sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A Travessia

De um artista das ruas para um artista da sétima arte

Acostumado a exaltar os extraordinários feitos de pessoas comuns, Robert Zemeckis redefine o termo "andar na corda bamba" no fantástico drama A Travessia. Mestre na arte dos efeitos especiais, o realizador experimenta níveis de realismo poucas vezes visto no cinema ao reproduzir as proezas do arrojado equilibrista francês Philippe Petit. Indo bem além dos sufocantes recursos visuais, o vertiginoso último ato é completamente desaconselhado para os espectadores com medo de altura, Zemeckis demonstra enorme interesse pela jornada do seu protagonista. Através de uma narrativa ágil e absolutamente humana, o longa parece não se contentar em valorizar somente a tão celebrada travessia, encontrando na inspirada atuação de Joseph Gordon-Levitt o talento necessário para revelar o misto de sonho e obsessão que levou o acrobata a cruzar as torres do World Trade Center caminhando apenas sobre um cabo de aço.


E tal qual um convidativo show de rua, o argumento assinado pelo próprio diretor, ao lado de Christopher Browne, faz do protagonista uma espécie de mestre de cerimônias da sua própria história. Do alto da Estatua da Liberdade, com o WTC sempre ao fundo, Phillipe dialoga diretamente com o espectador, narrando não só os bastidores da sua incrível realização, mas também passagens adoravelmente lúdicas da sua infância e juventude. Retirados do livro 'To Reach the Clouds', escrito pelo próprio Petit, os relatos se integram organicamente à trama, mesmo se excedendo aqui ou ali, revelando um pouco da intimidade e dos sentimentos do equilibrista ao longo do seu maior feito. Apesar do nítido encantamento pelo obstinado artista francês, Zemeckis faz questão de evidenciar as mais diferentes nuances do seu humano "herói", mostrando tanto o seu lado mais carismático e visionário, quanto a sua personalidade geniosa e obsessiva. Variação emocional capturada com intensidade por Gordon-Levitt, que - esbanjando um francês afiado - injeta energia ao seu personagem. Adotando com fluidez as fórmulas dos "filmes de assalto", o longa cresce absurdamente à medida que se aproxima do "grande truque" de Phillipe Petit, explorando com rara inspiração a dinâmica do grupo em torno desta perigosa e completamente clandestina operação. Um recorte tão esperto e tenso que ameniza até mesmo alguns dos deslizes da trama, como a acelerada introdução dos amigos Jean-Louis (Clément Sibony) e Jeff (César Domboy) e a subestimada figura do mentor interpretada pelo competente Ben Kinglsey. 


Por outro lado, ainda que a relação de afeto entre Phillipe e a charmosa Annie (numa atuação cativante de Charlotte Le Bon) seja bem desenvolvida, tirando um baita proveito da atmosfera setentista recriada pela direção de arte, o principal trunfo do argumento fica pela incrível conexão entre equilibrista e World Trade Center. Zemeckis faz do arranha-céu um poderoso personagem, um imponente "rival" que se torna a principal motivação do artista de rua. A sequência em que o francês, oprimido ao se deparar com o tamanho das torres, sobe ao topo e resolve aceitar o "desafio" é magnífica. Nada, porém, se compara ao assombroso último ato, quando Robert Zemeckis mostra porque se tornou uma referência na produção de efeitos visuais. Levando o espectador para o alto do WTC, o diretor norte-americano nos convida a provar um pouco da vertiginosa sensação experimentada pelo acrobata durante a sua angustiante travessia. Com o apoio luxuoso da iluminada fotografia de Dariusz Wolski, que repete o impecável trabalho apresentado no recente Perdido em Marte, Zemeckis constrói um clímax magistral e absolutamente realista, tornando os passos de Phillipe quase torturantes para o seu público. Explorando com perícia as noções de profundidade e altura, elementos potencializados pelo excepcional 3-D, o realizador entrega cenas eletrizantes, daquelas difíceis de se traduzir em palavras. Numa delas, no ápice da tensão, a câmera de Zemeckis simula uma assustadora queda livre, ligando o equilibrista aos transeuntes de maneira genial. Aliando tecnologia à emoção, fato recorrente em sua elogiada filmografia, o "pai" da trilogia De Volta para o Futuro é igualmente afiado ao construir as sequências mais amenas. Com destaque para os singelos e criativos takes em PB, que pontuam as lúdicas apresentações de Phillipe durante o envolvente primeiro ato.


Por fim, numa aula de sutileza (e porque não de cinema), A Travessia deixa uma tocante mensagem de pesar ao lembrar do trágico desfecho envolvendo duas das grandes protagonistas por trás do extraordinário feito deste homem comum. Por um par de horas, num singelo tributo a memória do World Trade Center, Robert Zemeckis consegue desassociar do arranha-céu a imagem de dor e destruição, reconstruindo com maestria tecnológica e enorme zelo o palco maior da grande obra de arte da carreira de um sonhador equilibrista francês. A cereja no bolo deste fantástico relato, capaz de reproduzir com extremo realismo a vertiginosa jornada de um artista de rua que - literalmente - decidiu viver na "corda bamba". Uma realização que impressiona ao deixar até o espectador mais experimentado perplexo, agoniado e admirado.

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