Tal pai, tal filha
Apesar da aparência requentada, Herança de Sangue foge do lugar comum ao
mostrar a violência de maneira crua e realística. Conduzido com extrema
elegância pelo diretor Jean-François Richet (Assalto ao 13º Distrito), o longa
se esquiva dos clichês redentores ao expor o círculo vicioso por trás do mundo
do crime, indo além das expectativas ao dar uma pegada intimista a uma premissa
amplamente utilizada em Hollywood. Por mais que as sequências de ação sejam recorrentes
e impactantes, a película ganha elementos mais autênticos no momento em que
decide se aprofundar na disfuncional relação entre um péssimo exemplo de pai e
a sua ardilosa filha, dando ao intenso Mel Gibson e a carismática Erin Moriarty
a possibilidade de construir um arco familiar sincero e indiscutivelmente
cativante.
Com roteiro assinado por Peter Craig e Andrea Berloff, Herança de Sangue é perspicaz ao dar uma roupagem própria a uma fórmula saturada. Impulsionado pelo cínico senso de humor e pelo viés crítico da película, vide a inteligente cena de abertura, o argumento é cuidadoso ao mostrar como os erros do passado podem ecoar numa geração futura. No melhor estilo tal pai, tal filha, é interessante ver o cuidado do diretor Jean-François Richet ao criar um paralelo entre a situação dos protagonistas, expondo com sensibilidade o impacto do abandono paterno na rotina de uma desajustada adolescente. E isso, diga-se de passagem, sem soar piegas ou sentimentalista. Na trama, após se envolver com um perigoso mafioso mexicano (Diego Luna), a jovem Lydia (Moriarty) entra na mira de um violento grupo de traficantes. Sozinha e acuada, ela resolve pedir ajuda ao seu distante pai, o tatuador Link (Gibson), um ex-viciado de passado obscuro que finalmente conseguiu encontrar a paz. Temendo pela vida da filha, ele decide buscar uma forçada reaproximação, mas a presença dela logo desperta a sua faceta mais raivosa e agressiva.
Embora seja um representante digno do bom e velho cinema de ação,
Herança de Sangue se preocupa em realçar as nuances mais pessoais dos seus
personagens. Indo de encontro aos recentes e elogiados Busca Implacável e De
Volta ao Jogo, Jean-François Richet é cuidadoso ao arquitetar o arco familiar
protagonizado por Lydia e Link, pontuando as implacáveis cenas de ação com
diálogos francos e sentimentais. Sem nunca parecer óbvio, o roteiro é sutil ao
revelar os motivos por trás do distanciamento entre os dois, ao tentar entender
o que levou a inteligente jovem ao mundo do crime, preenchendo uma trama
aparentemente requentada com questões intimistas e - a sua maneira - profundas.
Somado a isso, o realizador francês é igualmente habilidoso ao expor a faceta
mais vil do crime organizado. Na verdade, esqueça o código de ética e a
"parceria" entre criminosos. No momento em que parecia seguir um
caminho mais previsível, Richet é habilidoso ao mostrar que não existe
sinceridade neste ambiente hostil, nos fazendo enxergar o aspecto mais vazio em
torno do passado de Link. Por outro lado, além da ligeira queda de ritmo no
segundo terço do longa, o roteiro se rende a alguns clichês na transição para o
último ato, reduzindo o grau de realismo da trama ao apostar num desnecessário
'plot twist' e num conveniente confronto final.
Impecável ao estabelecer esta honesta relação familiar num contexto
urgente e perigoso, Jean-François Richet esbanja categoria ao dar uma roupagem
esteticamente vistosa a uma película que não parecia ter muito a oferecer. Com
enquadramentos elegantes e expressivos ‘close-ups’, o diretor francês revela
inspiração ao traduzir as emoções dos seus comandados, principalmente do
envelhecido Mel Gibson, nos brindando com momentos fortes e íntimos. O astro, aliás, surge no auge da sua forma física, injetando a sua
reconhecida intensidade (insanidade) ao dar vida a um homem irônico, impulsivo
e naturalmente 'bad-ass'. Já a jovem Erin Moriatti não se intimida diante do
popular parceiro de cena e cativa ao criar uma personagem rebelde, astuta e
esclarecida. Além de tirar o máximo do seu enxuto elenco, Richet é virtuoso ao
compor as violentas sequências de ação, vide o brutalizado clímax, criando
cenas breves, enxutas, mas inegavelmente tensas. Ponto para a expansiva
fotografia desértica de Robert Gantz, vigorosa ao capturar o clima de faroeste
moderno proposto por Richet.
Vendido erroneamente como um genérico filme de ação, Herança de Sangue é
um filme sóbrio e “classudo” potencializado pela enérgica atuação de Mel
Gibson. De volta aos holofotes após uma série de polêmicas, o ator confere um
evidente peso a este competente thriller de ação, mostrando que, tal qual o seu
personagem, só precisava de uma oportunidade para voltar a se
"divertir".
2 comentários:
Gostei da critica, mas é para informar que Mel Gibson não é australiano, ele nasceu nos EUA: http://www.imdb.com/name/nm0000154/
Valeu pelo comentário e pela retificação. Você tem toda razão, ele nasceu nos EUA e foi criado na Austrália. Correção já feita.
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