O primeiro diálogo até deixa uma impressão errada. Nele, o paulista Caio Blat tenta mostrar a qualquer custo a "carioquês" do seu personagem, repetindo de maneira forçada uma série de populares expressões do linguajar carioca. Apesar do susto inicial, no entanto, Ponte Aérea nem de longe se resume a este jogo de estereótipos, indo além das previsibilidades ao construir uma relação densa e extremamente particular entre um carioca despojado e uma paulista viciada em trabalho. Conduzido com estilo pela diretora Júlia Rezende, que demonstra um impressionante amadurecimento artístico após o divertido Meu Passado me Condena, este bem humorado romance conquista não só pela invejável química do casal Caio Blat (Entre Nós) e Letícia Colin (Não Pare na Pista), mas também pela caprichada direção de arte e pelo qualificado argumento.
Fugindo do tom caricatural ao explorar as diferenças culturais entre cariocas e paulistas, o roteiro assinado por Julia Rezende e L.G. Bayão (Irmã Dulce) se mostra refinado ao utilizar esses rótulos em prol de questões mais profundas. Procurando dar uma nova roupagem ao velho chavão dos "opostos se atraem", a trama utiliza esta curiosa relação como um cativante ponto de partida para discutir questões bem mais complexas. Através de diálogos ora reflexivos, ora ironicamente sutis, somos apresentados aos carismáticos Bruno (Blat) e Amanda (Colin). Enquanto ele, um talentoso pintor, leva uma vida despreocupada e simples no Rio de Janeiro, ela, uma publicitária de sucesso, é uma "workaholic de carteirinha" que sabe bem o que quer para o seu futuro. O destino, sempre ele, trata de unir os dois quando uma ponte aérea para São Paulo acaba transferida para Minas Gerais em função do mau tempo. Solitários em um hotel, os dois vão de um rápido flerte a uma intensa e aparentemente isolada noite de amor. Os reflexos deste encontro, porém, logo passam a ecoar nas cabeças de Bruno e Amanda. Dispostos a dar uma chance pra esta improvável relação, os dois decidem seguir se encontrando, num caso de amor em que os 430 km de distância entre RJ e SP será o menor dos problemas.
Ainda que inicialmente o romance recorra a clichês do tipo amor à primeira vista, Amanda não pensa duas vezes ao abrir as portas de seu apartamento para um quase desconhecido, o argumento gradativamente vai deixando de lado esta aura utópica para se concentrar nas nuances comportamentais destes dois personagens. Sem se prender exclusivamente as idas e vindas do casal, o roteiro atrai o espectador ao se aprofundar no desenvolvimento desta relação, ressaltando as falhas, as inseguranças e os traumas presentes nas vidas de Bruno e Amanda. Na verdade, durante a afetuosa construção deste romance, a trama abre um interessante espaço para a discussão de temas mais robustos, levantando questões inesperadas envolvendo a ausência paterna, a imaturidade e a falta de comprometimento. Além disso, apesar da história flertar com algumas soluções mais previsíveis, a jovem diretora demonstra categoria ao explorar as bem sucedidas pitadas de humor, brincando de maneira perspicaz com os estereótipos de cariocas e paulistas. Se esquivando completamente das rivalidades baratas, a realizadora enfatiza o melhor destes dois mundos, rindo com naturalidade e originalidade das incompatibilidades culturais entre estas duas cidades.
Diferenças que, diga-se de passagem, não se resumem ao aspecto textual. Com uma visual de causar inveja ao cinema 'indie' hollywoodiano, Julia Rezende se apoia na detalhista direção de arte para construir a essência destes dois personagens. Enquanto a presença de Bruno trás cores aos cenários, com uma casa mais aconchegante e suas roupas informais, Amanda representa o aspecto mais social do paulista, com um 'apê' mais classudo e os seus trajes geralmente escuros. Melhor, aliás, é a maneira com que a realizadora explora as formas destas duas cidades, as destacando sob a perspectiva inversa. Nesse sentido, se aos olhos de uma atarefada paulista as belezas naturais do RJ se tornam uma espécie de oásis, para um tranquilo carioca o clima cinzento e a vastidão de SP parecem querer engoli-lo. Se apoiando na expressiva fotografia de Dante Belucci, que compõe este dualismo de maneira extraordinária, a realizadora é igualmente madura ao traduzir a emoções do casal, trabalhando com takes mais longos e intimistas. Através de soluções realmente criativas, Julia valoriza não só as singelas sequências, com destaque para a embaçada cena de amor no chuveiro, como também as situações mais cruas e intensas. Num delas, sem dúvida um dos pontos altos do longa, a jovem diretora desfila o seu talento ao capturar o turbilhão de emoções dos personagens após Bruno receber uma péssima notícia. Méritos que, necessariamente, precisam ser divididos com a eclética e complementar trilha-sonora. Indo do 'indie rock' à Bossa Nova, o inspirado repertório é fundamental para a concepção desta atmosfera ora popular, ora cult.
E como se não bastasse o bom gosto estético, o qualificado elenco é digno dos melhores elogios. Dando vida ao vibrante Bruno, o paulista Caio Blat é brilhante ao capturar a "alma carioca". Indo bem além dos detalhes verbais e das expressões populares, o competente ator tira um belo proveito da magnífica riqueza de detalhes do seu personagem, impressionando tanto nos momentos mais bem humorados, como também nas cenas mais fortes. Se Blat exibe o seu reconhecido talento, a principal surpresa do longa fica pela estonteante presença de Letícia Colin. Trazendo no currículo uma série de trabalhos voltados para a TV, a atriz impressiona por sua beleza altamente magnética, mostrando energia ao viver uma mulher independente e atual. Revelando uma latente intimidade com Blat, o que fica nítido nos takes mais "quentes", Colin conquista o espectador ao explorar com primor as transformações de sua personagem, num equilíbrio pleno entre a frieza descompromissada e a paixão avassaladora. Assim como o casal, o elenco de apoio também chama a atenção, com destaque para o divertido Silvio Guindane (Bróder), que rouba a cena como um interessante alívio cômico, e para o veterano dos teatros Sylvio Zilber, numa pontual e marcante presença.
Seguindo um caminho aberto por longas como Encontros e Desencontros (2003), 500 Dias com Ela (2009) e o recente Os Dois Lados do Amor (2014), Ponte Aérea exala personalidade ao ressaltar a disfuncionalidade de uma relação nada convencional. Recorrendo a reconhecida rivalidade cultural entre RJ e SP, a habilidosa Júlia Rezende é extremamente eficaz ao construir um romance com cara de filme pipoca, mas com alma de cinema autoral. Um oásis de vigor em meio ao deserto de qualidade presente em boa parte dos blockbusters nacionais.
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