A realidade é dura e em alguns casos
no escolhe lados. Seja no Brasil, nos EUA ou até mesmo na Islândia, um cenário
frio que se revela o palco ideal para a construção do contido drama Expire,
Inspire. Produção original Netflix, o delicado longa dirigido por Isold
Uggadottir é cuidadoso ao refletir sobre o drama dos imigrantes ilegais na
Europa dentro de um contexto denso, feminino e genuinamente humano. Numa sacada
inteligente, a realizadora é cuidadosa ao unir as jornadas de duas mulheres “teoricamente”
em lados opostos da moeda, indo além da desoladora situação dos expatriados ao
preencher a trama com questões ainda mais reconhecíveis. O resultado é uma obra
contida e avessa ao melodrama que, apesar das constantes
facilitações narrativas, comove ao priorizar a construção dos laços em
detrimento das lágrimas fáceis.
São por obras como Inspire,
Expire que dá gosto de defender a pluralidade na Sétima Arte. Óbvio que
diretores homens seriam capazes de tratar temas tão espinhosos como os
abordados aqui com a mesma sensibilidade. A presença de uma mulher no comando
deste drama, entretanto, faz toda a diferença, o que fica bem claro quando
percebemos a propriedade com que ela aborda questões inerentes ao imaginário
feminino atual. Não estamos diante de um filme somente sobre o drama da
imigração. Isold Uggadottir é enfática ao não reduzir as suas personagens a um
só conflito, preenchendo a trama com dilemas envolvendo o fardo da maternidade,
o abandono e principalmente a repressão sexual. E isso tudo com uma pegada
positivamente nórdica, uma abordagem gélida em sua camada mais superficial, mas
aconchegante quando decide investigar a chama que movia as duas fortes
personagens.
Inspire, Expire narra a história
de Lára (Kristín Þóra Haraldsdóttir), uma mãe solteira de passado problemático
com sérios problemas para sustentar o lar e o seu afetuoso pequeno filho Eldar (Patrik
Nökkvi Pétursson). Na busca por uma chance para se reerguer, a errática mulher
consegue uma vaga de trainee para trabalhar como fiscal da alfandega de um
aeroporto, o emprego que poderia mudar de vez a sua disfuncional rotina.
Determinada a aproveitar esta oportunidade, Lará ganha pontos extras com os
seus superiores ao perceber que havia algo errado com o passaporte de Adja (Babetida
Sadjo), uma imigrante da Guiné-Bissau que é logicamente detida pelo governo
islandês. Apesar do peso na consciência, ela tentou levar a sua vida
normalmente, se apertando ao máximo na busca pela segurança que tanto almejava.
Quando tudo parecia perto de ruir, entretanto, os caminhos de Lará e Adja
cruzam outra vez, mostrando que a realidade das duas não era tão diferente
assim.
O primeiro grande predicado de
Inspire, Expire fica pela maturidade de Isold Uggadottir em tornar a jornada
das duas protagonistas o menos expositiva possível. Ela não só confia na
inteligência do espectador, mas principalmente no poder de sugestão do seu
texto. A impressão que fica é que a realizadora luta para interferir o mínimo
possível da construção do vínculo entre o público e as personagens. As
respostas nem sempre são claras. Uggadottir exige que o espectador preencha
algumas brechas. O que fica bem claro, em especial, quando o assunto é a
caótica Lara. Logo na contextualizadora sequência de abertura, quando a vemos
tendo sérios problemas para pagar uma conta no supermercado, a diretora mostra
poder de síntese ao estabelecer a sua realidade. Esqueça o passado, ele pouco
importa. As pistas sobre os erros pregressos dela são sutilmente exploradas nas
entrelinhas, permitindo que possamos ter um vislumbre completo sobre Lara. Com
uma abordagem intimista, Uggadottir dedica o imersivo primeiro ato a construção
da rotina dela, da sua estreita relação com o querido filho Eldar, enchendo a
tela de sentimentos ao valorizar os contrastes que a cercavam, ao mostrar o
quão tênue era a linha que a separava do seu passado. Mais do que um afetuoso
elemento narrativo, o jovem filho surge como uma espécie de bússola moral para
esta mulher, a força que ela precisava para seguir lutando contra as
dificuldades financeiras, a solidão, os problemas amorosos e o peso de se criar
uma criança sozinha. Um arco sólido e reconhecível potencializado pelo
revigorante entrosamento entre mãe e filho e (claro!) pelas realísticas atuações de Kristín Þóra Haraldsdóttir e Patrik Nökkvi Pétursson. Ela
vigorosa na pele de uma mulher disposta a tudo para encarar o turbilhão que a
cercava, ele encantador como um garotinho gentil e compreensivo que refletia o
melhor da sua figura materna.
Inspire, Expire alcança o seu
ápice, entretanto, graças a sagacidade de Isold Uggadottir em estreitar os
laços entre Lára e a vítima do seu esforço, a resiliente Adjar. Embora, num
primeiro momento, as duas pareçam estar em posições diferentes, aos poucos
percebemos que a realidade delas tinha bem mais em comum do que pensávamos. Por
mais que o argumento aposte em constantes facilitações narrativas para
interligar o caminho das protagonistas, a diretora\roteirista compensa ao
extrair o máximo desta improvável amizade. É preciso elogiar o esmero da
Uggadottir em construir o elo entre elas. Coincidências do destino a parte,
Lára e Adjar se aproximam pouco a pouco, empurradas pela doçura do pequeno
Elder e principalmente pela semelhança dos conflitos que elas encaravam. Sem
querer revelar muito, a realizadora abraça o realismo ao se debruçar sobre o
drama de duas mulheres sem “raízes”, unidas por seus medos, anseios, desejos e
pela simples empatia. Um sentimento puro que, infelizmente, é tão pouco
explorado dentro do cinema. Não espere, portanto, grandes explicações. Um ‘plot
twist’ lacrimoso. A redenção pessoal não é o assunto aqui. As duas agem por
compaixão, pela simples oportunidade de ajudar. Uma sincera vocação altruísta que
transforma Adjar no coração da história. Mesmo numa ingrata posição dentro da
sociedade islandesa, a imigrante africana revela um senso de integridade
comovente, uma força bruta que tem muito a dizer sobre o passado da personagem.
Sobre a casca que ela teve que criar para lidar com todo o sofrimento que a
cercava. Um ‘background’ de dor e repressão capturado com maestria pela
introspectiva Babetiba Sadjo (olho nela).
Impecável ao usar a rigidez
visual do cenário islandês (detalhe para a azulada fotografia) como um agente
catalisador da história, o que ajuda a reforçar o aconchegante clima de “mulheres
contra o mundo” alimentado pela história, Inspire, Expire é um drama robusto capaz
de se enternecer pela desoladora situação das suas personagens sem nunca deixar
de acreditar no esforço delas para dar a volta por cima. Um filme pequeno, crescente
e tocante que, ao entrar no cada vez mais abrangente radar da Netflix, ganhou
uma preciosa oportunidade para fazer a sua mensagem ecoar ao redor do mundo. Um
alcance importante dado a universalidade (e urgência) do cenário proposto.
Um comentário:
Excelente . Um exercício de sensibilidade
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