No embalo da lucrativa retomada
da marca Star Wars, a Disney nitidamente se afobou ao tentar fazer com a saga
idealizada por George Lucas algo semelhante ao que acontece com o (seu)
rentável Universo Cinematográfico da Marvel. Confiante que a franquia tinha
fôlego para “sustentar” mais de um filme por ano, o estúdio se apressou em
tirar do papel uma nova prequel, seguindo os passos de Star Wars: Rogue One(2016) desta vez com um dos personagens mais icônicos da saga Skywalker: o
descolado caçador de recompensas Han Solo. Na ânsia de rejuvenescer a série,
entretanto, o que se viu foi uma relutância quanto ao rumo do projeto. Após um
início promissor, com a escalação da talentosa dupla de diretores Phil Lord e
Chris Miller (Uma Aventura Lego) e do carismático protagonista Alden Ehrenreich
(Ave, César!), as coisas começaram a degringolar quando a Disney sentiu que o
longa estaria muito distante daquilo que os fãs esperavam. Na época, a
produtora Kathleen Kenedy usou a velha desculpa da “divergência criativa”, mas,
nos meses seguintes ao lançamento da película, ficou claro que a dupla não estava preparada para um filme deste porte, que o excesso de
improvisos e a falta de pulso geraram um clima de desconfiança junto ao elenco
e (principalmente) que o estúdio não mostrou preparo para dar a atenção devida
ao andamento do projeto. Diante do fiasco iminente, entretanto, a força da
Disney despertou. Há pouco menos de um ano do lançamento do projeto, Kennedy
interveio, demitiu a dupla de realizadores e recrutou o experiente Ron Howard
para “salvar” o projeto. Uma saída que, frequentemente, não funciona, vide os
recentes ‘cases’ dos problemáticos Quarteto Fantástico (2015) e Esquadrão
Suicida (2017). Contrariando as expectativas mais pessimistas, Solo: Uma
História Star Wars se revela uma aventura competente, um filme leve, empolgante
e adoravelmente ambíguo que introduz a origem deste célebre personagem se
preocupando em reforçar as características que o tornaram tão icônico. Embora,
nas bilheterias, o longa tenha se revelado um fracasso retumbante, Howard
conseguiu fazer mágica ao tirar do papel um blockbuster coeso e aventuresco, um
‘heist movie’ com momentos grandiosos que tem tudo para se transformar na obra
mais subestimada do Universo Star Wars.
O que não quer dizer, entretanto,
que o filme não tenha problemas. Muito pelo contrário. Por melhor que tenha
sido o toque de midas de Ron Howard, remontar uma obra a partir de novas ideias
– e a um ano do seu lançamento – era uma missão praticamente impossível. O que
fica claro, em especial, no inchado segundo ato, quando, sem ter o que fazer
com alguns dispensáveis personagens de apoio e um errático arco romântico, o
diretor pisa literalmente no freio ao tentar solidificar laços que
aparentemente seriam subvalorizados pelo roteiro. Na verdade, Howard até
consegue extrair uma emoção genuína de algumas situações, mas, apesar do seu
nítido esforço, figuras como a humanizada robô L3 (Phoebe Waller-Bridge) e o
estiloso vilão Dryden Vos (Paul Bettany) definitivamente não funcionam e ficam
muito aquém do histórico de uma saga que nos acostumou a entregar personagens
do nível de C3PO, R2D2, BB8, Darth Vader, Darth Maul e Kylo Ren. Outro ponto
que me deixou em sérias dúvidas, aliás, foi o senso cronologia desta prequel dentro da saga. Enquanto se concentrou na jornada de “libertação” do jovem Han Solo, o
argumento assinado pela dupla Jonathan e Lawrence Kasdan não só prezou pela
linha temporal da saga original, como também alimentou algumas perspicazes faíscas
nostálgicas, funcionando muito bem, me perdoe o trocadilho, como uma peça solo
desta engrenagem. Na transição para o envolvente clímax, no entanto, o roteiro
tira do bolso uma carta arriscada, que, embora cause um frisson num
primeiro momento, logo alimenta algumas dúvidas quanto ao contexto em que a
trama está situada. Confesso que, com o subir dos créditos finais, fiquei
fazendo contas, tentando encaixar as peças, mas algo me diz que esse foi um daqueles
perigosos ‘fan services', principalmente para o espectador que, assim como eu,
desconhece o universo expandido Star Wars.
