sexta-feira, 31 de março de 2017

Ghost in The Shell - Vigilante do Amanhã

Um blockbuster que pensa

Ghost in The Shell: Vigilante do Amanhã é uma adaptação corajosa. Embora não tenha o peso do icônico anime de Mamoru Oshii, nem tão pouco a profundidade do mangá escrito por Masamune Shirow, o longa dirigido por Rupert Sanders é satisfatoriamente inteligente ao transitar pelos temas presentes no material original, entre eles os conflitos de identidade, o pano de fundo ético e os crescentes perigos em torno do opressivo avanço tecnológico. Impecável ao resgatar o aspecto visionário da cultuada obra nipônica, o realizador é cuidadoso ao refletir sobre a nossa existência dentro de uma realidade cada vez mais virtual, trazendo à tona pertinentes discussões filosóficas sob um prisma mais palatável aos olhos do grande público. Por mais que o argumento tente martelar alguns conceitos com dispensável didatismo, Sanders esbanja categoria ao traduzir tanto a complexidade dos marcantes personagens, quanto o espetacular visual cyberpunk presente na versão animada, bebendo na fonte de clássicos como Blade Runner (1982) e Robocop (1987) ao construir uma película recheada de predicados técnicos e narrativos. Um blockbuster esteticamente memorável, mas que não abre mão de pensar.



Com argumento assinado por William Wheeler, Jamie Moss e Ehren Kruger, o novo Ghost in The Shell é perspicaz ao discutir a nossa existência sob um original ponto de vista cibernético. Numa era em que as Inteligências Artificiais se tornaram parte integrante da nossa rotina, em que a tecnologia (próteses, lentes e micro equipamentos) passou a ser decisiva para o prolongamento das nossas vidas, o longa mostra inspiração ao perguntar o que nos define como humanos, o que nos diferenciaria de uma máquina numa realidade cada vez mais parece plausível. Um tema instigante que, aqui, ganha uma abordagem ainda mais interessante devido a porta voz desta reflexão, a indomável Major (Scarlett Johanson), uma ciborgue com cérebro humano e muitas dúvidas sobre a sua origem. Reverente ao material fonte, Rupert Sanders é engenhoso ao introduzir a visão de futuro idealizada por Shirow, um cenário em que os humanos utilizariam a tecnologia como um recurso físico\estético, ampliando as suas possibilidades através de peças mecânicas, lentes 'hi-tech' e avançados dispositivos neurológicos. Num ambiente altamente conectado, o governo japonês tinha uma linha de defesa contra o terrorismo cibernético, o Setor 9, um grupo liderado pelo veterano Aramaki (Takeshi Kitano) e composto pelos letais Major, Batou (Pilou Asbæk), Han (Chin Han), Ladriya (Danusia Samal) e Ishikawa (Lasarus Ratuere). Quando um perigoso hacker, o temido Kuze (Michael Pitt), começa a atacar membros do alto escalão do Hanka, um corporação envolvida no aprimoramento de humanos, Major resolve tomar as rédeas da investigação, sem saber que o embate só ampliaria os questionamentos sobre o seu passado e os motivos da sua existência.


Detalhista ao estabelecer o ambiente futurístico em que a história está inserida, vide a extraordinária sequência de abertura, Rupert Sanders é igualmente habilidoso ao introduzir a sua protagonista, a implacável Major. Embora sob um prisma mais simplificado, o realizador mostra sensibilidade ao explorar os dilemas íntimos da personagem, transformando a sua crise de identidade no estopim para uma discussão maior. Com um enorme poder de síntese, o longa consegue não só transitar por temas mais afetivos, como o passado da vigilante e a sua busca por respostas envolvendo a experiência humana, como também por questões mais filosóficas, entre elas os limites morais em torno do avanço tecnológico e os conflitos existênciais de um ser híbrido relutante sobre o seu lugar na sociedade. Mesmo nos momentos mais didáticos, o argumento abraça esta vasta gama de assuntos com inesperada plenitude, dando a Major um arco robusto e recheado de sentimentos. A relação entre ela e a sua criadora (Juliette Binoche), por exemplo, rende momentos genuinamente comoventes, impedindo que a trama se torne excessivamente retórica. Nas entrelinhas, inclusive, Sanders é sutil ao realçar as conflitantes emoções da protagonista, como na solitária cena marítima, um momento simbólico que diz muito sobre o estado de espírito dela. Somado a isso, é interessante ver a definição de existência defendida pelo longa, uma tese proativa que dialoga perfeitamente com a condição e a postura da protagonista. Sem querer revelar muito, o roteiro é sagaz ao dar uma cutucada na geração do Instagram, na turma que valoriza a imagem em detrimento da experiência, propondo que nós não devemos ser definidos pelas memórias físicas, mas pelo que sentimos e\ou fazemos.


