quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Solo: Uma História Star Wars

Um passo em falso que funciona

No embalo da lucrativa retomada da marca Star Wars, a Disney nitidamente se afobou ao tentar fazer com a saga idealizada por George Lucas algo semelhante ao que acontece com o (seu) rentável Universo Cinematográfico da Marvel. Confiante que a franquia tinha fôlego para “sustentar” mais de um filme por ano, o estúdio se apressou em tirar do papel uma nova prequel, seguindo os passos de Star Wars: Rogue One(2016) desta vez com um dos personagens mais icônicos da saga Skywalker: o descolado caçador de recompensas Han Solo. Na ânsia de rejuvenescer a série, entretanto, o que se viu foi uma relutância quanto ao rumo do projeto. Após um início promissor, com a escalação da talentosa dupla de diretores Phil Lord e Chris Miller (Uma Aventura Lego) e do carismático protagonista Alden Ehrenreich (Ave, César!), as coisas começaram a degringolar quando a Disney sentiu que o longa estaria muito distante daquilo que os fãs esperavam. Na época, a produtora Kathleen Kenedy usou a velha desculpa da “divergência criativa”, mas, nos meses seguintes ao lançamento da película, ficou claro que a dupla não estava preparada para um filme deste porte, que o excesso de improvisos e a falta de pulso geraram um clima de desconfiança junto ao elenco e (principalmente) que o estúdio não mostrou preparo para dar a atenção devida ao andamento do projeto. Diante do fiasco iminente, entretanto, a força da Disney despertou. Há pouco menos de um ano do lançamento do projeto, Kennedy interveio, demitiu a dupla de realizadores e recrutou o experiente Ron Howard para “salvar” o projeto. Uma saída que, frequentemente, não funciona, vide os recentes ‘cases’ dos problemáticos Quarteto Fantástico (2015) e Esquadrão Suicida (2017). Contrariando as expectativas mais pessimistas, Solo: Uma História Star Wars se revela uma aventura competente, um filme leve, empolgante e adoravelmente ambíguo que introduz a origem deste célebre personagem se preocupando em reforçar as características que o tornaram tão icônico. Embora, nas bilheterias, o longa tenha se revelado um fracasso retumbante, Howard conseguiu fazer mágica ao tirar do papel um blockbuster coeso e aventuresco, um ‘heist movie’ com momentos grandiosos que tem tudo para se transformar na obra mais subestimada do Universo Star Wars.



O que não quer dizer, entretanto, que o filme não tenha problemas. Muito pelo contrário. Por melhor que tenha sido o toque de midas de Ron Howard, remontar uma obra a partir de novas ideias – e a um ano do seu lançamento – era uma missão praticamente impossível. O que fica claro, em especial, no inchado segundo ato, quando, sem ter o que fazer com alguns dispensáveis personagens de apoio e um errático arco romântico, o diretor pisa literalmente no freio ao tentar solidificar laços que aparentemente seriam subvalorizados pelo roteiro. Na verdade, Howard até consegue extrair uma emoção genuína de algumas situações, mas, apesar do seu nítido esforço, figuras como a humanizada robô L3 (Phoebe Waller-Bridge) e o estiloso vilão Dryden Vos (Paul Bettany) definitivamente não funcionam e ficam muito aquém do histórico de uma saga que nos acostumou a entregar personagens do nível de C3PO, R2D2, BB8, Darth Vader, Darth Maul e Kylo Ren. Outro ponto que me deixou em sérias dúvidas, aliás, foi o senso cronologia desta prequel dentro da saga. Enquanto se concentrou na jornada de “libertação” do jovem Han Solo, o argumento assinado pela dupla Jonathan e Lawrence Kasdan não só prezou pela linha temporal da saga original, como também alimentou algumas perspicazes faíscas nostálgicas, funcionando muito bem, me perdoe o trocadilho, como uma peça solo desta engrenagem. Na transição para o envolvente clímax, no entanto, o roteiro tira do bolso uma carta arriscada, que, embora cause um frisson num primeiro momento, logo alimenta algumas dúvidas quanto ao contexto em que a trama está situada. Confesso que, com o subir dos créditos finais, fiquei fazendo contas, tentando encaixar as peças, mas algo me diz que esse foi um daqueles perigosos ‘fan services', principalmente para o espectador que, assim como eu, desconhece o universo expandido Star Wars.


