Esqueça o velho arquétipo da 'femme fatale', um rótulo frequentemente associado ao protagonismo feminino nos tradicionais filmes de espionagem. Em Atômica, a talentosa Charlize Theron se insurge contra o estigma do sexo frágil ao colocar a "mão na massa" e dar vida a uma agente letal de fazer inveja à qualquer Jason Bourne da vida. Sob a estilizada batuta do promissor David Leitch, no seu primeiro filme solo após o bem sucedido De Volta ao Jogo (2014), a atriz sul-africana se despe de qualquer vaidade ao criar uma personagem naturalmente 'badass', uma figura implacável capaz de estrelar algumas das melhores sequências de ação do ano com ferocidade e um impressionante realismo. Nitidamente hipnotizado pelo magnetismo da sua protagonista, Leitch valoriza a entrega física de Theron ao construir um engenhoso 'mise en scene', realçando a aptidão dela dentro do gênero em cenas audaciosas, viscerais e brilhantemente orquestradas. Nem só de virtuosismo técnico, porém, vive Atômica. Embora o "apenas" competente roteiro não esteja à altura do visual da película, o diretor norte-americano mostra maturidade ao transitar entre os gêneros, equilibrando ação e espionagem num longa insinuante, sagaz e suficientemente envolvente. Uma obra pop e imagética que tem todos os ingredientes necessários para se tornar referência dentro de um segmento cada vez mais diversificado.
O primeiro grande trunfo de Atômica, aliás, fica pelo esmero do longa em tornar convincente a presença feminina dentro de um violento universo. Mais do que simplesmente reforçar a habilidade da protagonista nos agressivos combates, o que fica claro, diga-se de passagem, já no primeiro ato na magnífica sequência do apartamento, David Leitch se preocupa em criar uma agente secreta independente e humana, uma personagem com nuances sólidas que em nenhum momento soa oca e\ou brutalizada. Não espere, portanto, uma figura masculinizada do tipo Ellen Ripley de Aliens: O Resgate ou Sarah Connor de O Exterminador do Futuro 2. Inspirado por nomes como o do francês Luc Besson (Nikita, O Quinto Elemento, Lucy), ainda hoje uma referência quando o assunto são os filmes de ação estrelados por mulheres, o diretor consegue exaltar a feminilidade da espiã sem apelar para o sexismo e para a banalização da beleza. Nas entrelinhas, inclusive, o roteiro é perspicaz ao flertar com os mais enraizados clichês envolvendo o 'sex appeal' dentro do segmento, evitando distinguir o moderno do tradicional, o feminino do masculino. Até porque, independente do gênero, o charme sempre foi um elemento decisivo em qualquer filme de espionagem que se preze. Com uma personagem tão bem estabelecida em mãos, Leitch nos leva de volta para os anos oitenta ao acompanhar os passos da respeitada Lorraine Broughton (Theron), uma agente do MI6 recrutada às pressas após o roubo de uma lista contendo a identidade de alguns dos mais perigosos espiões da trinca Inglaterra, União Soviética e Estados Unidos. Sem tempo a perder, ela desembarca numa efervescente Berlim em busca de respostas, contando apenas com o suporte do espião britânico David Percival (James McAvoy). Desconfiando de tudo e de todos, Lorraine não demora muito a entrar na rota de mira dos soviéticos, principalmente quando o nome de um procurado agente duplo surge como uma sorrateira ameaça.
