Diferente do que o título poderia sugerir, Mulheres do Século do 20 não trata o feminismo como algo panfletário. Por mais que o tema esteja presente na narrativa, o corajoso longa dirigido por Mike Mills sai em defesa do feminino ao revelar as transformações sociais enfrentadas por elas durante os turbulentos anos setenta. Com uma série de inspiradas referências culturais e políticas, o talentoso realizador norte-americano constrói um estudo de personagem sensível e intimista, utilizando as oscilações temperamentais de um "moldável" adolescente como o ponto de partida para um profundo relato sobre os conflitos geracionais de três mulheres completamente distintas. Fazendo um primoroso uso do recurso da narração, Mills nos brinda com uma obra estilosa e recheada de sentimentos, um drama agridoce sobre o que é ser mãe, ser amiga, ser independente ou ser rebelde. Um tema complexo traduzido com plenitude pelo trio de mulheres formado por Annette Bening, Greta Gerwig e Elle Fanning.
Dono de uma sutileza ímpar, vide o seu elogiado trabalho em Toda Forma de Amor (2010), Mike Mills mostra propriedade ao discorrer sobre questões bem particulares ao sexo feminino. Indo além dos crescentes conflitos geracionais presentes na década de 1970, uma época marcada pela consolidação do feminismo, pela revolução sexual e por inúmeras mudanças culturais, o argumento também assinado pelo realizador se encanta pelos temas mais pessoais, discorrendo com profundidade por temas como a solidão, o amor, a maternidade, as desilusões, os medos e os anseios de três indomáveis mulheres separadas por uma data na certidão de nascimento. Na trama, conhecemos a liberal Dorothea (Annette Bening) e o seu jovem filho Jamie (Lucas Jade Zumann), uma família disfuncional que vivia num casarão em constante reforma. Nele, a matriarca abrigava a descolada Abbie (Greta Gerwig), uma fotógrafa corajosa que se recuperava de uma série doença, o marceneiro William (Billy Crudup), um errático homem de meia idade fechado para novos relacionamentos, e a rebelde Julie (Elle Fanning), uma adolescente problemática que frequentemente fugia de casa para ir dormir com o seu melhor amigo. Quando o garoto passa a enfrentar problemas típicos da sua idade, entre eles o crescente distanciamento, a inconsequência e a "explosão" hormonal, Dorothea decide recrutar as suas duas hóspedes e pedir para que elas a ajudem a contornar esta fase. Os conflitos, entretanto, ganham um novo contexto no momento em que Jamie resolve ter um contato mais honesto com estas duas jovens mulheres, percebendo que ele não era o único num momento de instabilidade emocional.
Dando uma aula no que diz respeito ao uso da narração, Mike Mills é inicialmente categórico ao introduzir os seus memoráveis protagonistas. Mais do que um simples complemento, o recurso do narrador-personagem, aqui, diz muito sobre a intimidade dos integrantes desta disfuncional família, sobre o que eles pensam e sentem, permitindo que o espectador crie uma sincera identidade com cada um deles. Com uma envolvente narrativa não linear, o argumento se esquiva dos diálogos expositivos ao se debruçar sobre o passado deles, sobre as suas nuances mais pessoais, pontuando a trama central com inspirados flashbacks, sagazes referências literárias à escritores\artistas\políticos e reveladores flashfowards. Por diversas vezes, inclusive, o realizador norte-americano investe em estilosos recursos de transição, brincando com o aspecto mais lisérgico da década de 1970 ao acelerar a velocidade das cenas, ao abrir espaço para fotos e imagens de arquivo da época e ao utilizar um filtro psicodélico para realçar o viés transgressor de algumas sequências.
Impecável ao estabelecer os seus personagens e a estreita conexão entre eles, Mike Mills é igualmente perspicaz ao usar um influenciável adolescente como o ponto de partida para um recorte essencialmente feminino. Através de diálogos francos e cenas recheadas de sentimento, ele mostra delicadeza ao traduzir a reação de Dorothea, Julie e Abbie às mudanças de Jamie, transformando a jornada de amadurecimento do superprotegido garoto numa espécie de ponte para os dilemas do trio. Cuidadoso ao delinear as características mais básicas delas, o diretor mostra inspiração ao explorar tanto as crescentes divergências sociais e culturais entre elas, quanto os seus conflitos mais subjetivos, tornando a relação entre os quatro naturalmente instável.
