A opressão de uma burca
Imersivo enquanto suspense, Sob as Sombras se revela uma inspirada
alegoria sobre o papel da mulher dentro da conservadora sociedade iraniana. Sob
um ponto de vista particular, o longa dirigido por Babak Anvari é genial ao
tecer um comentário crítico em torno da castradora realidade feminina, fazendo
um primoroso uso dos simbolismos ao construir uma película tensa, ambígua e
instigante. Embora o forte teor questionador seja o grande diferencial desta
produção, o virtuoso realizador iraniano é igualmente habilidoso no que diz
respeito ao fator entretenimento, cumprindo os pré-requisitos mais básicos do
gênero ao nos brindar com um roteiro sólido, duas marcantes protagonistas e uma
construção de atmosfera naturalmente assustadora.
Inserido num cenário bem específico, a guerra entre o Irã e o Iraque logo após o término da Revolução Iraniana, o argumento assinado pelo próprio Baba Anvari exige que o espectador tenha o mínimo de conhecimento sobre o contexto sociopolítico apresentado no longa. Por mais que o argumento seja objetivo ao realçar a falta de liberdade feminina e a imposição dos costumes mais rigorosos quanto aos trajes e o estilo de vida ocidental, é interessante entender que a trama se passa no início do governo do aiatolá Khomeini, uma autoridade religiosa xiita que assumiu o comando do país após a deposição do Xá Reza Pahlavi. Indo de encontro à postura liberal do seu antecessor, um homem ligado as potenciais ocidentais, o novo líder instaurou um tradicional regime Islâmico, se insurgindo contra os hábitos mais modernos presentes na antiga sociedade iraniana.
Em busca do seu lugar dentro deste ambiente transitório, a independente
Shideh (Narges Rashidi) só queria retomar a sua faculdade de medicina. Mãe da
pequena Dorsa (Avin Manshadi), a jovem mulher insistiu enquanto pôde, mas o seu
passado ligada a movimentos de esquerda no período pré-revolução a impedia de
concretizar o seu sonho. Tratada com condescendência pelo marido, o bem
sucedido médico Iraj (Bobby Naderi), ela então se vê presa a sua rotina
materna, uma realidade frustrante para quem parecia ter um futuro brilhante
pela frente. A sua situação, porém, ganha contornos ainda mais incômodos no
momento em que o seu esposo é convocado para a guerra. Em meio à ameaça de
bombas, a agora solitária Shideh se depara com uma situação totalmente nova no
momento em que a boneca da sua pequena filha desaparece, levando a criança a
acreditar que o objeto teria sido roubado por criaturas espirituais. Inicialmente
incrédula, Shideh se depara com misteriosos episódios dentro do seu
apartamento, colocando o seu racionalismo em cheque ao perceber que esta ameaça
pode parecer mais real do que ela esperava.
Com um argumento recheado de camadas, Baba Anvari esbanja inspiração ao
manter o senso de ambiguidade em torno desta premissa. Mesmo nos momentos
aparentemente mais assustadores, é possível encontrar uma explicação plausível
para tais episódios, um elemento que só amplia o teor alegórico em torno da trama.
Se pararmos para analisar, Sob as Sombras pode ser compreendido de três formas
distintas. Numa interpretação mais óbvia, temos um tradicional suspense de
sobrevivência, uma história de amor entre mãe e filha diante de uma perigosa
ameaça espiritual. Um filme redondo, assustador e sucinto. Já numa análise mais
intimista, o longa se revela um precioso estudo de personagem, expondo a
deterioração da protagonista dentro de um contexto mais psíquico e emocional.
Ao longo da trama, inclusive, o realizador é particularmente cuidadoso ao
estabelecer os anseios e frustrações de Shideh, uma mãe moderna, assustada com
a guerra, que se vê obrigada a esconder os seus sonhos dentro de uma gaveta.
É no contexto questionador, porém, que Sob as Sombras ganha a sua faceta
mais genial. Numa opção perspicaz, o realizador leva a sua trama para a década
de 1980 e mostra um Irã mais ocidental e liberal. A partir de uma linha
narrativa gradativa e instigante, Baba Anvari esbanja originalidade ao tecer a
sua crítica envolvendo o papel da mulher neste ambiente castrador. Fazendo um
primoroso uso dos simbolismos, o diretor transforma as criaturas espirituais
numa espécie de instrumento de opressão feminina, uma "entidade" que
se volta contra a infância (a boneca), a vaidade (a fita de ginástica) e o
conhecimento (o livro de medicina) da dupla de protagonistas. Além disso,
Anvari é visualmente inventivo ao dar um corpo a sua ameaçadora “antagonista”,
numa clara alusão ao efeito "asfixiador" da burca sobre as mulheres
islâmicas.
E como se não bastassem os inúmeros predicados narrativos, Sob as
Sombras se revela um suspense tecnicamente impecável. Impulsionado pelas
intensas atuações de Narges Rashidi e Avin Manshadi, magníficas ao traduzirem o
efeito opressor desta ameaça dentro das suas instáveis personagens, Baba Anvari
é inicialmente cuidadoso ao introduzir a imersiva atmosfera de tensão. Com enquadramentos intimistas, inventivos movimentos de câmera e engenhosos planos conjunto, o realizador iraniano é habilidoso ao realçar o caos presente na rotina
das suas personagens, principalmente quando percebemos a crescente desordem no
apartamento de Shideh. Um mérito que, diga-se de passagem, precisa se dividido com o expressivo trabalho da direção de arte, cuidadosa ao mostrar a realidade
de um condomínio de classe média\alta na cidade de Teerã. Somado a isso, Anvari
é igualmente criativo ao utilizar os pontuais recursos digitais, efeitos
simples que não só conferem uma fluidez ameaçadora a sua implacável criatura,
como também incrementam os requintados 'jump scares'. Por falar neles, avesso aos
sustos fáceis, o diretor aposta no poder da sugestão ao nem sempre entrega
aquilo que o público esperava ver. Em alguns momentos, inclusive, ele mostra
sagacidade ao valorizar a sensação de desconforto em detrimento do fator
surpresa, vide a cena em que a protagonista malha compulsoriamente diante de um
monitor desligado.
Em suma, contundente ao expor a perda da autonomia feminina dentro da
conservadora sociedade iraniana, Sob as Sombras é um suspense inteligente e
reflexivo que se mostra capaz de dialogar com todos os públicos. Embora se
renda ao teor fantástico no último ato, uma opção que, na ânsia de fundamentar
a interpretação mais óbvia da película, reduz o senso de ambiguidade do
angustiante clímax, Babak Anvari nos brinda com uma obra rara, um longa que
realmente tem algo a dizer. Uma voz que precisa ser ouvida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário