Um relato poderoso sobre a velhice e as suas idiossincrasias, Lucky oferece ao saudoso Harry Dean Stanton a despedida que um ator do seu quilate merecia. Lançado poucos meses antes da sua morte, aos 91 anos, em setembro de 2017, o envolvente longa dirigido por John Carrol Lynch estende o seu tapete vermelho para o veterano, exaltando a sua reconhecida humanidade ao nos presentear com uma espécie de testamente em formato fílmico. Uma obra que diz muito não só sobre o envelhecimento em si, mas principalmente sobre o talentoso realizador por trás de uma prestigiosa carreira na TV e no Cinema. Carregando nas suas feições o peso da idade, Stanton comove ao encarar a jornada de um homem comum diante da iminência da morte, refletindo sobre os seus próprios medos e frustrações num estudo de personagem honesto, profundo e inesperadamente engraçado. Recheado de reflexivos diálogos sobre a vida e as nossas relações, Lucky, em sua essência mais pura, se revela uma película iluminada, um drama capaz de transitar entre a melancolia e o otimismo com sobriedade e uma rara dose de ternura. Duas características que, diga-se de passagem, poderiam definir a arte de Harry Dean Stanton, um ator avesso aos holofotes que, ao longo de nove décadas, trabalhou com os melhores, precisando de pouco (bem pouco mesmo) para brilhar em clássicos modernos como Alien: O Oitavo Passageiro (1979), Fuga de Nova Iorque (1981), Repo Men: A Onda Punk (1984), Paris, Texas (1984), A Garota de Rosa Shoking (1986) e muitos outros títulos de sucesso.
Com um precioso senso de humor, Lucky é aquele tipo de filme que gosta de quebrar as nossas expectativas. A começar, por exemplo, pela fantástica cena de abertura. Nela, ao contrário do que a premissa sugeria, o ator e diretor John Carrol Lynch surpreende ao expor a fisicalidade na rotina matinal do seu nonagenário protagonista. Numa sequência primorosa, ele mostra tudo sem dizer nada, escondendo nos detalhes e na hilária série de exercícios do idoso pistas sobre a identidade daquele homem. Logo de cara surge o cigarro, um “velho companheiro” do veterano de guerra, um hábito pouco saudável que, no momento seguinte, é posto em contraste com uma foto de um jovem Lucky nos tempos de exército. Ao seu redor o vazio fica claro, seja na geladeira, abastecida com três embalagens de leite, seja na casa, decorada com moveis antigos, seja no armário, ocupado por um par de roupas praticamente idênticas, seja no cenário que o cercava, uma região árida recheada de areia, cactos e uma estrada que parecia levar para lugar nenhum. O relógio da cafeteira marcava um luminoso 00:00, num piscar recorrente que sugere o seu desdém para com o tempo. Em poucos minutos, Carrol Lynch estabelece a realidade de Lucky com maestria, um homem que, sem objetivos a cumprir, aguarda pacientemente o seu destino, sem se importar com horários, vínculos afetivos ou com o futuro. O choque que abala a sua rotina, porém, não vem de uma descoberta repentina, nem tão pouco do surgimento de uma doença. Numa solução que sintetiza a ironia fina contida no texto, brilhantemente escrito pelos estreantes (para a minha surpresa) Logan Sparks e Drago Sumonja, o seu dessossego nasce no momento em que ele descobre que tem uma “saúde de ferro” e que o seu único “problema” é a sua avançada idade. Diante da imprevisibilidade, Lucky passa então a (re)conviver com as incertezas da vida, refletindo sobre a sua própria realidade enquanto compartilha as suas experiências com àqueles que (ainda) o cercavam.
Sem a mínima preocupação de ir de um ponto A a um ponto B, John Carrol Lynch exalta a intimidade ao se encantar pela jornada do seu protagonista. Numa obra que parecia pensada para Harry Dean Stanton, já que, assim como o seu Lucky, o talentoso ator nunca se casou e cultivava um prestígio inabalável junto aos seus amigos, o realizador entrega o protagonista que ele sempre mereceu (e poucas vezes conseguiu), um homem complexo e introspectivo que definitivamente tem muito a dizer. Dono de feições comuns, Stanton enche a tela de sentimento ao externar os conflitos do seu tão estimado Lucky, reforçando a preciosidade contida no texto ao tornar as divagações do seu envelhecido personagem naturalmente comoventes aos olhos do público. Sem nunca pisar no tão explorado terreno do melodrama, Carrol Lynch esbanja propriedade ao transitar sobre temas espinhosos, entre eles os traumas do passado, o medo da morte, a solidão, o valor de uma amizade e o desapego a “vida material”. Numa espécie de epílogo sobre a vida de um homem comum, o realizador extrai o máximo do qualificado argumento, dando voz aos adoráveis personagens de apoio ao permitir que compreendemos os conflitos de Lucky, os seus anseios e frustrações, questões externalizadas com extrema originalidade. Na verdade, cada um dos expressivos “coadjuvantes” contribuí ativamente não só para a (re)construção emocional do protagonista, como também para a preparação para este rito de passagem que define a nossa existência, preenchendo a trama com diálogos densos, singelos e por diversas vezes impagáveis de tão engraçados.