Melhor ainda, entretanto, é capacidade do roteiro em tornar os personagens de apoio atraente aos olhos do público. Por mais que o foco esteja na Major, Rupert Sanders é zeloso ao permitir que cada um deles imprima a sua personalidade na tela, ganhe nuances bem próprias, preenchendo as possíveis brechas do roteiro com figuras multidimensionais e bem arquitetadas. Enquanto o leal Batou surge como um elemento quase fraternal, o 'bad-ass' Aramaki é a mente do Setor 9, o único capaz de entender os perigos por trás da existência de uma "arma" tão extraordinária. Na verdade, o realizador consegue traduzir a entrosada dinâmica entre os membros do esquadrão, o que se torna um elemento decisivo dentro do imponente último ato. Quem também rouba a cena é o misterioso Kuze, uma figura esteticamente impactante que desponta como um agente catalisador da trama. O terrorismo virtual, aliás, é explorado dentro de um contexto completamente atual, o que comprova o teor visionário do texto de Masamune Shirow. Em contrapartida, ainda que o pano de fundo corporativo seja bem aproveitado ao longo da película, o dúbio Cutter (Peter Ferdinando) merecia um desenvolvimento melhor e destoa em relação aos demais personagens. O roteiro também derrapa ao introduzir o passado de Major, que é estabelecido numa sequência deslocada e exageradamente expositiva.


Estes deslizes, porém, são amenizados no momento em que nos deparamos com o espantoso visual de Ghost in The Shell. Com uma palheta de cores geralmente escura, puxando incidentalmente para o azul, o vermelho e o branco, Rupert Sanders brilha ao reproduzir o ambiente futurístico do anime, buscando referência no clássico Blade Runner ao construir um cenário expressivo e naturalmente imponente. Fazendo um primoroso uso do desenho de produção, ele é criativo ao explorar o viés cybepunk, a mistura do 'hi-tech' com a sucata, potencializando os contrastes ao realçar tantos os gigantescos arranha-céus, as propagandas interativas e os banners em neon, quanto a face mais mais suja e desigual dos espaços menos desenvolvidos. É no aspecto micro, entretanto, que o detalhismo salta aos olhos. Impulsionado pelo irretocável trabalho da equipe de direção de arte, o realizador abraça os recursos práticos ao construir os variados sets e as figuras mais exóticas, tornando tudo muito crível e possível.


Já o CGI é utilizado com inspiração na composição dos robóticos personagens, dos inúmeros gadgets e dos dispositivos tecnológicos, dando ao longa uma exuberância estética de fazer inveja a qualquer grande produção do gênero. Com múltiplas possibilidades em mãos, o diretor inglês mostra repertório ao narrar a jornada de Major. Entre planos médios e panorâmicos, Rupert Sanders foge do lugar comum ao posicionar os seus personagens geralmente no centro do quadro, um recurso virtuoso que valoriza, principalmente, o andar petulante da Major e a expressão dos atores. Um esmero técnico que, aliás, se repete nas ágeis sequências de ação. Embora não tenha uma assinatura tão marcante, o diretor constrói takes são enxutos e impactantes, utilizando com elegância o 'slow motion' ao capturar a entrega física de Scarlett Johansson e as elaboradas coreografias. Méritos que, logicamente, precisam ser divididos com a fotografia noturna de Jess Hall, eficaz ao valorizar as cores e o movimento em meio ao opressivo cenário noturno. Não espere, contudo, uma sucessão de momentos frenéticos. Com um ritmo próprio, o longa surpreende ao investir frequentemente em cenas mais densas, pontuando a ação com diálogos intimistas e takes voltados ao desenvolvimento dos personagens.


Quanto ao diversificado elenco, Scarlett Johansson comprova o seu magnetismo ao entregar uma Major à altura da versão animada. Apesar da polêmica em torno da sua escalação, já que a vigilante tem origem asiática, a talentosa atriz norte-americana encarna com maestria a personalidade indomável da protagonista. Indo do drama à ação com enorme naturalidade, Johansson é cuidadosa ao interiorizar a expressão fria, o andar impetuoso e o comportamento deslocado dela, nos fazendo experimentar tanto a sua faceta mais 'bad-ass', como o seu lado mais confuso. Em suma, mais uma magnífica atuação para a sua carreira. Braço direito de Major, o grandalhão Pilou Asbæk desponta como uma das grandes surpresas do longa na pele do interessante Batou. Mesmo com um tempo menor de tela, o ator dinamarquês enche a tela de afeto como o parceiro da policial, criando uma figura 'cool', sincera e convincentemente amistosa. Assim como Asbæk, o japonês Takeshi Kitano esbanja presença ao viver o astuto chefe Aramaki. Com uma abordagem bem particular, o veterano cria uma figura silenciosa e ameaçadora, um personagem crescente que rouba a cena sempre que está nela. O mesmo, aliás, acontece com a experiente Juliette Binoche, impecável como a Drª Oualet. Por mais que o roteiro não tire tanto proveito da dubiedade moral da médica, a atriz francesa consegue tornar crível o amor dela pela sua criação, a conexão entre as duas, culminando num arco maternal que se torna decisivo para a construção do clímax. Por fim, o subestimado Michael Pitt é inventivo ao traduzir o misto de sucateamento e poder do seu Kuze, realçando elementos como as oscilações vocais e a movimentação falha sem esquecer de torna-lo ameaçador aos olhos do público.


No embalo da sintetizada trilha sonora da dupla Clint Mansell e Lorne Balfe, incrível ao resgatar o coral original numa relevante releitura, Ghost in The Shell reverencia o anime numa obra envolvente, reflexiva e esteticamente memorável. Assim como a clássica versão animada de 1995, entretanto, o longa segue um caminho próprio em relação ao mangá de Masamune Shirow, uma abordagem mais abrangente e objetiva sobre temas que raramente frequentam o universo dos blockbusters. No final das contas, porém, está tudo lá. Existencialismo, ética, identidade e a certeza que o perigo não está propriamente na tecnologia, mas naqueles que a utilizam.

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