Um “monstro” com pecados e
virtudes
Frankenstein de Mary Shelly é
indiscutivelmente uma das obras mais influentes da literatura moderna. Dentro
de um universo majoritariamente masculino, a então jovem escritora publicou em
1818 um clássico que viria a moldar o universo do horror gótico, servindo de
inspiração nos séculos seguintes para uma geração romancistas, dramaturgos,
diretores e para o desenvolvimento do cinema de gênero como um todo. Em
outras palavras, estamos diante de uma personagem riquíssima, que graças a sua
coragem e resiliência se tornou um exemplo de independência feminina. Uma
daquelas realizadoras que merecia uma obra cinematográfica à sua altura. Como a
criatura concebida pela autora, porém, Mary Shelly (a cinebiografia) é uma obra
instável, com partes virtuosas e outras tantas "contaminadas".
Longe de ser um filme ruim, o
longa dirigido pela competente Haifaa Al Mansour (O Sonho de Wadja) tinha tudo
para ser um drama sólido e impactante, mas, na ânsia de solidificar o pioneiro discurso
feminista da escritora, peca pela imaturidade narrativa ao sustentar um arco de
afirmação tão emblemático em soluções pueris e\ou convenientes. Um deslize que,
felizmente, só acomete alguns trechos da obra, principalmente quando o assunto
é o dispersivo primeiro ato e a construção da face inicialmente romântica de
Mary Shelly. Por mais que, a rigor, o argumento assinado por Emma Jensen
consiga trabalhar o desenvolvimento da protagonista com inteligência, fica
claro que, neste primeiro momento, Mansour derrapa ao perder tempo demais com a
Mary ingênua, a jovem que se encantava pelos atos libertários da sua saudosa
mãe, sonhava em seguir os seus sentimentos a qualquer custa, mas sequer
desconfiava da consequência das suas decisões. Se por um lado o roteiro é
sucinto ao construir o vínculo entre ela e o seu respeitado pai, o também
escritor William Goldwin (Stephen Dilane, excelente), por outro a diretora
vacila ao tentar dialogar com o público mais jovem ao dar uma aura doce ao seu
infame romance com o narcisista Percy (Douglas Booth, numa performance
convincente). Somado a isso, o argumento patina ao investigar também o apenas
sugerido triângulo amoroso e o nascer da chama feminista da personagem,
reduzindo em parte a complexidade do tema ao se prender demais às desilusões
amorosas dela.
Não demora muito, porém, para as
coisas se encaixarem. Com consciência de quão dolorosa e transformadora foi a
vida de Mary Shelly antes da publicação do seu 'best-seller', Mansour pouco a
pouco preenche a trama com questões bem mais densas acerca da vida pessoal da
autora. Traição, luto, solidão, deboche, desvalorização, esses e outros
sentimentos se tornam decisivos para reconstrução da personagem título diante
do público, comprovando a capacidade do roteiro em, ai sim, traduzir com
intensidade a sua jornada de amadurecimento. E isso sem um pingo de julgamento.
Um predicado, verdade seja dita, potencializado pela soberba performance de
Elle Fanning, de longe o maior trunfo da cinebiografia. No papel mais adulto da
sua enxuta e já sólida filmografia, a jovem com feições angelicais se desconstrói
em cena com energia e uma raiva contida, nos dando a possibilidade de enxergar
a casca que cresceu em torno da protagonista ao longo da sua fase mais
turbulenta. Sem querer revelar muito, Fanning explode em cena com gosto nas
sequências em que vê a sua Mary acuada por homens e os seus pensamentos
machistas, interiorizando o espírito indomável da romancista com peso e
propriedade.
Melhor que esta realística
metamorfose, entretanto, é a maneira com que Haifaa Al-Mansour investiga as
experiências e a inspirações que moldaram o clássico Frankenstein ou O Prometeu
Moderno. Por mais que, na hora H, a diretora se renda aos mirabolantes
'insights' de inspiração típicos do segmento, ao longo da película o argumento
se mostra bem mais cuidadoso ao desvendar o nascer da ideia, a complicada
relação da autora com os demais representantes do gênero gótico na época, os
símbolos por trás da sua mitologia. Toda a dinâmica passagem na mansão do
polêmico e igualmente influente Lord Byron (Tom Sturridge, magneticamente afetado),
em especial, é reveladora e escancara o potencial inexplorado do oscilante primeiro
ato.
Por fim, fazendo um primoroso uso
da detalhista direção de arte de época, da imersiva fotografia suja\barroca de
David Ungaro (Prece ao Nascer do Dia), da delicada trilha sonora da novata no
ramo Amelia Warner e do talentoso elenco jovem, Mary Shelley supera os seus
evidentes deslizes ao dar uma consistente voz aos realísticos
traumas\desilusões que moldaram um dos mais populares monstros da ficção. Um
grito de independência feminino encarado com maturidade de gente grande por uma
impetuosa Elle Fanning.
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