Uma experiência
excêntrica e revigorante
Ensolarado e reconfortante, Capitão Fantástico surge como um sopro de
esperança num momento turbulento. Conduzido com extrema delicadeza pelo
versátil Matt Ross (Silicon Valey), o longa fascina ao acompanhar a incrível
jornada de uma família pouco ortodoxa. A partir de um ponto de vista extremo e
autoral, o realizador norte-americano expõe a maneira vazia com que estamos
conduzindo as nossas vidas, se insurgindo, dentre outras coisas, contra o
materialismo, o consumismo, a desigualdade e a ignorância e a degradante rotina urbana. Em sua
essência, porém, Capitão Fantástico traz ingredientes bem mais humanos. Saindo
em defesa da liberdade de pensamento e de valores que nem a mais cara
instituição educacional é capaz de ensinar, Ross nos brinda com uma genuína ode
aos vínculos familiares, ao amor fraternal. Uma mensagem única e emocionante
que, impulsionada pela soberba atuação de Viggo Mortensen e do rejuvenescido
elenco, nos faz refletir sobre os perigos em torno do nosso desgastante estilo de vida.
Assinado pelo próprio Matt Ross, o roteiro é inicialmente ágil ao
apresentar os marcantes personagens. Ao longo do imersivo primeiro ato, o
realizador esbanja categoria ao estabelecer não só a organizada rotina "selvagem" e a
filosofia desta naturista família, como também a inusitada dinâmica entre eles. Ainda que num primeiro momento este alternativo cenário soe desconfortável aos olhos do
público, Ross testa as nossas expectativas ao realçar o inesperado impacto
desta criação na formação dos jovens, indo além da excentricidade ao destacar
que por trás das noções de sobrevivência existia a preocupação com a educação,
a cultura e o conhecimento. Na trama, asfixiado pelo cenário urbano, o idealista Ben (Mortensen) resolveu se isolar do mundo e erguer a sua família cercado
apenas pela natureza. Ao lado dos seus seis cativantes filhos, o inteligente Bo
(George MacKay), a curiosa Kielyr (Samantha Isler), a precoce Vespyr (Annalise
Basso), o explosivo Rellian (Nicholas Hamilton), a anárquica Zaja (Shree
Crooks) e o simpático Nai (Charlie Shotwell), ele construiu uma espécie de oásis
no meio do nada, um lugar funcional que oferecia tudo o que eles precisavam
para viver longe das grandes metrópoles. Adaptados a esta realidade, os jovens
são pego de surpresa com a notícia da morte da sua mãe, a instável Leslie (Trin
Miller). Abalados com a notícia, Ben e os garotos decidem prestar uma última
homenagem a ela, mesmo sabendo que este retorno à cidade poderia representar
uma ameaça ao seu desprendido estilo de vida.
Com uma premissa naturalmente envolvente em mãos, Matt Ross faz um
excelente uso do recurso do 'road movie' ao expor a cumplicidade, os conflitos
e os valores presentes nesta exótica família. Através de diálogos francos e
sequências intimistas, o realizador sai em defesa da liberdade de pensamento,
da integridade e do poder da cultura, elementos explorados com rara
espontaneidade ao longo da película. Sem nunca soar panfletário ou
intelectualizado, Ben se torna um mentor instruído e objetivo, um homem capaz
de falar sobre opressão política, morte e vida sexual com surpreendente
naturalidade. A cena em que ele tenta esclarecer as dúvidas biológicas da
pequena Zaja, por exemplo, é impagável, assim como a sequência anterior
envolvendo uma repentina análise do clássico Lolita. Da vocação
instruída\contestadora da família Cash, inclusive, nascem algumas das mais
interessantes (ops!) críticas defendidas pelo argumento, a maioria delas
envolvendo o consumismo desenfreado, o materialismo e a falta de respeito às
diferenças. Melhor ainda, porém, é a maneira perspicaz com que Ross utiliza a
alternativa criação dos garotos como uma espécie de instrumento comparativo,
principalmente quando volta a sua mira para o nosso deteriorado modo de vida
urbano. Sob o ingênuo ponto de vista dos protagonistas, o longa questiona a
degradação física, a ignorância, a hipocrisia e a superproteção dos mais
jovens, temas explorados com extrema ironia ao longo da película.