Inspirado na graphic novel "The Coldest City", da dupla Antony Johnston e Sam Hart, o roteiro assinado por Kurt Johnstad se esforça na tentativa de explorar o melhor dos filmes de ação e espionagem. Embora a premissa em si não se revele tão inovadora ou instigante assim, o que explica, inclusive, a nítida queda de ritmo dentro do verborrágico segundo ato, David Leitch é cuidadoso ao introduzir a personalidade dos espiões, ao desenvolver a tênue relação entre eles, elevando o nível do requentado argumento ao realçar não só a amoralidade presente neste universo, como também o incessante clima de desconfiança entre os personagens. Uma opção, diga-se de passagem, incrementada pelo inventivo uso da narrativa não linear. Dividida em duas linhas temporais distintas, a ação, aqui, está no passado e é narrada por Lorraine para os seus superiores, os agentes do MI6 Eric Gray (Toby Jones) e do FBI Emmett Kurzfeld (John Goodman). Numa sacada perspicaz, entretanto, Leitch interliga os fatos com fluidez e ironia, testando as nossas expectativas ao acrescentar informações que nem sempre batem com o depoimento da espiã no tempo presente. Sem querer revelar muito, além de sugerir pistas, plantar dúvidas e expor as incoerências no depoimento de Lorraine, o diretor é astuto ao proteger os segredos em torno da identidade do agente duplo, preparando um insinuante terreno até o catártico último ato. Antes disso, porém, Leitch é igualmente habilidoso ao trazer o elemento humano para o centro da trama, um arco dramático envolvendo um militar soviético (Eddie Marsan) perseguido pelos seus superiores, encontrando as brechas necessárias para pisar no acelerador, adicionar um bem-vindo senso de urgência e abraçar de vez o frenesi do cinema de ação.
É aqui, aliás, que Atômica verdadeiramente sobra na turma. Impecável ao estabelecer a atmosfera de perigo iminente, um elemento potencializado pelo realístico trabalho da equipe de direção de arte, pelos cenários naturalmente habitáveis e pela gélida fotografia externa de Johnathan Sela, David Leitch exibe a sua estilosa assinatura ao reforçar o aspecto pop da película. Num mistura vigorosa, o realizador é virtuoso ao explorar os contrastes entre a explosão de cores do lado ocidental e a frieza decadente do lado oriental, um dualismo estético transformado num poderoso elemento cênico. De longe o maior predicado da película, as viscerais sequências de ação, por exemplo, em sua maioria se passam neste ambiente degradado. Com uma crueza realmente rara dentro do gênero, Leitch nos brinda com um 'mise en scene' dinâmico e absolutamente crível, cenas tensas potencializadas pela impressionante entrega física de Charlize Theron, pelas engenhosas coreografias de luta e pelo incrível trabalho da equipe de maquiagem. A atriz, inclusive, quebrou dois dentes durante o treinamento para os takes de luta, o que explica o grau de verossimilhança proposto pelo longa.
Trazendo no currículo a experiência como ex-dublê, David Leitch espanta ao investir em primorosos planos sequências, dando à Charlize Theron a liberdade necessária para que ela pudesse tornar os confrontos o mais críveis possível. Com a sua imersiva câmera na mão, o diretor coloca o espectador no centro da ação ao investir em enquadramentos abertos, numa transição fluída e num reduzido números de cortes, realçando não só o caos em torno dos violentos embates corporais, como também a movimentação dos atores e a interação deles com os elementos cênicos. No "balé" proposto por ele, os personagens não são meros robôs que simplesmente "desligam" ao serem nocauteados. Os (a) espiões (a) sentem os golpes, se cansam em combate, lutam pela sua sobrevivência, batem como poucos e apanham como ninguém, um processo de deterioração capturado com maestria pelas lentes de Leitch. Além disso, o realizador amplia a escala de tensão ao valorizar o senso de simultaneidade, o improviso, a fúria entre os agentes, o que fica bem claro na insana sequência da escadaria, uma das melhores e mais impactantes da história recente do gênero. Detalhe para o refinado desenho de som, magnífico ao traduzir o barulho dos golpes, o quebrar de objetos e o ruído dos tiros num dos poucos momentos em que o realizador abre mão do setlist oitentista.
Trazendo no currículo a experiência como ex-dublê, David Leitch espanta ao investir em primorosos planos sequências, dando à Charlize Theron a liberdade necessária para que ela pudesse tornar os confrontos o mais críveis possível. Com a sua imersiva câmera na mão, o diretor coloca o espectador no centro da ação ao investir em enquadramentos abertos, numa transição fluída e num reduzido números de cortes, realçando não só o caos em torno dos violentos embates corporais, como também a movimentação dos atores e a interação deles com os elementos cênicos. No "balé" proposto por ele, os personagens não são meros robôs que simplesmente "desligam" ao serem nocauteados. Os (a) espiões (a) sentem os golpes, se cansam em combate, lutam pela sua sobrevivência, batem como poucos e apanham como ninguém, um processo de deterioração capturado com maestria pelas lentes de Leitch. Além disso, o realizador amplia a escala de tensão ao valorizar o senso de simultaneidade, o improviso, a fúria entre os agentes, o que fica bem claro na insana sequência da escadaria, uma das melhores e mais impactantes da história recente do gênero. Detalhe para o refinado desenho de som, magnífico ao traduzir o barulho dos golpes, o quebrar de objetos e o ruído dos tiros num dos poucos momentos em que o realizador abre mão do setlist oitentista.
