quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Crítica | Inspire, Expire


As duas faces de uma mesma moeda

A realidade é dura e em alguns casos no escolhe lados. Seja no Brasil, nos EUA ou até mesmo na Islândia, um cenário frio que se revela o palco ideal para a construção do contido drama Expire, Inspire. Produção original Netflix, o delicado longa dirigido por Isold Uggadottir é cuidadoso ao refletir sobre o drama dos imigrantes ilegais na Europa dentro de um contexto denso, feminino e genuinamente humano. Numa sacada inteligente, a realizadora é cuidadosa ao unir as jornadas de duas mulheres “teoricamente” em lados opostos da moeda, indo além da desoladora situação dos expatriados ao preencher a trama com questões ainda mais reconhecíveis. O resultado é uma obra contida e avessa ao melodrama que, apesar das constantes facilitações narrativas, comove ao priorizar a construção dos laços em detrimento das lágrimas fáceis.


São por obras como Inspire, Expire que dá gosto de defender a pluralidade na Sétima Arte. Óbvio que diretores homens seriam capazes de tratar temas tão espinhosos como os abordados aqui com a mesma sensibilidade. A presença de uma mulher no comando deste drama, entretanto, faz toda a diferença, o que fica bem claro quando percebemos a propriedade com que ela aborda questões inerentes ao imaginário feminino atual. Não estamos diante de um filme somente sobre o drama da imigração. Isold Uggadottir é enfática ao não reduzir as suas personagens a um só conflito, preenchendo a trama com dilemas envolvendo o fardo da maternidade, o abandono e principalmente a repressão sexual. E isso tudo com uma pegada positivamente nórdica, uma abordagem gélida em sua camada mais superficial, mas aconchegante quando decide investigar a chama que movia as duas fortes personagens.


Inspire, Expire narra a história de Lára (Kristín Þóra Haraldsdóttir), uma mãe solteira de passado problemático com sérios problemas para sustentar o lar e o seu afetuoso pequeno filho Eldar (Patrik Nökkvi Pétursson). Na busca por uma chance para se reerguer, a errática mulher consegue uma vaga de trainee para trabalhar como fiscal da alfandega de um aeroporto, o emprego que poderia mudar de vez a sua disfuncional rotina. Determinada a aproveitar esta oportunidade, Lará ganha pontos extras com os seus superiores ao perceber que havia algo errado com o passaporte de Adja (Babetida Sadjo), uma imigrante da Guiné-Bissau que é logicamente detida pelo governo islandês. Apesar do peso na consciência, ela tentou levar a sua vida normalmente, se apertando ao máximo na busca pela segurança que tanto almejava. Quando tudo parecia perto de ruir, entretanto, os caminhos de Lará e Adja cruzam outra vez, mostrando que a realidade das duas não era tão diferente assim.


O primeiro grande predicado de Inspire, Expire fica pela maturidade de Isold Uggadottir em tornar a jornada das duas protagonistas o menos expositiva possível. Ela não só confia na inteligência do espectador, mas principalmente no poder de sugestão do seu texto. A impressão que fica é que a realizadora luta para interferir o mínimo possível da construção do vínculo entre o público e as personagens. As respostas nem sempre são claras. Uggadottir exige que o espectador preencha algumas brechas. O que fica bem claro, em especial, quando o assunto é a caótica Lara. Logo na contextualizadora sequência de abertura, quando a vemos tendo sérios problemas para pagar uma conta no supermercado, a diretora mostra poder de síntese ao estabelecer a sua realidade. Esqueça o passado, ele pouco importa. As pistas sobre os erros pregressos dela são sutilmente exploradas nas entrelinhas, permitindo que possamos ter um vislumbre completo sobre Lara. Com uma abordagem intimista, Uggadottir dedica o imersivo primeiro ato a construção da rotina dela, da sua estreita relação com o querido filho Eldar, enchendo a tela de sentimentos ao valorizar os contrastes que a cercavam, ao mostrar o quão tênue era a linha que a separava do seu passado. Mais do que um afetuoso elemento narrativo, o jovem filho surge como uma espécie de bússola moral para esta mulher, a força que ela precisava para seguir lutando contra as dificuldades financeiras, a solidão, os problemas amorosos e o peso de se criar uma criança sozinha. Um arco sólido e reconhecível potencializado pelo revigorante entrosamento entre mãe e filho e (claro!) pelas realísticas atuações de Kristín Þóra Haraldsdóttir e Patrik Nökkvi Pétursson. Ela vigorosa na pele de uma mulher disposta a tudo para encarar o turbilhão que a cercava, ele encantador como um garotinho gentil e compreensivo que refletia o melhor da sua figura materna.


Inspire, Expire alcança o seu ápice, entretanto, graças a sagacidade de Isold Uggadottir em estreitar os laços entre Lára e a vítima do seu esforço, a resiliente Adjar. Embora, num primeiro momento, as duas pareçam estar em posições diferentes, aos poucos percebemos que a realidade delas tinha bem mais em comum do que pensávamos. Por mais que o argumento aposte em constantes facilitações narrativas para interligar o caminho das protagonistas, a diretora\roteirista compensa ao extrair o máximo desta improvável amizade. É preciso elogiar o esmero da Uggadottir em construir o elo entre elas. Coincidências do destino a parte, Lára e Adjar se aproximam pouco a pouco, empurradas pela doçura do pequeno Elder e principalmente pela semelhança dos conflitos que elas encaravam. Sem querer revelar muito, a realizadora abraça o realismo ao se debruçar sobre o drama de duas mulheres sem “raízes”, unidas por seus medos, anseios, desejos e pela simples empatia. Um sentimento puro que, infelizmente, é tão pouco explorado dentro do cinema. Não espere, portanto, grandes explicações. Um ‘plot twist’ lacrimoso. A redenção pessoal não é o assunto aqui. As duas agem por compaixão, pela simples oportunidade de ajudar. Uma sincera vocação altruísta que transforma Adjar no coração da história. Mesmo numa ingrata posição dentro da sociedade islandesa, a imigrante africana revela um senso de integridade comovente, uma força bruta que tem muito a dizer sobre o passado da personagem. Sobre a casca que ela teve que criar para lidar com todo o sofrimento que a cercava. Um ‘background’ de dor e repressão capturado com maestria pela introspectiva Babetiba Sadjo (olho nela).


Impecável ao usar a rigidez visual do cenário islandês (detalhe para a azulada fotografia) como um agente catalisador da história, o que ajuda a reforçar o aconchegante clima de “mulheres contra o mundo” alimentado pela história, Inspire, Expire é um drama robusto capaz de se enternecer pela desoladora situação das suas personagens sem nunca deixar de acreditar no esforço delas para dar a volta por cima. Um filme pequeno, crescente e tocante que, ao entrar no cada vez mais abrangente radar da Netflix, ganhou uma preciosa oportunidade para fazer a sua mensagem ecoar ao redor do mundo. Um alcance importante dado a universalidade (e urgência) do cenário proposto.

Um comentário:

Unknown disse...

Excelente . Um exercício de sensibilidade