É interessante ver, por exemplo, como o convívio do rapaz com a feminista Abbie modifica a maneira que ele enxergava o comportamento da sua própria mãe. Ou então como a sua amizade com Julie ganha um novo status no momento em que o adolescente passa a entender com mais clareza os anseios das mulheres. Somado a isso, Mills é inteligente ao apontar, nas entrelinhas, para a questão da maternidade e os obstáculos por trás do processo de criação, um tema complexo que diz muito sobre a personalidade das três personagens. O mais legal, porém, é que em nenhum momento o realizador se preocupa em dar respostas fáceis, nem tão pouco com a construção de arcos bem definidos, culminando num clímax denso, reflexivo e totalmente coerente com a pegada naturalista defendida pelo longa.
É interessante ver, por exemplo, como o convívio do rapaz com a feminista Abbie modifica a maneira que ele enxergava o comportamento da sua própria mãe. Ou então como a sua amizade com Julie ganha um novo status no momento em que o adolescente passa a entender com mais clareza os anseios das mulheres. Somado a isso, Mills é inteligente ao apontar, nas entrelinhas, para a questão da maternidade e os obstáculos por trás do processo de criação, um tema complexo que diz muito sobre a personalidade das três personagens. O mais legal, porém, é que em nenhum momento o realizador se preocupa em dar respostas fáceis, nem tão pouco com a construção de arcos bem definidos, culminando num clímax denso, reflexivo e totalmente coerente com a pegada naturalista defendida pelo longa.
Um dos responsáveis pela nítida conexão entre os personagens, Mike Mills mostra perícia técnica ao valorizar o clima de intimismo presente no filme. Com imersivos planos médios e poucos cortes, o realizador aposta no entrosado elenco ao construir os seus fluídos planos sequências, realçando pura e simplesmente o poder dos seus diálogos em takes genuinamente marcantes. Sem querer revelar muito, a cena em que Jamie sugere que a mãe está infeliz ao ler um texto feminista é de cortar o coração, um momento potencializado pelas excepcionais atuações da dupla Annette Bening e Lucas Jade Zumann. Dona de um carisma natural, a veterana nos brinda com uma figura materna liberal e errática, a personagem mais positivamente confusa da trama. Com enorme categoria, a atriz encanta ao absorver o ar reprimido da sua Dorothea, um tipo humano que parece tentar acompanhar as transformações sociais, mas esconde nas suas convicções os tabus de uma geração que ficou para trás. Assim como a sua parceira de cena, o jovem Lucas Jade Zumann é preciso ao traduzir os conflitos do seu Jammie. Como se não bastassem as inúmeras transformações físicas e culturais, o rapaz ganha nuances particulares devido a forte influência feminina na sua rotina, uma abordagem interessante habilmente capturada pelo promissor ator. Vide a hilária sequência em que o garoto entra numa briga graças a uma discussão biológica sobre o clitóris.
O choque geracional, entretanto, é realçado pelas excepcionais atuações da dupla Greta Gerwig e Elle Fanning. Com cabelos vermelhos e um comportamento rebelde, a primeira é a metamorfose em pessoa, uma punk descolada e independente que sofre com o medo de não ter filhos. Um dos grandes nomes da comédia 'indie' norte-americana, Gerwig convence ao interiorizar as emoções da sua Abbie, indo do humor ao drama com extrema naturalidade. Já a excelente Elle Fanning desfila o seu magnetismo ao encarnar a indomável Julie. Dona de uma filmografia singular, ela novamente brilha ao capturar o misto de solidão, desilusão e inquietude da jovem, se tornando o elemento mais imprevisível da trama. Completa o elenco o talentoso Billy Crudup que, mesmo com o personagem mais linear da película, entrega uma atuação sólida na pele de um apático "faz tudo" que reluta em dar atenção aos seus sentimentos.
Em sua mais pura essência, Mulheres do Século 20 é, na verdade, uma película sobre o que é ser mulher. Mesmo inserido num contexto bem particular, o longa é cuidadoso ao dialogar com temas inquestionavelmente atuais, propondo uma bem vinda reflexão ao investigar alguns dos mais variados dilemas femininos sob um prisma universal e profundo. Impulsionado pela ensolarada fotografia de Sean Porter (Kumiko: A Caçadora de Tesouros), pela colorida direção de arte, pelos habitáveis cenários e pelo eclético setlist punk, Mike Mills entrega uma obra autêntica e revigorante, um filme indispensável justamente por exaltar a faceta mais humana dos seus reconhecíveis personagens.
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