Um tema extremamente delicado em países como os EUA e o nosso Brasil, o
preconceito racial tem sido (felizmente) bastante explorado pela indústria do
entretenimento. Um importante instrumento na luta pela igualdade e pelo fim da
ignorância, o Cinema se acostumou produzir grandes produções do gênero,
propondo a reflexão através de relatos dolorosos e na maioria das vezes
verídicos. Como não citar, por exemplo, títulos como Mississípi em Chamas
(1988), Malcom X (1992), Duelo de Titãs (2000), Fruitvale Station (2013), Selma
(2014) e Estrelas Além do Tempo (2016), sucessos de público\crítica que
colocaram o dedo na ferida ao expor a violência por trás de fatos e personagens
históricos. Melhor ainda, porém, quando Hollywood resolve explorar os conflitos
raciais sob um prisma original, como no ácido Corra! (leia a nossa opinião aqui). Uma das principais
estreias deste fim de semana, o longa dirigido e roteirizado por Jordan Peele
(MADtv) resolveu realçar a faceta mais enraizada do preconceito nos EUA num
suspense questionador e extremamente nervoso. O resultado foi um surpreendente
sucesso de público e crítica, um filme de US$ 4,5 milhões que faturou mais de
US$ 214 milhões ao redor do mundo. Com a estreia de Corra!, neste Cinco
Filmes iremos lembrar de outras relevantes (e universais) produções originais
sobre as tensões raciais nos EUA.
Uma aula de humanidade e respeito ao próximo, O Sol é para Todos é um
daqueles clássicos cada vez mais indispensáveis. Inspirado no aclamado livro
homônimo da saudosa escritora Haper Lee, o longa dirigido por Robert Mulligan
(Houve uma vez um Verão) investe numa abordagem sensível ao narrar uma
comovente história de preconceito e injustiça. Conduzido com absoluta elegância
pelo astro Gregory Pack (Os Canhões de Navarrone), impecável ao dar vida a uma
das figuras paternas mais icônicas do cinema, o advogado Atticus Finch, o
argumento é cirúrgico ao expor o ódio racial em torno da investigação de um mal
explicado assassinato numa pequena cidade do sul dos EUA. Indo do drama ao
suspense com comedimento, o diretor é particularmente cuidadoso ao construir a
relação entre o pai e as suas filhas, transformando as atitudes de Atticus numa
sincera e poderosa aula de respeito e integridade. Recheado de frases
memoráveis, o discurso final do protagonista no tribunal é de arrepiar, o longa
traduz com naturalidade o idealismo do advogado, o transformando num corajoso
símbolo de resistência e exemplo ético. Além disso, Millugan reproduz com
maestria as sequências mais dolorosas, ressaltando com contundência a
segregação racial daquele período. É impactante ver, por exemplo, não só a
parcialidade jurídica contra o acusado do crime, como também as manifestações
covardes contra o advogado e a sua família, um relato poderoso e ainda hoje
necessário, principalmente quando nos deparamos com as inúmeras manifestações
de intolerância dentro da nossa sociedade. Dito isso, O Sol é para Todos é um
filme em preto e branco, lançado há mais de cinquenta anos, mas que ainda hoje
segue tão atual e importante. Não à toa, no ano de 2003, o advogado Atticus
Finch acabou consagrado com o primeiro lugar na lista dos 100 maiores heróis do
cinema americano da AFI.
- Adivinha Quem Vem para o Jantar (1967)
A obra prima desta seleção, porém, é o magnífico Adivinha Quem Vem para
o Jantar. Último filme do excelente Spencer Tracy (O Velho e o Mar), o longa
dirigido por Stanley Kramer (Deu a Louca no Mundo) tira "o elefante da
sala" ao discutir as tensões raciais sob um prisma íntimo, sincero e
absolutamente original. Transitando entre o drama, a comédia e o romance com
enorme desenvoltura, o filme estrelado pelo astro Sidney Poitier propõe uma
preciosa discussão ao revelar as consequências em torno de uma repentina
relação inter-racial. Com diálogos primorosos, personagens inesquecíveis e um
'mise en scene' brilhantemente arquitetado, o roteiro expõe os mais enraizados
conflitos raciais dos EUA dentro de um contexto humano e extremamente
criterioso. Embora ambientado numa região mais aberta a integração, no caso a
ensolarada Califórnia, o longa foi corajoso ao propor uma poderosa discussão na
década de 1960, no auge dos movimentos raciais, revelando os tabus ainda
presentes dentro de um cenário considerado liberal. Ao longo das envolventes 1
h e 45 min de projeção, Stanley Kramer é cuidadoso ao traduzir o impacto desta
novidade na rotina de duas famílias separadas por uma etnia, indo além das
expectativas ao não só mostrar a faceta mais enraizada do pré-conceito (no mais
pleno sentido da palavra), como também ao revelar os temores de duas figuras
paternas acostumadas a enfrentar os perigos por trás de uma sociedade
preconceituosa.
