O Festival de Cannes 2017 parece tentar construir uma rixa completamente desinteressante para os fãs da sétima arte. Presidente do Júri deste importante evento, o espanhol Pedro Almodóvar (Fale com Ela) não pareceu nem um pouco a vontade com a presença da Netflix na seleção oficial. Antes mesmo das estreias dos longas Okja, do cultuado diretor Boon Jong-Ho (Expresso do Amanhã), e The Meyerowitz Stories, do 'indie' Noah Baumbach (Frances Ha), o realizador europeu utilizou a coletiva de abertura não só para sair em defesa do dispositivo cinema, como também para atacar a presença desta plataforma digital na septuagésima edição do evento. "As plataformas digitais de exibição são uma nova forma de oferecer conteúdo, mas elas não podem suprimir as anteriores, como, por exemplo, o hábito de se ir ao cinema. A única solução que vejo seria que as novas plataformas aceitassem e obedecessem as regras que já foram adotadas e respeitadas por meios mais antigos. Não significa que eu não respeito esses filmes, mas enquanto eu seguir vivo vou defender a experiência que muitos jovens não tiveram que é a sensação de poder assistir um filme em tela grande. O espaço em que a gente vê um filme pela primeira vez não pode fazer parte de nossa mobília." afirmou Almodóvar, ressaltando ainda que seria um "paradoxo" dar a Palma de Ouro a um filme que jamais seria visto no cinema.
Embora concorde que a imersão proposta pelo dispositivo cinema seja ainda hoje única e indispensável, o discurso de Pedro Almodóvar me pareceu extremamente falacioso. Assistir a um filme na Netflix não diminui o interesse pelo cinema. Pelo contrário. Num momento em que Hollywood tem mostrado um apetite voraz para os grandes blockbusters, para o tão comentado 'hype', me custa acreditar que as novas gerações vão topar esperar alguns meses para assistir ao filme no conforto do seu lar. Não é isso que tem acontecido, vide os crescentes números nas bilheterias ao redor do mundo. Na verdade, as plataformas de streaming surgem como um agente democratizador. Além de oferecer um produto de qualidade à um preço acessível, um problema que, inegavelmente, tem se tornado recorrente nas principais redes de cinema, a Netflix tem dado voz ao filmes "engolidos" por este mercado predatório, às pequenas produções que geralmente só ganham mídia quando indicadas ao Oscar, ao Globo de Ouro e a outras grandes premiações. Recentemente, por exemplo, escrevi sobre o ótimo Sete Minutos Depois da Meia Noite, um filmaço, feito para ser assistido na tela grande, mas que foi lançado em pouquíssimas salas aqui no Rio de Janeiro. Se numa grande metrópole o filme ganhou este espaço, imagine numa cidade do interior ou em um pequeno país. Almodóvar não parece entender que a Netflix não é um nêmeses do Cinema, mas um aliado, um caminho seguro para as produções de novos (e também experientes) realizadores. E para aqueles títulos que, infelizmente, são muitas vezes esnobados pelas grandes distribuidoras, a mesma indústria que o realizador espanhol procurou defender tão fervorosamente.
A maior incoerência por trás do (perigoso*) discurso protecionista de Pedro Almodóvar, porém, está na maneira como ele subestima o mercado 'home vídeo'. Na minha opinião, a paixão pelo Cinema enquanto arte não nasce propriamente no cinema enquanto dispositivo. Antes de visitar uma sala pela primeira vez, o meu apreço pela sétima arte se solidificou graças ao advento do VHS e as saudosas locadoras físicas. Mesmo com todas as limitações tecnológicas e de catálogo da época, foi no aconchego do meu lar que eu pude realmente conhecer o mundo mágico do Cinema e descobrir produções lançadas décadas antes do meu nascimento. E isso, de maneira alguma, diminuiu a minha vontade de visitar uma sala de cinema. Espero, portanto, que esta estúpida rixa Netflix\Cinema não reverbere por muito tempo. Além de completamente improdutiva, já que são óbvias as diferenças entre assistir um filme em casa e num dispositivo preparado para a sua máxima imersão, esta discussão vai de encontro a conceitos tão estimados na atualidade. Ao tratar as - cada vez mais relevantes - produções originais da Netflix como um mero "subproduto", Almodóvar não se opõe somente contra a presença de um filme voltado para o mercado on demand, mas também contra a diversidade de conteúdo e a acessibilidade proposta por esta popular plataforma. Em suma, uma opinião a meu ver esnobe que, além de dar voz a (mais) um dualismo estúpido, se distancia por completo da origem da sétima arte e da sua faceta mais popular\democrática. Viva o Cinema! Viva a Netflix! Viva os (bons) Filmes!
*Na França, país sede do Festival de Cannes, os filmes lançados no circuito cinematográfico só podem chegar a uma plataforma VOD três anos após a data da sua estreia. Se a ideia pega...
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