O que falar, pra começar, do tipo interpretado pelo cultuado David Lynch (uma escalação que sintetiza o quão querido era Harry Dean Stanton), um homem igualmente solitário que vê a sua rotina virar de cabeça para baixo no dia em que o seu cágado, o estimado Presidente Roosevelt, foge da sua casa sem deixar rastros. Deste arco aparentemente surreal, por exemplo, nasce um delicado diálogo sobre a amizade e a difícil missão de dar adeus a um ente querido, um segmento singular encarado com intensidade por um dos realizadores mais desafiadores de Hollywood. Pouco mais a frente, num trecho bem mais pesado, o veterano Tom Skerrit surge com uma divagação sobre a crueldade da guerra, uma sequência emocionante que, no final das contas, culmina num diálogo memorável sobre a nossa relação diante da iminência da morte. Sem um pingo de pressa, Carrol Lynch é comedido ao traduzir as emoções de Lucky, ao realçar os seus conflitos mais pessoais a partir destas breves interações, fazendo um magnífico uso da intensidade humana de Stanton ao valorizar tanto os seus emocionantes rompantes de fragilidade, quanto a sua irônica resiliência, preenchendo a harmoniosa película com cenas ternas e revigorantes. A sequência do abraço, em especial, me fez lembrar de um outro filmaço da sua carreira, o adorável Paris, Texas.
E de fato, apesar dos inúmeros predicados narrativos, a alma de Lucky reside na figura de Harry Dean Stanton. Na pele de nonagenário descrente, sozinho (e não solitário) e resiliente, o veterano traz no seu olhar o peso do tempo, o cansaço e a experiência, uma composição de personagem humana e que ganha uma série de novas camadas com o avançar da trama. Por trás das rugas e dos combalidos (porém resistentes) passos desengonçados, existe um homem com sentimentos, um tipo ora turrão e intransigente, ora dócil e compreensivo. Uma figura que, nas entrelinhas, expõe os seus temores, as suas frustrações, os seus anseios, as suas convicções, os seus preconceitos e as suas virtudes. Na verdade, Stanton (o ator) surge em tela sem medo, refletindo sobre a sua própria realidade numa performance convincente seja como um idoso fragilizado, seja como um sábio pensador, seja como um homem destemido diante do seu último “oponente". E isso sem perder o viés comum que definiu alguns dos seus principais personagens, que, de tão verossímeis, parecem que vão sair da tela e cruzar conosco na rua a qualquer momento. Um trabalho singular potencializado pela suave direção intimista de John Carrol Lynch. Sem a intenção de intervir no trabalho do experimentado elenco, todos com performances acima da média, o realizador investe em imersivos planos médios, uma direção limpa que serve sutilmente a trama. Aqui, o menos é mais. Além disso, contrariando as expectativas, ele investe numa abordagem sentimental, um fato raro nos filmes ambientados no interior dos EUA. Indo de encontro a títulos como Uma História Real (1999) e o recente Nebraska (2014), Carrol Lynch trata os personagens sob um prisma mais afetuoso, mais comunicativo, se distanciando da rigidez embrutecida ao investir numa atmosfera acolhedora. Uma sensação incrementada pela luminosa e saturada fotografia desértica de Tim Suhrstedt (Como Enlouquecer o seu Chefe), que, num trabalho dotado de rada beleza, pinta a tela de dourado ao acompanhar as idas e vindas de Lucky pelas estradas do oeste americano. Por diversas vezes, inclusive, o diretor é sagaz ao usar o amarelo e principalmente o vermelho para expor o estado de espírito do personagem, pontuando a trama com duas ou três sequências carregadas de simbolismos.
Recheado de frases memoráveis, do tipo “pior do que o silêncio constrangedor é o papo furado”, Lucky é uma obra singular de um ator singular. Ao contrário do seu personagem, Harry Dean Stanton surge em cena convicto dos seus feitos, do seu legado enquanto artista, o protagonista perfeito para uma película intimista, simples e naturalmente tocante. Um filme que, diante de temas tão complexos, encara a delicada linha entre a vida e a morte, ao som de Johnny Cash, com um sorriso no rosto e a certeza que todos os envolvidos no projeto entregaram o seu melhor.
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