexo da trama, o tortuoso processo de reconstrução da mulher Jeanette
influencia diretamente na perda da inocência de Joe. Sem a intenção de
vulgarizar os gestos da protagonista, Dano é habilidoso ao, sob a perspectiva
do garoto, traduzir o turbilhão de emoções que a cercava, ao contestar o rótulo
da mãe recatada que ele cresceu conhecendo. Estamos diante de uma mulher jovem,
com anseios, rancores e apetite para mudar. Uma voz até então
escondida\reprimida que ajuda Joe a romper de vez com a bolha que o protegia.
Um predicado indiscutivelmente
valorizado pelas maiúsculas performances de Carey Mulligan e do jovem Ed
Oxenbould. Na pele de uma figura materna inconformada com o abandono, a
eclética atriz usa a sua jovial feição angelical a serviço da sua personagem,
escancarando os contrastes estabelecidos pelo texto numa performance ferina,
complexa e naturalmente comovente. A força motora do longa, no entanto, reside
no introspectivo trabalho de Ed Oxenbould. Se no irônico A Visita ele já havia
deixado um belo cartão de visitas, o promissor jovem ator comprova que tem
muito a oferecer ao criar um protagonista intenso, ora acuado e surpreso com a
iminência do divórcio, ora resiliente e maduro o bastante para guardar para si
o seu sofrimento diante dos fatos. Sem querer revelar muito, a sequência em que
ele se vê obrigado a contar o que experimentou para o seu atordoado pai é
dilacerante. Por falar nele, mesmo ausente na maior parte dos dois últimos
atos, Jake Gyllenhaal não precisa de muito para absorver o misto de medo,
orgulho e despreparo do seu Jerry para lidar com a crise matrimonial, o que só
ajuda a realçar a capacidade de Dano em revelar o óbvio sem precisar apelar
para explicações desnecessárias.
Por fim, como se não bastasse a
sinceridade do argumento, a delicadeza do longa em tocar num tema tão
reconhecível e as poderosas atuações, Wildlife é também uma obra brilhantemente
dirigida. Embora sob uma perspectiva genuinamente intimista, Paul Dano não se
contenta em apostar num naturalismo óbvio. Com enquadramentos requintados,
discretos movimentos de câmera e uma condução que evita ao máximo a
interferência desnecessária, o estreante cineasta esbanja virtuosismo ao extrai
o máximo dos planos estáticos e\ou conjuntos, valorizando o dinamismo das cenas
(e do texto como um todo) com um forte senso de realismo. Nós sentimos a dor
desta família, compartilhamos do seu desconforto, da sua raiva, da sua
frustração. Um grau de conexão que faz de Vida Selvagem um drama indispensável.
Sem nunca perder o pulso da trama, que cresce constantemente até a sua
fantástica sequência final, Dano nos brinda com um ‘coming of age movie’
adulto, sólido e atual. Um retrato implacável sobre o impacto do divórcio na
rotina de uma família consumida pelas chamas da vida adulta, das oportunidades
perdidas, do tempo desperdiçado.
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