Desafinada fascinante
Existem várias maneiras
de se contar uma mesma história. Um fato que se torna nítido quando assistimos
as duas recentes cinebiografias inspiradas na exótica Florence Foster Jenkins,
uma "cantora" lírica que fez "sucesso" no início do século
XX ao entregar algumas das piores interpretações da música clássica. Em
Marguerite, o diretor francês Xavier Giannoli é incisivo ao revelar o peso de
uma mentira, flertando constantemente com o sentimento de culpa ao
reinterpretar o lado mais trágico e melancólico por trás da jornada desta
ingenua figura. Já em Florence: Quem é Essa Mulher?, o diretor Stephen Frears
(A Rainha, Philomena) opta reproduzir a trajetória da cantora dentro de um
contexto mais agridoce, ressaltando a cumplicidade e o senso de proteção em
torno daqueles que a cercavam. Por mais que o longa franco-belga seja mais
intimista ao descortinar a personalidade desta figura, a comédia dramática
encontra o seu charme na tocante performance do carismático elenco, um timaço
capitaneado pela veterana Meryl Streep, impecável ao traduzir a inocência e a
devoção musical da sua desafinada personagem.
Curiosamente, aliás,
Stephen Frears emplaca mais uma indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Reconhecido
por ser um grande diretor de protagonistas femininas, o realizador britânico já
viu seis das suas comandadas conseguirem uma nomeação ao prêmio da Academia.
Além de Meryl Streep por Florence: Quem é essa Mulher?, as demais são Glenn
Close por Ligações Perigosas (1988), Anjelica Huston por Os Imorais (1990),
Judy Dench por Sra. Henderson Apresenta (2005) e Philomena (2013) e Helen
Mirren por A Rainha (2006). Uma habilidade que pode ser percebida no seu mais
novo longa. Embora Meryl Streep seja uma fantástica atriz, o realizador é
sensível ao explorar o misto de comicidade e pureza da sua personagem,
impedindo que ela seja transformada numa figura digna de pena ou caricata. Mais
do que rir da total falta de talento de Florence, Frears se esforça para
entender a personalidade da cantora e a maneira como a solidão, a sua frágil
condição clínica e a sua superprotetora relação matrimonial a moldava enquanto
mulher. Ainda que não se revele tão intimista quanto Marguerite, o roteiro
assinado por Nicholas Martin acerta ao valorizar o lado humano da musicista, o
seu bom humor, a sua postura proativa e a sua dedicação musical. Na verdade,
Frears parece oferecer uma Florence mais próxima da realidade, mais mundana, um
elemento que se perde nas mãos da versão franco-belga.
Em contrapartida, o longa
é relapso ao expor as consequências de tamanha superproteção. Diante da uma
proposta agridoce, Stephen Frears peca ao não se aprofundar no impacto das
mentiras na rotina da cantora, que, devido a sua fortuna e o apreço dos seus
amigos mais íntimos, era poupada das críticas e da chacota. Por mais que o
argumento mostre categoria ao traduzir com leveza a relação de cumplicidade
entre ela e o zeloso St Clair Bayfield, um arco que ganha ingredientes mais
intensos dentro do sensível último ato, o diretor britânico é exageradamente
sutil ao realçar o sentimento de culpa dos amigos mais próximos e os motivos
por trás da omissão da verdade. Embora o carismático Hugh Grant mostre
sensibilidade ao revelar a delicada situação do seu personagem, um ator
fracassado que se tornou uma espécie de companheiro\marido\empresário da
péssima cantora, Frears resume um tema tão complexo a expressões de desconforto
e a duas cenas mais contundentes. O realizador, aliás, é igualmente superficial
ao arquitetar a relação extraconjugal entre Bayfield e a bela Kathleen (Rebecca
Ferguson), um tema inicialmente promissor, mas que é esnobado ao longo da
segunda metade da película. Além disso, embora a convencional estrutura
narrativa se revele fluída e funcional, Frears se rende a algumas soluções
genéricas, pesando a mão ao criar, por exemplo, um dispensável 'mise en scene'
dentro do último ato.
Deslizes que, verdade
seja dita, são amenizados pela forte veia cômica de Stephen Frears. Impulsionado
pela (literalmente) estrondosa performance de Meryl Streep, uma excelente
cantora que, aqui, é obrigada a desafinar e berrar de maneira grosseira, o
diretor britânico é impecável ao realçar o humor sem apelar para o teor
caricatural, criando sequências respeitosas e genuinamente engraçadas. Assim
como em Margherite, o primeiro contato de Florence com o seu maestro\pianista é
impagável, uma daquelas cenas que faz esta veterana atriz merecer a sua
vigésima indicação ao Oscar. Além disso, Frears é habilidoso ao introduzir a
divertidíssima relação entre Florence e o pianista Cosmé. Rivalizando com
Streep quando o assunto é o tempo de comédia, Simon Helberg, o hilário Howard
da série The Big Bang Theory, entrega atuação de sua carreira ao criar um
personagem único. Um músico que, com o seu impagável estilo de andar e a suas
engraçadíssimas expressões de espanto, se torna um representante do espectador
dentro da película. É da relação "cheia de dedos" entre o pianista e
a cantora que, aliás, nasce uma das cenas mais intimistas da película, um dos
poucos momentos em que Florence parece realmente confortável para expor a sua
verdade.
Contando ainda com a
radiante e colorida fotografia de Danny Cohen, magnífica ao capturar o
expressivo trabalho da equipe de direção de arte e dos figurinistas, Florence:
Quem é essa Mulher? nos oferece um relato simpático sobre uma cantora que não
desistiu dos seus sonhos. Por mais que o roteiro se esquive de alguns dos
assuntos mais delicados, Stephen Frears é astuto ao construir um longa
cativante, uma obra que, ao se encantar pela faceta mais humana da sua
protagonista, opta por reproduzir a trajetória dela dentro de um contexto mais
otimista e reconfortante. O resultado é um filme que, tal qual a sua
protagonista, pode até dar as suas desafinadas, mas que se sustenta no seu
enorme carisma e na energia daqueles que o cercam.
OBS: No final das contas,
a critério de comparação, Marguerite e Florence: Quem é essa Mulher? se
equivalem enquanto o filme. O primeiro, uma reinterpretação mais trágica e
profunda, é brilhante ao investigar os anseios da sua protagonista e o
sentimento de culpa em torno daqueles que a cercam, mas falha ao arrematar a
jornada da cantora sob um prisma pretensioso e exagerado. Já o segundo, por
mais que não tenha a mesma densidade narrativa, parece mais próximo da
realidade e mais equilibrado narrativamente. Somado a isso, Meryl Streep e
Catherine Frot entregam duas performances soberbas, o que só aproxima o nível
das películas.
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