A alma de Capitão Fantástico, porém, reside na sincera conexão entre os
membros desta exótica família. Com sutileza e intimismo, Matt Ross mostra profundidade ao explorar não só o lado afetuoso desta relação, como também os
crescentes conflitos em torno deste repentino contato com a rotina urbana. Impulsionado pela acolhedora e colorida fotografia de Stéphane Fontaine
(Ferrugem e Osso), o realizador é habilidoso ao explorar os contrastes por
trás deste choque de realidade, expondo o melhor e o pior deste isolado estilo
de vida. Se num primeiro momento a impressão quanto ao processo de formação dos
jovens é extremamente positiva, à medida que a trama avança o argumento faz
questão de investigar o radicalismo de Ben, a hipocrisia dele ao tentar impor a sua "libertadora filosofia" e a sua incapacidade de enxergar o
despreparo dos filhos para a vida em
sociedade. Sem nunca recorrer ao sentimentalismo barato, Ross emociona ao
revelar o impacto destas "descobertas" no 'status quo' da família, um
tema por si só delicado, mas que aqui ganha contornos ainda mais densos devido
ao peso do luto. Numa opção inteligente, o argumento opta por manter os
segredos acerca da figura materna, uma personagem que, mesmo
"ausente", se torna uma peça decisiva dentro do revigorante último
ato. Antes disso, porém, Matt Ross peca ao trabalhar os dilemas mais pessoais
do protagonista. Embora não reduza a força do extraordinário clímax, a
transformação de Ben é desenvolvida com inexplicável pressa e culmina num
conveniente 'plot twist'.
Em contrapartida, mesmo nestes momentos mais acelerados, o carismático
elenco traduz com rara inspiração o turbilhão de emoções enfrentado pelos
personagens. Reconhecido pela sua força em cena, Viggo Mortensen
"lidera" a garotada numa atuação complexa e cheia de vida. Apesar da
evidente excentricidade em torno deste modo de vida naturista, o astro
nova-iorquino nos faz crer tanto na aptidão física e intelectual do bem
intencionado Ben, quanto na sua vulnerabilidade diante da iminente insurgência
dos filhos. Uma atuação digna dos melhores prêmios. No mesmo nível do seu
veterano parceiro de cena, o promissor George Mackay (Orgulho e Esperança)
esbanja versatilidade com o querido Bo, um tipo destemido e atrapalhado que não
se envergonha de exprimir as suas fragilidades. Sem querer revelar muito, a cena
em que ele se vê pela primeira vez encantado pela figura de uma garota é
sensacional, um dos muitos momentos genuinamente engraçados do filme. Quem
também ganha um merecido destaque é o intenso Nicholas Hamilton. À frente do
elemento mais sensível desta família, o jovem ator entrega uma performance de
gente grande ao absorver o temperamento explosivo do seu Rellian. Os dois
grandes ladrões de cena do longa, no entanto, são os adoráveis Charlie Shotwell
e Shree Crooks. Curiosos e expansivos, a dupla enche a tela de fofura com os
seus respectivos personagens, o "maoísta" Nai e a
"anarquista" Zaja, e protagonizam alguns dos momentos mais divertidos
do filme. Ainda entre os destaques, enquanto o veterano Frank Langela adiciona
um pouco mais de racionalismo e contundência na pele do devastado avô materno,
a engraçada Kathryn Hahn flerta com elementos mais densos ao interpretar a
atordoada irmã de Ben.
Com personagens singulares, uma premissa autoral e conflitos
essencialmente humanos, Capitão Fantástico desponta como um oásis
cinematográfico, uma espécie de fábula moderna incrementada pela exuberante
direção de arte, pelos radiantes figurinos e pela revigorante trilha sonora de
Alex Somers. Embora se sustente numa estrutura narrativa bem familiar, Matt
Ross foge do lugar comum ao investir numa abordagem peculiar, por vezes
crítica, mas que em nenhum momento deixa de se encantar pela fascinante jornada
desta alternativa e nada disfuncional família americana. Em suma, um pequeno
grande filme capaz de falar sobre política, filosofia, cultura, coletividade, ignorância e
amor fraterno sem nunca perder o bom humor, a emoção e a capacidade de nos
surpreender.
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