terça-feira, 31 de maio de 2016

Do Fundo do Baú (Aurora)

Uma verdadeira pérola do cinema mudo, Aurora (1927) resume em sua essência o poder da sétima arte. Dirigido por um dos "porta vozes" do Expressionismo Alemão, o aclamado  F.W. Murnau (Nosferatu), o longa provoca os sentimentos do espectador ao acompanhar as desventuras de um casal atormentado pelo fantasma da traição. Numa virtuosa mistura de gêneros, o realizador germânico brinca com as nossas expectativas ao construir uma história ora sufocante, ora acolhedora, permitindo que o público experimente com absoluta intensidade o turbilhão de emoções enfrentado pelos protagonistas. O resultado é uma obra marcada por sequências poderosas, por pioneiros recursos estéticos e pelas primorosas atuações da dupla Janet Gaynor e George O'Brien.

Inspirado no conto Viagem a Tilsit, do escritor Hermann Sudermann, o argumento assinado por Carl Mayer adota uma abordagem poética ao discutir o impacto da infidelidade na rotina de um jovem casal. Numa proposta humana e original, o roteiro disseca as emoções dos dois personagens com absurda honestidade, tornando as suas ações e reações naturalmente instigantes aos olhos do público. Na trama, durante as férias de verão, um fazendeiro casado (O'Brien) se apaixona perdidamente por uma moça da cidade (Margaret Livingston, impecável). Completamente envolvido pelo charme da amante, ele é colocado contra a parede quando ela sugere um plano abominável envolvendo a sua adorável esposa (Gaynor). Torturado por esta nociva relação, o errático marido resolve dar início a este nefasto esquema, sem saber o quão surpreendentes seriam as consequências das suas atitudes. 

                           

Por mais que o estopim da trama seja um tanto quanto drástico, F.W. Murnau mostra completo domínio sobre os gêneros cinematográficos ao dar corpo a este multifacetado relato. Numa mistura memorável, o diretor vai do suspense psicológico ao romance com precisão cirúrgica, desvendando com rara categoria o impacto da traição na relação do casal. Sem querer revelar muito, o argumento esbanja humanidade ao traduzir as emoções dos protagonistas, permitindo que o espectador não só crie um forte vínculo com eles, como também experimente a dor, a repulsa, a doçura e o amor por trás desta relação. Melhor ainda, no entanto, é a maneira ritmada com que Murnau passeia por estas variadas situações. O realizador dá uma verdadeira aula no que diz respeito a montagem, ampliando a atmosfera de tensão ao construir uma série de sequências angustiantes e absolutamente harmoniosas. Com destaque para a intimista cena da Igreja e para o catártico clímax. 


Além disso, no seu primeiro trabalho em Hollywood, F. W. Murnau absorve alguns dos mais característicos elementos do movimento expressionista, criando imagens naturalmente poderosas ao fazer um primoroso uso da iluminação, dos enquadramentos milimetricamente calculados e de alguns impressionantes efeitos visuais. Por diversas vezes, inclusive, o realizador alemão surpreende ao investir no advento da fusão de imagens, incrementando a narrativa ao tornar os anseios dos personagens visualmente acessíveis ao público. Desta forma, no momento em que a amante tenta convencer o fazendeiro do seu plano, por exemplo, surgem imagens de uma agitada metrópole, numa espécie de vislumbre do que o aguardava caso o seu casamento chegasse ao fim. Um elemento simbólico e impactante, utilizado com absurda perícia ao longo da película. 


A maioria destes recursos estéticos, no entanto, só servem de alicerce para as fantásticas atuações de Janet Gaynor e George O'Brien. Em duas performances expressivas, o casal absorve com intensidade as nuances dos seus respectivos personagens, nos fazendo crer na sucessão de situações enfrentadas pelos dois. Entre o odiável e o arrependido, O'Brien testa as expectativas do público ao traduzir a instabilidade do marido, mostrando versatilidade ao criar um tipo complexo e imprevisível. Uma figura em constante mudança. Já Gaynor é o coração desta película. Dona de um carisma impressionante, a atriz esbanja delicadeza ao humanizar os sentimentos da sua personagem, criando um vínculo instantâneo com o público. Sem medo de errar, poucas vezes eu vi a tristeza tão bem retratada num filme como na cena em que a zelosa esposa percebe que o companheiro abandonou a mesa à véspera do jantar. Nesse sentido, aliás, é preciso elogiar a maneira com que Murnau captura a fisicalidade dos protagonistas, os seus gestos e postura, se distanciando do exagero cênico do cinema mudo ao construir esta história de amor e redescobertas. 


Embalado pela revolucionária trilha sonora do compositor Hugo Riesenfeld, que transita entre os gêneros com absoluta maestria, Aurora é uma obra completa. A perfeita união entre imagem e narrativa. Mesmo limitado pela ausência da fala, F.W. Murnau dialoga com o publico ao investigar a crise deste casal numa obra tensa, poética e inesperadamente bela. Um trabalho à frente do seu tempo que merece carregar consigo o rótulo de clássico da sétima arte. 

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