segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Florence: Quem é essa Mulher?

Desafinada fascinante

Existem várias maneiras de se contar uma mesma história. Um fato que se torna nítido quando assistimos as duas recentes cinebiografias inspiradas na exótica Florence Foster Jenkins, uma "cantora" lírica que fez "sucesso" no início do século XX ao entregar algumas das piores interpretações da música clássica. Em Marguerite, o diretor francês Xavier Giannoli é incisivo ao revelar o peso de uma mentira, flertando constantemente com o sentimento de culpa ao reinterpretar o lado mais trágico e melancólico por trás da jornada desta ingenua figura. Já em Florence: Quem é Essa Mulher?, o diretor Stephen Frears (A Rainha, Philomena) opta reproduzir a trajetória da cantora dentro de um contexto mais agridoce, ressaltando a cumplicidade e o senso de proteção em torno daqueles que a cercavam. Por mais que o longa franco-belga seja mais intimista ao descortinar a personalidade desta figura, a comédia dramática encontra o seu charme na tocante performance do carismático elenco, um timaço capitaneado pela veterana Meryl Streep, impecável ao traduzir a inocência e a devoção musical da sua desafinada personagem. 



Curiosamente, aliás, Stephen Frears emplaca mais uma indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Reconhecido por ser um grande diretor de protagonistas femininas, o realizador britânico já viu seis das suas comandadas conseguirem uma nomeação ao prêmio da Academia. Além de Meryl Streep por Florence: Quem é essa Mulher?, as demais são Glenn Close por Ligações Perigosas (1988), Anjelica Huston por Os Imorais (1990), Judy Dench por Sra. Henderson Apresenta (2005) e Philomena (2013) e Helen Mirren por A Rainha (2006). Uma habilidade que pode ser percebida no seu mais novo longa. Embora Meryl Streep seja uma fantástica atriz, o realizador é sensível ao explorar o misto de comicidade e pureza da sua personagem, impedindo que ela seja transformada numa figura digna de pena ou caricata. Mais do que rir da total falta de talento de Florence, Frears se esforça para entender a personalidade da cantora e a maneira como a solidão, a sua frágil condição clínica e a sua superprotetora relação matrimonial a moldava enquanto mulher. Ainda que não se revele tão intimista quanto Marguerite, o roteiro assinado por Nicholas Martin acerta ao valorizar o lado humano da musicista, o seu bom humor, a sua postura proativa e a sua dedicação musical. Na verdade, Frears parece oferecer uma Florence mais próxima da realidade, mais mundana, um elemento que se perde nas mãos da versão franco-belga.


Em contrapartida, o longa é relapso ao expor as consequências de tamanha superproteção. Diante da uma proposta agridoce, Stephen Frears peca ao não se aprofundar no impacto das mentiras na rotina da cantora, que, devido a sua fortuna e o apreço dos seus amigos mais íntimos, era poupada das críticas e da chacota. Por mais que o argumento mostre categoria ao traduzir com leveza a relação de cumplicidade entre ela e o zeloso St Clair Bayfield, um arco que ganha ingredientes mais intensos dentro do sensível último ato, o diretor britânico é exageradamente sutil ao realçar o sentimento de culpa dos amigos mais próximos e os motivos por trás da omissão da verdade. Embora o carismático Hugh Grant mostre sensibilidade ao revelar a delicada situação do seu personagem, um ator fracassado que se tornou uma espécie de companheiro\marido\empresário da péssima cantora, Frears resume um tema tão complexo a expressões de desconforto e a duas cenas mais contundentes. O realizador, aliás, é igualmente superficial ao arquitetar a relação extraconjugal entre Bayfield e a bela Kathleen (Rebecca Ferguson), um tema inicialmente promissor, mas que é esnobado ao longo da segunda metade da película. Além disso, embora a convencional estrutura narrativa se revele fluída e funcional, Frears se rende a algumas soluções genéricas, pesando a mão ao criar, por exemplo, um dispensável 'mise en scene' dentro do último ato.


Deslizes que, verdade seja dita, são amenizados pela forte veia cômica de Stephen Frears. Impulsionado pela (literalmente) estrondosa performance de Meryl Streep, uma excelente cantora que, aqui, é obrigada a desafinar e berrar de maneira grosseira, o diretor britânico é impecável ao realçar o humor sem apelar para o teor caricatural, criando sequências respeitosas e genuinamente engraçadas. Assim como em Margherite, o primeiro contato de Florence com o seu maestro\pianista é impagável, uma daquelas cenas que faz esta veterana atriz merecer a sua vigésima indicação ao Oscar. Além disso, Frears é habilidoso ao introduzir a divertidíssima relação entre Florence e o pianista Cosmé. Rivalizando com Streep quando o assunto é o tempo de comédia, Simon Helberg, o hilário Howard da série The Big Bang Theory, entrega atuação de sua carreira ao criar um personagem único. Um músico que, com o seu impagável estilo de andar e a suas engraçadíssimas expressões de espanto, se torna um representante do espectador dentro da película. É da relação "cheia de dedos" entre o pianista e a cantora que, aliás, nasce uma das cenas mais intimistas da película, um dos poucos momentos em que Florence parece realmente confortável para expor a sua verdade. 


Contando ainda com a radiante e colorida fotografia de Danny Cohen, magnífica ao capturar o expressivo trabalho da equipe de direção de arte e dos figurinistas, Florence: Quem é essa Mulher? nos oferece um relato simpático sobre uma cantora que não desistiu dos seus sonhos. Por mais que o roteiro se esquive de alguns dos assuntos mais delicados, Stephen Frears é astuto ao construir um longa cativante, uma obra que, ao se encantar pela faceta mais humana da sua protagonista, opta por reproduzir a trajetória dela dentro de um contexto mais otimista e reconfortante. O resultado é um filme que, tal qual a sua protagonista, pode até dar as suas desafinadas, mas que se sustenta no seu enorme carisma e na energia daqueles que o cercam.


OBS: No final das contas, a critério de comparação, Marguerite e Florence: Quem é essa Mulher? se equivalem enquanto o filme. O primeiro, uma reinterpretação mais trágica e profunda, é brilhante ao investigar os anseios da sua protagonista e o sentimento de culpa em torno daqueles que a cercam, mas falha ao arrematar a jornada da cantora sob um prisma pretensioso e exagerado. Já o segundo, por mais que não tenha a mesma densidade narrativa, parece mais próximo da realidade e mais equilibrado narrativamente. Somado a isso, Meryl Streep e Catherine Frot entregam duas performances soberbas, o que só aproxima o nível das películas.

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