Nada que, verdade seja dita,
prejudique o andamento de Solo: Uma História Star Wars. Até porque,
contrariando as baixas e realísticas expectativas, Ron Howard entrega uma obra
bem mais coesa do que a maioria poderia esperar. Com um argumento ágil e
perspicaz em mãos, o diretor é astuto ao estabelecer a origem do maltrapilho
Han (Alden Ehrenreich), um bandidinho de quinta categoria aspirante a piloto
que lutava para fugir das garras de uma nefasta criminosa. Sem a necessidade de
perder muito tempo com explicações banais, Howard entrega um vibrante primeiro
ato, moldando a personalidade deste icônico personagem através das suas próprias
experiências. Um dos principais trunfos do longa, inclusive, está na sagacidade
do roteiro em gradativamente adicionar os traços que o transformariam num dos
grandes símbolos desta franquia. Numa envolvente jornada de “amadurecimento”, é
legal ver como o protagonista vai do rebelde ingênuo ao mercenário desconfiado
ao longo de duas horas e quinze de projeção, um processo que soa natural graças
a habilidade de Howard em tirar o máximo proveito de algumas importantes peças
secundárias. E não, eu não estou me referindo a positivamente dúbia Qi’Ra
(Emilia Clarke). O realizador é cuidadoso ao não perder um tempo excessivo com
esse insosso arco romântico, se concentrando naquele que se tornaria a grande
bússola moral de Han: o cativante Beckett (Woody Harrelson).
Fazendo um inteligente uso do arquétipo do mentor, algo muito presente
na saga, Howard subverte a lógica moralista ao investir num co-protagonista
sincero e sorrateiro, um mercenário com nuances que se torna
uma das peças chaves dentro da história. Sem querer reverá muito, o longa é
particularmente zeloso ao reforçar o elo entre os dois, ao estreitar os laços
de uma relação que a qualquer momento pode ser rompida, mostrando por A + B os
motivos que fizeram Han sobreviver por tanto tempo no submundo do universo Star
Wars. Como de costume na sua filmografia, Harrelson enche a tela de carisma ao
encarar este homem moralmente dúbio, um tipo ora afetuoso e sábio, ora frio e
calculista. Um produto do meio em que vive. Num arco marcado pela forte química
entre os atores, Howard acerta ao valorizar os momentos mais íntimos, ao focar
nesta “passagem de bastão”, potencializando o viés ‘heist’ da película ao
revelar que nesta realidade a confiança era um artigo de luxo. O que fica bem
claro, em especial, no envolvente último ato, quando, num ‘mise en scene’ tenso
e instigante, Howard brinca com as “máscaras” dos seus personagens.
O coração de Solo: Uma História Star Wars, no entanto, está na origem de
uma das histórias de amizade mais populares da Sétima Arte. E claro que estou
me referindo a relação entre Han e o seu fiel escudeiro Chewbacca. Numa
abordagem positivamente pouco reverente, Ron Howard esbanja maturidade ao,
pouco a pouco, revelar como os dois se tornaram uma das grandes duplas do
Universo Star Wars. Respeitando o teor descomplicado da trilogia original, o
diretor não se preocupa em criar grandes sequências ou em potencializar o
elemento ‘fan service’. O elo, aqui, é desenvolvido com naturalidade,
perfeitamente integrado a proposta aventuresca deste filme de origem. A
impressão que fica, na verdade, é que Howard deixa os símbolos falarem por si
só, vide a arrepiante sequência em que Chewie assume a função de copiloto da Milenium
Falcon pela primeira vez. Uma cena simples brevemente pontuada pelos imponentes
acordes da trilha de John Williams. Em suma, um arco complicado, muito em
função do vínculo afetivo com o fã, mas conduzido com maestria e bom humor por
um experiente Ron Howard. Um diretor que sabe apertar os “botões” certos na
hora certa. Quando o assunto são as cenas de ação, aliás, ele mostra a sua
usual perícia ao construir pelo menos três grandiosas e impactantes sequências.
Com pleno domínio sobre o engenhoso CGI, os quase US$ 300 milhões de orçamento
ficam impressos na tela com clareza, Howard consegue criar momentos
genuinamente tensos e empolgantes, extraindo o potencial das diversificadas
‘sidequests’ com indiscutível criatividade. Sem querer revelar muito, a frenética
(e densa) cena do roubo do trem e a fuga pelo espaço a bordo da Millenium estão
à altura dos melhores filmes da saga. Em contrapartida, ao longo do primeiro
ato, os cenários por vezes soam escuros demais, a luminosa fotografia em tons
de terra do talentoso Bradford Young é “limitada” por elementos cênicos,
como se Howard tivesse tentando esconder algo do espectador. Uma solução bem
comum quando se trata de uma obra com cenas refilmadas e um tumultuado processo
de pós-produção.
No embalo das charmosas (e
relaxadas) performances de Alden Ehrenreich e Donald Glover, empáticos ao
capturar a aura ‘cool’ malandra de Han e Lando Calrissian, Solo: Uma História
Star Wars é um passo em falso que deu certo. Embora derrape aqui ou ali, algo
natural numa produção que beirou o caos e o completo fiasco, Ron Howard chegou
a tempo de recolocar esta grandiosa nave no seu rumo, respeitando o status ‘bad-ass’
do personagem título numa aventura escapista e empolgante que acerta ao, tal
qual o popular mercenário, não se levar a sério demais. E que personagem
maneiro é Enfys Nest, uma prova da vastidão do universo Star Wars.
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