Nem só de pancadaria, porém, vive Atômica. Sem medo de soar pretensioso, David Leitch investe em audaciosos movimentos de câmera, indo de encontro à "liberdade" proposta nas cenas de ação ao criar sequências memoráveis e milimetricamente esquematizadas. Por diversas vezes, inclusive, ele se arrisca a mudar o eixo dos planos, ao transitar do horizontal para o vertical com extremo requinte, um recurso ambicioso que se torna decisivo para a construção de momentos como a nervosa perseguição pelas ruas da Alemanha Oriental. Outro ponto que agrada, e muito, é a delicadeza do realizador ao utilizar a iluminação cênica na composição do quadro. Assim como em De Volta ao Jogo, ele faz um estiloso uso do neon, mais precisamente das cores azul, lilás, vermelho e branco, ressaltando o potencial imagético da Loira Atômica em planos fechados, expressivos e naturalmente hipnotizantes. Um encantamento justificado, principalmente quando nos deparamos com a fantástica performance de Charlize Theron. Após encarnar a indomável Furiosa em Mad Max: Estrada da Fúria, a atriz sul-africana adiciona mais uma personagem de peso a sua filmografia, uma espiã inabalável, misteriosa, mas vulnerável, uma mulher que teme e é temida. Com uma extraordinária presença física, ela brilha como poucas nos implacáveis takes de ação, dando a Leitch o retorno necessário para a construção dos arrebatadores combates. São nos momentos mais íntimos, porém, que Theron exibe a sua reconhecida versatilidade, absorvendo o misto de ferocidade, humanidade e frieza da sua Lorraine sem precisar dizer muitas palavras. O seu olhar, na verdade, é eloquente o bastante para sintetizar as suas mais reprimidas emoções. No mesmo nível da sua parceira de cena, o talentoso James McAvoy interioriza a amoralidade do seu Percival com extrema desenvoltura, criando um tipo urbano, dúbio e astuto. Uma figura moderna e cerebral que surge como um interessante contraponto a presença da agente. Num todo, aliás, o sólido elenco cumpre as suas respectivas funções com louvor, com destaque para a sexy Sofia Boutella, para o magnético Bill Skarsgård (o seu Pennywise promete), para o sempre carismático John Goodman e para o comovente Eddie Marsan.
Fazendo ainda um criativo uso do som diegético, a descolada trilha sonora recheada de hits do synthpop frequentemente nasce da própria cena, vide o inesperado uso da balada Father Figure, do saudoso George Michael, numa agressiva sequência de ação, Atômica empolga ao equilibrar ação e espionagem num longa com uma forte veia pop oitentista. Embora esbarre em alguns deslizes narrativos, a maioria deles envolvendo a queda de ritmo do segundo ato, a simplicidade do texto, o desleixo quanto ao pano de fundo histórico e a falta de profundidade na relação entre Lorraine e a agente Lasalle, David Leitch se firma de vez como um nome a ser observado (Deadpool 2 parece estar em ótimas mãos) ao entregar um filme dinâmico, corajoso e inquestionavelmente igualitário. Uma obra autêntica que, impulsionada pela estrondosa presença de Charlize Theron, figura entre as mais estilosas e enérgicas do ano. E como é recompensador, em meio ao emaranhado de blockbusters pasteurizados, ver o nascimento de títulos como La La Land, John Wick 2, Em Ritmo de Fuga, Okja, Bingo: O Rei das Manhãs e agora Atômica, uma nova safra de filmes que, mesmo sem renegar a sua veia pipoca, exibem um refinamento estético de fazer inveja a qualquer grande produção.
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