Nada que, verdade seja dita, prejudique o andamento de Solo: Uma História Star Wars. Até porque, contrariando as baixas e realísticas expectativas, Ron Howard entrega uma obra bem mais coesa do que a maioria poderia esperar. Com um argumento ágil e perspicaz em mãos, o diretor é astuto ao estabelecer a origem do maltrapilho Han (Alden Ehrenreich), um bandidinho de quinta categoria aspirante a piloto que lutava para fugir das garras de uma nefasta criminosa. Sem a necessidade de perder muito tempo com explicações banais, Howard entrega um vibrante primeiro ato, moldando a personalidade deste icônico personagem através das suas próprias experiências. Um dos principais trunfos do longa, inclusive, está na sagacidade do roteiro em gradativamente adicionar os traços que o transformariam num dos grandes símbolos desta franquia. Numa envolvente jornada de “amadurecimento”, é legal ver como o protagonista vai do rebelde ingênuo ao mercenário desconfiado ao longo de duas horas e quinze de projeção, um processo que soa natural graças a habilidade de Howard em tirar o máximo proveito de algumas importantes peças secundárias. E não, eu não estou me referindo a positivamente dúbia Qi’Ra (Emilia Clarke). O realizador é cuidadoso ao não perder um tempo excessivo com esse insosso arco romântico, se concentrando naquele que se tornaria a grande bússola moral de Han: o cativante Beckett (Woody Harrelson).


Fazendo um inteligente uso do arquétipo do mentor, algo muito presente na saga, Howard subverte a lógica moralista ao investir num co-protagonista sincero e sorrateiro, um mercenário com nuances que se torna uma das peças chaves dentro da história. Sem querer reverá muito, o longa é particularmente zeloso ao reforçar o elo entre os dois, ao estreitar os laços de uma relação que a qualquer momento pode ser rompida, mostrando por A + B os motivos que fizeram Han sobreviver por tanto tempo no submundo do universo Star Wars. Como de costume na sua filmografia, Harrelson enche a tela de carisma ao encarar este homem moralmente dúbio, um tipo ora afetuoso e sábio, ora frio e calculista. Um produto do meio em que vive. Num arco marcado pela forte química entre os atores, Howard acerta ao valorizar os momentos mais íntimos, ao focar nesta “passagem de bastão”, potencializando o viés ‘heist’ da película ao revelar que nesta realidade a confiança era um artigo de luxo. O que fica bem claro, em especial, no envolvente último ato, quando, num ‘mise en scene’ tenso e instigante, Howard brinca com as “máscaras” dos seus personagens.


O coração de Solo: Uma História Star Wars, no entanto, está na origem de uma das histórias de amizade mais populares da Sétima Arte. E claro que estou me referindo a relação entre Han e o seu fiel escudeiro Chewbacca. Numa abordagem positivamente pouco reverente, Ron Howard esbanja maturidade ao, pouco a pouco, revelar como os dois se tornaram uma das grandes duplas do Universo Star Wars. Respeitando o teor descomplicado da trilogia original, o diretor não se preocupa em criar grandes sequências ou em potencializar o elemento ‘fan service’. O elo, aqui, é desenvolvido com naturalidade, perfeitamente integrado a proposta aventuresca deste filme de origem. A impressão que fica, na verdade, é que Howard deixa os símbolos falarem por si só, vide a arrepiante sequência em que Chewie assume a função de copiloto da Milenium Falcon pela primeira vez. Uma cena simples brevemente pontuada pelos imponentes acordes da trilha de John Williams. Em suma, um arco complicado, muito em função do vínculo afetivo com o fã, mas conduzido com maestria e bom humor por um experiente Ron Howard. Um diretor que sabe apertar os “botões” certos na hora certa. Quando o assunto são as cenas de ação, aliás, ele mostra a sua usual perícia ao construir pelo menos três grandiosas e impactantes sequências. Com pleno domínio sobre o engenhoso CGI, os quase US$ 300 milhões de orçamento ficam impressos na tela com clareza, Howard consegue criar momentos genuinamente tensos e empolgantes, extraindo o potencial das diversificadas ‘sidequests’ com indiscutível criatividade. Sem querer revelar muito, a frenética (e densa) cena do roubo do trem e a fuga pelo espaço a bordo da Millenium estão à altura dos melhores filmes da saga. Em contrapartida, ao longo do primeiro ato, os cenários por vezes soam escuros demais, a luminosa fotografia em tons de terra do talentoso Bradford Young é “limitada” por elementos cênicos, como se Howard tivesse tentando esconder algo do espectador. Uma solução bem comum quando se trata de uma obra com cenas refilmadas e um tumultuado processo de pós-produção.


No embalo das charmosas (e relaxadas) performances de Alden Ehrenreich e Donald Glover, empáticos ao capturar a aura ‘cool’ malandra de Han e Lando Calrissian, Solo: Uma História Star Wars é um passo em falso que deu certo. Embora derrape aqui ou ali, algo natural numa produção que beirou o caos e o completo fiasco, Ron Howard chegou a tempo de recolocar esta grandiosa nave no seu rumo, respeitando o status ‘bad-ass’ do personagem título numa aventura escapista e empolgante que acerta ao, tal qual o popular mercenário, não se levar a sério demais. E que personagem maneiro é Enfys Nest, uma prova da vastidão do universo Star Wars.

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