Após horas de gritos, litros de sangue jorrados e muita violência contra o feminino, virou um senso comum tratar o slasher como um subgênero misógino. Uma análise literal que precisa ser contestada. Desde a sua gênese, o segmento trouxe consigo uma verve provocativa. Mestres como Alfred Hitchcock, Michael Powell e Mario Bava usaram a brutalidade contra a mulher como um instrumento de choque. Uma forma de trazer o horror para o mundo real. O slasher, ao longo dos anos, se tornou um sintoma. Poucos subgêneros expuseram com tanta veemência a vulnerabilidade feminina num meio patriarcal. Poucos subgêneros foram, também, tão visionários ao reconhecer a força feminina diante da ameaça masculina. Assim, numa quebra de expectativas, nasceu o conceito de final girl. Assim o cinema de horror empoderou o feminino sem nunca deixar de abordar os obstáculos em torno de uma violenta jornada de emancipação.
Não existe um consenso sobre qual filme seria a pedra fundamental do cinema 'slasher'. Alguns defendem que Psicose (1960) foi o precursor do segmento. Outros entendem que o enervante Peeping Tom (1960) seria o pai do subgênero. Existe uma corrente que trata Silêncio nas Trevas (1946) como o começo de tudo. Três títulos distintos unidos por um tema em comum: a violência contra a mulher. Não é exagero tratar esta popular vertente do horror como o sintoma de uma sociedade machista. O slasher, na verdade, tem muito a dizer sobre o aprisionamento e o empoderamento feminino ao longo das últimas décadas.
Para muitos o primeiro slasher produzido, Seis Mulheres para o Assassino (1962) ajudou a mudar o cinema de horror ao tratar a morte da beleza feminina como um instrumento de choque. O diretor Mario Bava engatilhou a lógica moralista do subgênero ao punir a imoralidade das suas personagens. As mortes, aqui, estão ligadas a chantagem, a inveja e a cobiça. As vítimas, meros "manequins narrativos", não possuem voz e/ou força. O feminino é aniquilado sem direito a resistência. É a total submissão à lógica machista/sexista. Um retrato explícito sobre a odiosa mentalidade patriarcal do seu tempo.
Um cenário que muda bem pouco em Black Christmas (1974). O diretor Bob Clark usa uma irmandade para refletir sobre a vulnerabilidade da nova geração de mulheres nos centros urbanos. A lógica moralista do subgênero, aqui, relaciona o sexo ao aborto. Grávida, Jess (Olivia Hussey), uma final girl involuntária, teme que o filho prejudique o seu futuro. A sua dúvida gera a ameaça, o medo e a violência. O mal se esconde na casa das jovens. O mal poderia ser um parceiro, um familiar ou um amigo. O assassino pune a independência delas. A sobrevivência do feminino em Black Christmas é tão traumática quanto o fim de um relacionamento abusivo. O medo permanece…
Isso até uma certa Laurie (Jamie Lee Curtis) desafiar uma lógica machista. Em Halloween (1978), o sexo é o gatilho para a psicopatia. O vilão Michael Myers mata a sua irmã ao vê-la transando com o namorado. Misoginia em estado puro. John Carpenter estabeleceu aqui as regras moralistas que definiram o subgênero. Transar é morrer. Usar drogas é morrer. Ser um tolo é morrer. O empoderamento feminino está associado à retidão. A resiliência de Laurie se confunde com uma visão idealizada do feminino. O assassino encontra resistência na figura de uma mulher "perfeita". A final girl, porém, ainda não era a senhora do seu destino. Ela era uma resposta a violência em estado bruto.
A brutalidade contra o feminino, contudo, também criou monstros. Em Prelúdio para Matar (1975), a toxicidade num ambiente doméstico desencadeia a explosão de violência do feminino. Já em Sexta-Feira 13 (1980), a negligência com os cuidados de uma criança gera o ódio de uma matriarca. Por fim, em Acampamento Sinistro (1983), o bullying contra uma jovem "diferente" liberta a raiva enclausurada num corpo cansado de apanhar. Nos três filmes o empoderamento está associado à vilania… O feminino como um instrumento do mal num meio insensível a angústia delas. Uma reação distorcida que surge como uma resposta chocante a um círculo vicioso de dor e violência.
Uma lógica que A Hora do Pesadelo (1984) tratou de desafiar. Wes Craven discute a libertação feminina a partir da figura de Nancy (Heather Langenkamp), uma jovem superprotegida atormentada por uma força masculina abusiva, sádica e violenta. O pesadelo, aqui, assume uma forma real. O assassino quer possuir a "pureza" dela. Tudo o que Freddy Krueger mais teme, porém, é a exposição. Como qualquer abusador ele não tolera ser descoberto. A libertação de Nancy, no fim, passa pela coragem de uma jovem mulher em enfrentar a figura do violador de sonhos. Ela vence o descrédito masculino. Ela está pronta para sobreviver fora da sua bolha. Sobreviver é desafiar o aprisionamento gerado pelo machismo.
Uma mudança de cenário que Pânico (1996) explora com maestria. Wes Craven propõe um diagnóstico poderoso sobre a vulnerabilidade feminina no vindouro novo milênio. Sidney (Neve Campbell), ao contrário de todas as outras final girls, surge em tela carregando feridas próprias. A morte da sua mãe, assassinada pelo namorado, prepara a protagonista para o que está por vir. O cineasta testa os limites do subgênero para traduzir a resiliência de uma jovem traumatizada obrigada a enfrentar a toxicidade urbana travestida de psicopatia. É o empoderamento forjado pelo mundo real. Sidney ganha poder sobre o seu corpo. Sidney "sobrevive" ao moralismo. Sidney, porém, segue exposta. Tudo o que um novo assassino/agressor precisava era de um motivo. Essa é a realidade de muitas mulheres.
É delicioso notar que a emancipação feminina no cinema slasher aconteça de fato num filme sobre uma instituição tão conservadora quanto o matrimônio. Em Casamento Sangrento, Grace (Samara Weaving) vê a noite de núpcias dos sonhos se transformar num pesadelo quando uma brutal tradição familiar do seu marido coloca a sua vida em risco. A final girl da vez é uma amálgama das suas antecessoras. Ela traz a astúcia de Laurie, a coragem de Nancy, a vivência de Sydney. Ela desafia o aprisionamento na base da ferocidade. Ela é o produto de um círculo agora virtuoso. Uma mulher preparada pelo meio. Nenhum homem jamais iria controlar Grace. Em Casamento Sangrento, a sobrevivência da final girl simboliza a morte do patriarcado. O fim da submissão feminina. A esperança de um novo futuro. Um olhar otimista para a realidade defendido por um subgênero que, ao longo das décadas, empoderou o feminino quando poucos se arriscavam a fazer.
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