Através de diálogos profundos, vide o emocionante monólogo final
protagonizado por um inspirado Spencer Tracy, o realizador instiga no momento
em que não julga os seus personagens. Por mais que a desconfiança e o clima de
desconforto sejam evidentes em alguns momentos, é incrível como nenhum deles
está propriamente errado. Inicialmente relutante, por exemplo, o astuto pai não
demora muito para criar um elo com o seu futuro gênero. O que não o impede de
pensar o quão delicado seria o futuro da sua filha num país em que o casamento inter-racial
era crime em algumas regiões. É no estrondoso último ato, porém, que a película
se torna uma verdadeira obra-prima do cinema. Ao trazer para o centro da trama
os pais do personagem interpretado por Sidney Poitier, Kramer cria um
inestimável senso de igualdade, mostrando que as famílias mudam, a etnia muda,
mas as preocupações de ambos eram realmente parecidas. O resultado é um
revigorante clímax, um desfecho contundente e absolutamente singular. Em suma,
impulsionado pelos ótimos coadjuvantes (a empregada interpretada por Isabel
Sanford é fantástica), pelo imponente elenco (as figuras maternas interpretadas
por Katherine Hepburn e Beah Richards são de uma força ímpar) e pelo virtuosismo
estético de Stanley Kramer, Adivinha Quem Vem para o Jantar se revela um
clássico indispensável, uma obra inestimável justamente pode defender uma
amorosa mensagem igualitária.
- No Calor da Noite
(1967)
Primeiro astro negro de Hollywood, Sidney Poitier "inaugurou"
o gênero 'buddy cop movie' no afiado No Calor da Noite. Sob a batuta de Norman
Jewinson (Os Russos Estão Chegando!), o longa escancarou os mais enraizados
conflitos raciais americanos ao narrar as desventuras do detetive Virgil Tibbs,
um policial íntegro e inteligente que se vê em apuros ao ser "confundido"
com o suspeito de um crime numa cidade do interior. Após esclarecer a sua
situação, ele é pego de surpresa ao ser convocado para ajudar no caso,
enfrentando o preconceito e as barreiras raciais ao desvendar os mistérios por
trás deste assassinato. Com contundência e sagacidade, Jewinson transforma
Virgil Tibbs num personagem símbolo, um homem obstinado que se vê obrigado a
construir uma curiosa parceria com o debochado Xerife Gilespie (Rod Steiger).
Inserido num contexto na época raríssimo em Hollywood, No Calor da Noite nos
brindou com um dos primeiros grandes heróis negros do cinema, um homem que
impõe diante da maioria branca ao tomar as rédeas de um complexo caso. Sem querer revelar muito, inicialmente
ríspida e problemática, a relação entre Virgil e Gilespie é sensacional,
principalmente por expor o quão estúpido pode ser o preconceito. Além disso, o
longa nos brinda com algumas sequências corajosas. A cena em que Virgil
retribui um tapa na cara de um figurão branco é libertadora, um dos pontos
altos deste excelente filme. No Calor da Noite levou cinco estatuetas do Oscar,
incluindo o prêmio de Melhor Filme.
- Faça a Coisa Certa (1989)
Uma verdadeira crônica sobre a realidade negra no Brooklyn na década de
1980, Faça a Coisa Certa é a obra prima do diretor Spike Lee. Reconhecido pela
sua forte veia crítica e por defender a cultura negra nas suas produções, o
diretor esbanja energia ao revelar a faceta mais ignorante por trás do
preconceito. Com personagens singulares, uma atmosfera propositalmente quente e
um visual genuinamente vigoroso, Lee revela não só a musicalidade, as
referências culturais e o modo de vida de uma região majoritariamente negra,
como também escancara as tensões raciais presentes neste ambiente. Através da
rixa entre o zeloso dono de uma pizzaria, o boa praça Sal (Danny Aiello), e um
determinado fã de Rap, o popular Radio Raheem (Bill Nunn), o realizador expõe
os perigos por trás dos conflitos inter-raciais. Sem escolher lados, Lee é
incisivo ao reproduzir a irracionalidade, o desrespeito e as repentinas trocas
de farpas entre negros e brancos, dando ao longa um ritmo crescente e
naturalmente nervoso. Além disso, como se não bastasse o virtuosismo estético
do realizador, vide a colorida palheta de cores e os inventivos movimentos de
câmera, Faça a Coisa Certa envolve ao construir um 'mise en scene' recheado de
ritmo, uma obra insinuante capaz de revelar o melhor e o pior do ser humano.
Indiscutivelmente, um filme definitivo e completamente atual sobre os conflitos
raciais em solo norte-americano.
- Desafio No Bronx (1993)
Dirigido por Robert De Niro e roteirizada por Chazz Palminteri, Desafio
no Bronx é mais do que um grande filme de máfia. Ambientado na década de 1960,
um período decisivo dentro do movimento racial norte-americano, o longa
estrelado por Lillo Brancato é impecável ao revelar a rixa entre brancos e
negros nas ruas do Bronx. Com uma premissa envolvente, personagens marcantes e
uma direção recheada de sentimento, o filme utiliza o crime organizado como o
ponto de partida para um relato mais amplo, uma história de intolerância,
violência, amor e vingança. Na trama, após presenciar um assassinato, o jovem
Calogero é "adotado" por um mafioso local (Palminteri). Criado nesta
realidade, ele se vê num grande dilema no momento em que se apaixona pela bela
Jane (Taral Hicks), uma jovem negra que morava numa região liderada pelos
mafiosos rivais. Sem enxergar os perigos por trás deste romance "proibido",
Calogero resolve estreitar esta relação, mas logo experimenta o pior da tensão
racial envolvendo negros e brancos. Sob um prisma realmente humano, Robert De
Niro é cuidadoso ao revelar as devastadoras consequências em torno de um ato de
violência. Indo além do arco moral do protagonista, um jovem bem educado
iludido pelo status possibilitado pelo crime organizado, o diretor brilha ao
realçar a tensão em torno daquele cenário, um ambiente dominado pelas máfias do
Brooklyn e do Bronx, nos brindando com uma película extremamente alarmante. Na
verdade, Desafio no Bronx é um relato relevante, inteligente e realístico sobre a faceta mais hostil do preconceito racial.
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